Trumpquake. Trumped. Revolution. American Psycho. Os títulos das capas dos jornais de hoje reflectiam surpresa e ansiedade. Afinal Donald Trump derrotou as sondagens – como antes dele o Brexit também derrotara as sondagens. Rios de tinta já se escreveram sobre como isso foi possível e o que isso significa, centenas e centenas de artigos que transmitem de uma forma ou de outra a derrota de jornalistas, comentadores e cientistas políticos que consideraram “impossível” Trump ganhar. Os leitores do Macroscópio sabem que aqui sempre se foi mais prudente e se teve o cuidado de citar aqueles que falavam das limitações das sondagens ou da possibilidade de acontecer aquilo que aconteceu: Hillary vencer no voto popular mas perder no colégio eleitoral. Mandava a prudência, e mandava bem. Agora manda a humildade que se tente perceber melhor o que se passou e o que vem a seguir. Por isso, dos tais milhares de artigos produzidos nas últimas 36 horas, a minha limitada capacidade de absorção e selecção permitiu mesmo assim escolher alguns que, creio, informam de forma mais pertinente e analisam com aquela inteligência que ajuda a pensar.
Vou começar por alguns artigos da imprensa norte-americana, que naturalmente é aquela onde se pode encontrar maior variedade de enfoques. Peço desculpa por a arrumação das sugestões não seguir, desta vez, uma ordem precisa, mas pareceu-me preferível sublinhar a diversidade dos pontos de vista:
- How Donald Trump broke the old rules of politics — and won the White House, uma boa análise de Marc Fisher no Washington Post, onde se escreve, por exemplo, que “Trump won because he understood that his celebrity would protect him from the far stricter standards to which politicians are normally held — one bad gaffe, and you’re done. He won because he understood that his outrageous behavior and intemperate comments only cemented his reputation as a decisive truthteller who gets things done.”
- What A Difference 2 Percentage Points Makes, a análise de Nate Silver no FiveThirtyEight de como o erro nas sondagens levou ao erro nas previsões mesmo dos analistas mais cuidadosos, como ele mesmo: “Given how challenging it is to conduct polls nowadays, however, people shouldn’t have been expecting pinpoint accuracy. The question is how robust Clinton’s lead was to even a small polling error. Our finding, consistently, was that it was not very robustbecause of the challenges Clinton faced in the Electoral College, especially in the Midwest, and therefore our model gave a much better chance to Trump than other forecasts did.” De resto, acrescenta, “What’s important is that Trump was elected president. Just remember that the same country that elected Donald J. Trump is the one that elected Barack Hussein Obama four years ago. In a winner-take-all system, 2 percentage points can make all the difference in the world.”
- How Trump Reshaped the Election Map é provavelmente a mais extraordinária e reveladora infografia que pude encontrar e foi elaborada pelo New York Times, mostrando com ajuda de setas como o eleitorado se moveu de um partido para outro entre 2012 e 2016, condado a condado. É impressionante ver o progresso conseguido por Trump no Midwest e o Rust Belt.
- The people v the people, a habitual coluna Lexington da The Economist desta semana (grande parte dela dedicada a esta eleição), um texto onde se considera que “Setting Americans against each other paved Donald Trump’s path to power”. Mas não foi só ele que fez isso: “Mr Trump may be unique in embracing nastiness as a way to demonstrate sincerity. But it is also the case that Mrs Clinton rallied such voter blocs as Latinos, blacks, women or gay Americans by telling them not just that she was on their side, but that her coalition would not seek to win the votes of those Americans they dislike or distrust. That is what it meant when she declared half of Mr Trump’s supporters “deplorables”: Mrs Clinton was promising that she had no intention of trying to persuade the wrong sort of voters.”
- How eight years of Barack Obama created Donald Trump, uma perspectiva muito diferente da dominante, um texto de Simon Heffer no Telegraph, um texto de Fevereiro deste ano mas que o jornal decidiu recuperar precisamente por ser desafiante: “To glimpse how little Mr Obama has done for his own constituency – the poor blacks – it is worth reading an instructive article in the latest New Yorker. It is about evictions in Milwaukee, a city that is 40 per cent black. An industry exists to service evictions – courts, lawyers, removal men, bailiffs – and operates full-time, dealing with masses who cannot pay their rent, or their mortgages. Mr Obama was elected promising to end such misery, but he hasn’t, and he never would. America has astonishing wealth; it also has astonishing deprivation and squalor, because there isn’t enough well-paid work to go round. I don’t know Milwaukee, but am familiar with cities such as Baltimore, Newark and Trenton on the east coast, which have square miles of squalor on a scale unknown in Britain.”
- How Donald Trump won: The insiders tell their story, uma daquelas investigações jornalísticas como raramente se fazem, em que se está por dentro da máquina eleitoral de um candidato para depois contar o que se passou. Eis como o Washington Post a apresenta: “By the spring of this year, it was clear that Americans were heading into one of the ugliest, most consequential and often bizarre presidential campaigns in memory. Donald Trump would become the improbable Republican nominee, and Democrat Hillary Clinton the first woman to head a major-party ticket. Their clash challenged Americans to confront divisions over race, gender, ideology and our very national identity. This is how the race unfolded, as retold by the people who lived it. This oral history is based on four dozen on-the-record interviews with campaign advisers and other key players, conducted during the final two weeks”. Se não conseguir ler já, guarde para ler mais tarde, que vale a pena. (Já agora recordo que o Observador se estreou com dois trabalhos deste tipo nas Europeias de 2014, onde Miguel Pinheiro não descolou de Paulo Rangel, A campanha que andou à procura de “povo”, e Gonçalo Bordalo Pinheiro não largou um minuto Francisco Assis, Por dentro de uma campanha dividida.)
- Inside the Loss Clinton Saw Coming, uma reportagem dos bastidores da campanha de Hillary Clinton, de Edward-Isaac Dovere no Politico. Conclusão possível: “Clinton and her operatives went into the race predicting her biggest problems would be inevitability and her age, trying to succeed a two-term president of her own party. But the mood of the country surprised them. They recognized that Sanders and Trump had correctly defined the problem—addressing anger about a rigged economy and government—and that Clinton already never authentically could. Worse still, her continuing email saga and extended revelations about the Clinton Foundation connections made any anti-establishment strategy completely impossible.”
- Want to know why Trump’s winning Ohio? Drink a beer with ‘the deplorables’ in Boehner’s old district., uma reportagem do Washington Post em Middletown, Ohio, que começa assim: “Many Washington elites, including Republicans, do not know a single person who supports Donald Trump. In this depressed industrial town in southwestern Ohio, it is hard to find anyone who says they are for Hillary Clinton.”
- How Trump Won, uma análise de Ronald Brownstein na The Atlantic onde se passa em revista o que disseram as sondagens pós-eleitorais que permitiram perceber quem vote mem quem, explicando que “The Republican nominee put together a coalition of non-college-educated, non-urban voters—and they turned out for him with tremendous enthusiasm.” (A leitura deste texto que deve ser complementada com outro trabalho do mesmo autor, How the Rustbelt Paved Trump's Road to Victory). Se quiser conhecer todas as “exit polls” e ver como, por exemplo, Hillary afinal acabaou por perder também entre as mulheres brancas, pode consultá-las aqui, no site da CNN.
- A ‘Dewey Defeats Truman’ Lesson for the Digital Age, uma crítica do provedor do leitos do New York Times, Jim Rutenberg, à forma como os jornalistas e os órgãos de informção não foram capazes de compreender o que se estava a passar no seu próprio país: “The problem that surfaced on Tuesday night was much bigger than polling. It was clear that something was fundamentally broken in journalism, which has been unable to keep up with the anti-establishment mood that is turning the world upside down.”
- 6 Books to Help Understand Trump’s Win, uma selecção do New York Times “For those trying to understand the political, economic, regional and social shifts that drove one of the most stunning political upsets in the nation’s history”.São eles: The Unwinding: An Inner History of the New America, de George Packer (Farrar, Straus and Giroux); Strangers In Their Own Land: Anger and Mourning on the American Right, de Arlie Russell Hochschild (The New Press); Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis, de J.D. Vance (Harper); Listen, Liberal: Or, What Ever Happened to the Party of the People?, de Thomas Frank (Metropolitan Books/Henry Holt & Company); The Populist Explosion: How the Great Recession Transformed American and European Politics, de John B. Judis (Columbia Global Reports) e White Trash: The 400-Year Untold History of Class in America, de Nancy Isenberg (Viking). Pessoalmente acrescentaria a esta lista pelo menos mais dois livros: Coming Apart: The State of White America, 1960–2010, de Charles Murray (Crown Forum) e The Fractured Republic: Renewing America's Social Contract in the Age of Individualism, de Yuval Levin (Basic Books).
- The Troy Brothers Bemoan the Election (An Epistolary Bromance) é a quinta troca de cartas entre dois hisoriadores nascidos em Queens, dois irmãos que se estiveram em lados diferentes da barricada nesta eleição e que, no site judaico The Tablet, mantiveram uma interessantíssima troca de ideias. Senão vejamos: Tevi Troy, um republicano – “For Americans in general, remain calm. Trump is flawed, but hysterical accusations that he is some kind of totalitarian or fascist are and have long been not just overstated but plain wrong. In addition, American institutions are strong, and cannot easily be subverted by a president with bad intentions, even if we did at some point elect a president with those tendencies. We are governed by the rule of law and will continue to be governed by the law.”; Gil Troy, um democrata – “I didn’t and don’t have delicate “misgivings” about Donald Trump. I’m disgusted by his demagoguery, dismayed by his bullying, appalled by his boorishness, stunned by his success despite his governing inexperience. Still, I believe that America is bigger and greater than any one individual because of three important things: the American system, the American people, and the American idea. I still believe the American system the Framers designed over two centuries ago works brilliantly. Again and again, it has figured out how to bring out the best in people by understanding our flaws, thereby fragmenting power, checking and balancing, serving as a constructive platform for the greatest experiment in liberal nationalism, the United States of America.”
- The Trump Opportunity, uma opinião de Daniel Henninger no Wall Street Journal onde se dão alguns conselhos ao novo Presidente sobre quais devem ser as suas prioridades: “The Trump opportunity is at hand to quickly normalize unease about what his presidency represents by sitting down with Mitch McConnell, Paul Ryan and U.S. ambassador to Congress Mike Pence to chart a reform agenda on taxes, health care, energy and financial regulation. (…) As to the post-Comey investigations of Hillary, drop it. She’s finished. Move on. Besides, half of the divided country will be watching the Trump presidency for any positive sign that he’s, well, normal.”
- Can Republicans Contain Trump?, uma análise de David Frum na The Atlantic que, de certa forma, complementa a leitura anterior, mas deixando a dúvida sobre se Trump conseguirá trabalhar, com pragmatismo e moderação, com os congressistas do partido pelo qual foi eleito para a Casa Branca: “Like George W. Bush in 2000, Donald Trump lost the popular vote. More Americans opposed him than favored him. The constitutional rules allow him and his adopted party to proceed. It’s up to them whether to proceed cautiously or recklessly. The early indications suggest they will push as hard as they can. It’s a risky plan, both for party and nation. The country cannot be governed by partisan imposition. The attempt to bypass democratic consent will not end well. And this time it may permanently damage republican institutions.”
Poderia continuar, mas julgo que já me estendi um pouco na lista de sugestões e ainda devo deixar algumas referências indispensáveis relativas ao que foi publicado entre nós. E aqui começo não por uma leitura, mas por um programa: o Conversas à Quinta que gravei hoje com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, A vitória de Trump: do pânico do establishment à ansiedade dos parceiros internacionais. Muitos pensarão que já não há muito mais a dizer sobre as eleições norte-americanas, o porquê do resultado, os desafios dos próximos tempos, mas isso é não conhecer a cultura e a inteligência destes dois grandes conversadores que, em mais este programa, fogem das ideias feitas e da superficialidade, para irem mais além. Vale a pena ver ou, então, ouvir o podcast - aqui ou aqui.
Por fim, uma selecção de alguns dos textos que me pareceram merecedores da vossa atenção:
- É amarga, mas justa, a lição que Donald Trump acabou de nos dar, de Miguel Esteves Cardoso, no Público: “Donald Trump foi sujeito à maior e mais violenta campanha de ataques pessoais que alguma vez vi na minha vida. Todos as principais publicações alinharam entusiasticamente. Sem recorrer a sites de extrema-direita o único site que defendia Trump foi o extraordinário Drudge Report. Foi só através dele que comecei a achar – e aqui vim dizer – que o eleitorado reage sempre mal às ordens paternalistas dadas por uma unanimidade de comentadores, jornalistas e celebridades. A eleição de Donald Trump foi um triunfo da democracia e uma derrota profunda dos meios de comunicação social.”
- A revolução dos “deplorables” e a derrota histórica do “establishment” boquiaberto, de Nuno Garoupa no Observador: “Há muitos derrotados. O establishment, claro está, que tudo fez para eleger Hillary Clinton. O Presidente Obama que, rompendo com a convenção de muitas décadas, decidiu meter-se a fundo na campanha (…). A comunicação social progressista que levou a candidata ao colo e patrocinou sistematicamente os ataques moralistas a Trump (aliás, inventaram os Republicans for Clinton, que evidentemente não existem eleitoralmente, mas esqueceram-se dos Trump Democrats que, sim, existem e muitos deles são latinos e mulheres), nomeadamente o NYT, a CNBC e a CNN.”
- Acordámos num mundo que não conhecemos, que eu próprio escrevi no Observador: “Não vale a pena prever o apocalipse. Porque não vai acontecer. O momento é de espanto e choque, mas continuo a acreditar que a democracia americana não deixará de ser a democracia americana, e se há coisa que a caracteriza é o princípio da limitação de poderes. A fidelidade aos “checks and balances”. O presidente, o “homem mais poderoso do mundo”, não é omnipotente: Trump não actuará a seu bel prazer, mesmo que a sua surpreendente vitória o tenha creditado com uma autoridade pessoal que nunca pensámos possível.”
- poder e o medo, de Jorge Almeida Fernandes no Público: “Os medos desafiam a lógica e os próprios interesses. É acima de tudo um medo da mudança e do desaparecimento dum “antigo mundo”. Medo da erosão dos valores tradicionais. Medo do futuro. As classes dirigentes americanas (para não falar nas europeias) não souberam falar aos “perdedores” da globalização e das revoluções tecnológicas.”
- Sabemos quem perdeu, não quem ganhou, de Rui Ramos no Observador: “Perdeu o conservadorismo clássico, que cedeu o seu lugar, enquanto inspiração doutrinária do Partido Republicano, a um movimento capaz de levantar milhões de pessoas contra a elite privilegiada do “politicamente correcto” e contra a visão do mundo que resumimos com o rótulo de “globalização”. Chamamos-lhe “populismo”, porque não sabemos bem o que chamar a algo que não encaixa nas divisões tradicionais entre esquerda e direita. Trump está nitidamente para além dessa dicotomia.”
- Trump não é o princípio nem o fim do mundo. Mas é outra coisa, de Ricardo Costa no Expresso: “Trump não é o fim nem o princípio desta tendência que põe em causa a ordem mundial estabelecida no pós-guerra. Ele demonstrou que a imprevisibilidade do Brexit não foi um acaso: muitas pessoas estão dispostas a votar no que não conhecem, apenas porque não gostam do que conhecem. Entre um presente de que não gostam e um futuro que não sabem o que pode ser, optam pelo segundo.”
Como imaginam deixo imensíssima coisa de for a, muitos textos que mereciam ser aqui citados e a que talvez regresse. Mas não há tempo para tudo hoje, e Trump só agora começa. Teremos mais oportunidades de falar, pois haverá muito para falar.
Tenham um bom descanso e, desta vez, se puderem não se fiquem só pelas minhas sugestões, assumidamente limitadas. E não se esqueçam: o mundo não acabou na terça-feira, nem sequer a América. Tempos desconhecidos são também tempos interessantes.
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