Foi um fim-de-semana de ansiedade em muitas capitais europeias, sobretudo em Bruxelas. Iria a Áustria eleger o primeiro Presidente de extrema-direita do euro? Iria o referendo italiano conduzir a uma crise capaz de levar a Italexit? Pois bem: na Áustria, o candidato da extrema-direita perdeu, mas teve 47% dos votos. Em Itália a reforma constitucional proposta por Mateo Renzi sofreu uma derrota pesada e o primeiro-ministro acabou o dia a anunciar a sua demissão. Dito isto, o Macroscópio tem de voltar ao tema do destino da Europa e desse espectro que paira sobre o continente, o do populismo – ou populismos, como veremos a fechar a newsletter de hoje.
Primeiro que tudo, recuperemos alguns textos escritos ainda antes da escolha dos eleitores, e que me parecem significativos. Sendo que começo por uma reportagem do The Telegraph numa das regiões austríacas que mais vota na extrema-direita, uma reportagem cujo título nos sinaliza claramente o porquê de quase metade dos austríacos terem votado no candidato da FPÖ: 'This election is all about the refugees': Austrian migrant row pushes far-Right candidate Norbert Hofer to brink of power. No bar de uma aldeia, o reporter ouviu testemunhos como este: “He’s not far-Right,” one drinker, who declined to give his name, said. “We’re all socialists here and we’re all voting for him.” Algo que o president da autarquia local explicava assim: “Most of the people here live pretty well,” Mr Lang, the deputy mayor, explained. “But the thing is, most people in work here earn something between €1,200 (£1,000) and €1,500 (£1,250) a month. But a refugee family with two parents and two children can get twice that in benefits. This plays a decisive role in the election.”
Goste-se ou não do comentário, ele não deve ser ignorado. Assim como não de se deve escartar a reflexão final do texto de António Barreto no Diário de Notícias de ontem, Não é final, mas é vitória... Apesar de dedicado ao XX Congresso do PCP, termina com esta nota, bem a propósito do que por aí vai: “Por toda a esquerda, democrática ou não, corre uma palavra ou um conceito a definir uma política: patriótico! É o que se houve aos governantes, aos congressistas do PCP e aos porta-vozes do Bloco. Mas é também o que corre no topo das instituições, Presidente e primeiro-ministro. A palavra pode ser banal. A sua utilização oportunista. A sua evocação automática. Mas é a palavra dos perigos imprevistos. E dos fantasmas ameaçadores. Patriótico é também contra a globalização, contra o liberalismo político e económico, contra o mercado livre e contra a liberdade científica. Pátria! Pátria! Quantos crimes se cometeram por tua causa!”
Um outro texto pré-votação a reter é o de Jorge Almeida Fernandes no Público, com um título também muito revelador: “Já não entendo o mundo”: a Europa na era das incertezas. Uma análise que termina com uma reflexão sobre a UE e os nacionalismos, notando que “Muito se tem escrito sobre o regresso das nações, em contraponto ao centralismo ou à ineficácia das instituições comunitárias. É uma realidade. Mas merece uma primeira nota. Uma parte da impotência comunitária deve-se à ocultação de um mecanismo fundamental: o que passa por ser a "decisão da UE" resulta da negociação entre políticos que encarnam aberta ou disfarçadamente "28 interesses nacionais".”
Já no que se refere aos populismos, Philip Stephens defende no Financial Times que The populist right sweeps aside the left. É um texto que pode ser lido em conjunto com a reportagem do Telegraph que citei a abrir este Macroscópio e onde se defende que “The beginning of wisdom for parties of the left — and, for that matter, of the moderate right — is that populism can be beaten only from what is best called the hard centre. Globalisation cannot be wished away but nor can it continue to distribute all its gains to the richest. Closing borders will impoverish everyone but communities need help to cushion the social upheaval. Patriotism is to be celebrated but not allowed to bleed into xenophobia”.
A terminar a recolha de referências a textos escritos antes de conhecidos os resultados, passou para o editorial da secção de economia do The Observer/The Guardian, onde sobre Itália se escrevia Yes, Italy’s constitution needs fixing. But not as urgently as its banks do. Sem tomar uma posição aberta pela “não”, esse texto tratava de serenar os espíritos: “Few people believe the reforms are the best way to bring about more effective government, but they understand it took a great deal of wrangling to even arrive at a compromise package, and that what is on the table is unlikely to be available for a long time. There is a silver lining to a No vote. Renzi could be persuaded by the president to form another government with a view to tackling the electoral system.”
Conhecidos os resultados, é altura de os digerir. Mesmo que isso requeira algum tempo. Aqui no Observador defendi uma posição diferente da mais comum no nosso país, e assume que, se fosse italiano, também teria votado “não”. Contrariando a onda de lamentos pela derrota de Renzi no referendo italiano, defendi em Itália, os populismos e a arrogância das elites que o primeiro-ministro italiano perdeu e perdeu muito bem. Porque “a sua reforma constitucional era errada e perigosa”, sendo que “só a cegueira e arrogância das elites europeístas permitiu que nessa derrota se visse apenas a vitória populista”. Mais: argumentei que “falar de "populismos" começa a ser a forma mais confortável de certas elites europeias fazerem ouvidos moucos às preocupações reais dos eleitorados.”
Num registo muito diferente, Alexandre Homem Cristo lamentou, também no Observador, que Matteo Renzi tivesse optado pela via referendária. Em Brincar com a democracia escreveu mesmo que “Renzi e Cameron criaram uma tempestade perfeita para a afirmação de populismos inimigos da liberdade. É que estes encontraram nos referendos um palco de vitórias que nunca de outro modo alcançariam.”
Já Sofia Lorena, no Público, argumento que Isto não é o momento “Brexit” de Itália. Chamando a atenção para a complexidade do que estava em causa, recordando que “Entre quem defendia o voto no “não” encontramos figuras mais do que moderadas, incluindo dois ex-chefes de Governo: Massimo D’Alema, do centro esquerda, e, pasme-se, Mario Monti, esse primeiro-ministro não eleito que governou entre o fim de 2011 e 2013 à frente de um governo de tecnocratas nomeado para afastar Silvio Berlusconi e tranquilizar Bruxelas. Não é preciso outra prova de que “podia votar-se ‘não’ a partir do decoro institucional”, como escreve no El País Rúben Amón.”
Nesta rápida ronda sobre as reacções em Portugal às votações de ontem, uma derradeira referência a Henrique Monteiro que, no Expresso, em Perto do zero (paywall), considera que “A derrota de Renzi tem origem na mesma fonte do que o Brexit ou do que as vitórias dos diversos populismos por toda a Europa. É uma reação à modernidade, é certo, mas também ao politicamente correto que nos quiseram impor por todo o lado. Esses que, durante anos, acharam que os problemas dos povos estavam resolvidos com agendas fraturantes e dedicados a minorias”.
Quanto à Áustria, regresso ao Telegraph para citar um comentário ao resultados eleitoral que ajuda a colocar alguma água na fervura: The Austrian election is not a triumph for liberals: far-Right European populism is here to stay, defende Matthew Goodwin. Um dos seus argumentos vem ao encontro do desenvolvido no ponto anterior por Henrique Monteiro: “In Austria and many other Western democracies, the cultural backlash against the so-called "New Left" and liberal values that spread throughout the West in the 1960s and 1970s began long before the onset of the Great Recession and the refugee crisis. It has been rooted in a coalition of blue collar and lower middle class workers, mainly white men, as well as older social conservatives, all of whom firmly oppose liberalism’s enthusiasm for open borders, global markets and relaxed social norms. Feeling as though their traditional values were under threat, from the late 1970s onward these voters began to turn in growing numbers to more radical parties that had recognized there was a growing market for calls to push back against the excesses of liberalism and globalisuation.”
Para o fim deste Macroscópio deixei o prato mais substancial, o regresso a um texto já referido nesta newsletter, um ensaio do cientista político grego Takis S. Pappas publicado no número de Outubro do Journal of Democracy: The Specter Haunting Europe: Distinguishing LiberaL Democracy’s chaLLengers (texto disponível para download em PDF). Um dos argumentos mais interessantes deste ensaio é que não há um, mas vários desafios à ordem democrática e liberal, que o autor procura agrupar em três grupos diferentes em vez de os amalgamar a todos como sendo ou “populismos” ou de “extrema-direita”. Esses grupos são os “antidemocratas”, os “nativistas” e os “populistas”, propondo o autor arrumar os diferentes partidos europeus que actuam nas franjas das nossas democracias nessas diferentes categorias. Mesmo que possamos não concordar com todos os seus critérios, ajuda a pensar e a arrumar ideias.
E por hoje despeço-me, com votos de bom descanso e melhores leituras.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Subscreva
as nossas Newsletters
Nenhum comentário:
Postar um comentário