quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

PENA DE MORTE: CABO VERDE, PAÍS PIONEIRO… E AS SOMBRAS DO SEU PASSADO

A República de Cabo Verde é um dos poucos países do mundo onde nunca houve pena de morte, algo que ficou plasmado desde a sua primeira Constituição, em 1980. Foi também o primeiro país Africano a eliminar esse tipo de pena do seu sistema legal. Antes, enquanto região ultramarina de Portugal, esteve também na linha da frente mundial, e viu a pena capital ser abolida em 1870. Até lá - e apesar do número de escravos mortos de forma extra-oficial ficar perdido nas brumas de uma sociedades escravocrata, longe do Reino e desregrada - não há muitos episódios que relacionem as ilhas a esta pena. Aliás, apenas encontramos um julgamento que, de forma ilegal, resultou em execução, em território nacional.

A pena de morte, isto é, a decisão judicial em que o Estado mata o condenado, é, há muito, uma punição abolida nas ilhas de Cabo Verde. Mais, enquanto país, independente a partir de 1975, viu a pena capital ser proscrita desde logo. É pois dos poucos Estados que se pode orgulhar de nunca ter tido a pena capital.

É, no entanto, com a entrada em vigor da Constituição de 1980 que Cabo Verde passa a ser considerado abolicionista, referindo a Amnistia Internacional o ano de 1981 como a data que marca esse feito. Seja como for, Cabo Verde terá sido o primeiro país em África a abolir a pena (para todos os crimes),tendo sido seguido por Moçambique, São Tomé e Príncipe e Namíbia que o fizeram apenas em 1990.

Dois aspectos terão sido cruciais para este processo que coloca Cabo Verde em posição pioneira nos direitos humanos: um passado onde a pena capital para crimes comuns já tinha sido abolida há mais de um século e o facto de (ao contrário de outras colónias) o país nunca ter sido cenário de guerra e, portanto, enfrentado crimes militares graves.

E antes, quando ainda havia pena de morte aplicada ao território cabo-verdiano? Fomos tentar descobrir.

Brumas da memória

Até 1975 Cabo Verde foi uma região ultramarina de Portugal e, portanto, sujeito às suas regras jurídicas. 

Começando pelo início (ou quase). Em 1462, o rei Afonso V doa as recém-descobertas ilhas de Cabo Verde ao seu irmão D. Fernando. Concede-lhe privilégios sobre terras e as pessoas que “para lá se vão fixar”, mas não lhe dá o direito de “aplicação da pena de morte e talhamento de membros pelos crimes cometidos pelos seus habitantes”, escreve o historiador Danilo Santos, na tese “O Cabo-verdiano pelos olhos do forasteiro”, citando António Leão Correia e Silva.

Assim, durante todo os séculos em que esteve sob o jugo português, os crimes de maior gravidade não eram julgados nas ilhas. Os acusados deviam ser enviados, condenados e punidos na metrópole. E a pena de morte só poderia ser aplicada se o Rei desse o seu aval, caso contrário, seria uma violação da lei.

Esse facto parece ser comprovado por um caso a que a historiadora Iva Cabral faz referência em “Dos povoadores aos “filhos da terra”: a dinâmica da sociedade cabo-verdiana.”

“Em 1549 são perdoados pelo Rei, Bento Lopes e Rui Gomes, juízes ordinários da vila de S. Filipe do Fogo, julgados por terem condenado à morte por enforcamento a um escravo cujo nome era Brás”, conta.

Surgem, porém, registos de condenações em julgamentos nas ilhas, embora nada aponte para a execução efectiva. Por exemplo, a mesma historiadora, na sua tese sobre “A primeira elite colonial atlântica”, fala de Bartolomeu Martins que foi condenado à morte, em 1535, “por sentença do corregedor” da ilha (Santiago). Martins, que matara “António Fernandes, homem preto e língua”, acaba por ser condenado ao degredo para o Brasil e foge para as Canárias.

Também Simão de Lemos, cavaleiro da casa real, foi condenado à morte por ter lançado “em terra a um Francisco da Costa” que ia num navio da Guiné. Estávamos em 1542. “Tendo sido preso pelo meirinho da serra de Santiago, evadira-se da cadeia e encontrava-se em Lisboa, onde andava amorado. Após essas façanhas e ter sido perdoado pelo rei, Lemos regressa a Cabo Verde, onde retoma o seu lugar, em 1546, como vereador da cidade da Ribeira Grande de Santiago”.

A história destas ilhas em parte povoadas por condenados (inclusive) à morte em Portugal, que viam as suas penas comutadas pelo desterro (uma espécie de morte civil), é indissociável da escravatura. 

Assim, sendo uma importante percentagem da sua escassa população composta por escravos, como relacionar a pena de morte com estes?

Certamente que o facto de não se poder executar nas ilhas sem autorização do rei, não impedia algumas execuções extra-judiciais, sumárias, de escravos. Mas a história pouco ou nada reza sobre casos concretos desta índole que ocorrem fora do sistema e barras do tribunal. 

Mas oficialmente os escravos não podiam ser mortos pelos seus senhores, havendo registo de fidalgos condenados ao degredo por esse crime. Por exemplo, na tese já citada de Iva Cabral encontramos referência ao fidalgo Álvaro Fernandes Gago, condenado ao degredo “por ter matado 2 escravas suas com castigos cruéis”. Trata-se de um caso do século XVI.

Entretanto, e até à abolição da pena de morte (na segunda metade do séc XIX), a insurreição de escravos sempre foi um dos crimes com previsão de pena de morte, dentro dos diferentes códigos criminais do Reino.

As cabeças e os cabecilhas

Há dois episódios e que se destacam quando se fala de pena de morte e Cabo Verde, em dois séculos diferentes. 

O primeiro ocorre no séculos XVIII, que tal como o século anterior está repleto de motins, assassinatos de oficiais régios e outras atitudes desafiadoras contra a metrópole. Apesar de, como escreve o historiador Ilídio Baleno (no seu artigo “A afirmação da sociedade cabo-verdiana a partir da crise dos séculos XVII e XVIII”) os revoltosos fossem muitas vezes julgados e sentenciados, não se conseguia garantir que as sentenças fossem de facto cumpridas. Alguns revoltosos tinham inclusive exércitos privados e resistiam à prisão, a própria população muitas vezes os acobertava e havia uma negligência propositada dos oficiais.

É que os cabo-verdianos, prossegue o historiador, não reconhecem o poder colonial, “que chega às ilhas de forma muito esbatida e sem condições para se impor”, e portanto, também não respeitam os seus altos representantes. Acham mesmo que estes são empecilhos e é nesse contexto que acontecem os referidos assassinatos. 

A História cruza-se com a arte do romance. “A morte do Ouvidor”, de Germano Almeida vai precisamente pegar neste período conturbado, mais concretamente num acontecimento específico: o assassinato do ouvidor-geral João Vieira de Andrade, que chegou à ilha de Santiago em 1761 onde é assassinado dois anos mais tarde. 

“A 28 de Fevereiro de 1764 é preso em Santiago, Cabo Verde, o coronel António de Barros Bezerra de Oliveira, e com ele nove cúmplices”, lê-se na sinopse do romance. Os acusados são presos e enviados para o reino onde são julgados e condenados à morte. Por ordem régias as suas “cabeças são cortadas e enviadas para Santiago, para serem espetadas em paus e exibidas em público”, até que o tempo as destrua.

“Foi um severo castigo com o objectivo de impressionar a revoltosa população da ilha e, ao mesmo tempo, de repor a ordem colonial”, acrescenta, o historiador Ilídio Baleno, que também refere o episódio e para quem esta mostra de força serviu ao rei para “realçar a sua soberania sobre as ilhas”.

Já no século XIX um outro caso que tem como pano de fundo uma revolta dos escravos e que envolve a pena de morte. E é aliás, o único registo encontrado de execuções no território cabo-verdiano e reitera que todos os casos necessitavam da aprovação do rei/rainha.

O episódio é relatado na página web “barrosbrito”, onde Jorge Sousa Brito traça a genealogia dos seus parentes e dos da sua esposa. Em 1836, em Santiago, descobriu-se uma conspiração de escravos para matarem os seus senhores. Os cabecilhas da revolta foram presos, julgados e condenados à morte. A pena foi executada, malgrado a oposição do delegado do Procurador Régio, João Frederico, que alegava ser necessária a sanção da rainha. Fuzilados os cabecinhas, Frederico “protestou então para o governo central que deu-lhe razão e demitiu o governador.”

Dia das “Cidades pela Vida”

A 30 de Novembro de 1786 o Grão-Ducado da Toscana (norte da Itália) abolia a pena de morte, tornando-se assim o primeiro Estado a fazê-lo. Para comemorar essa data pioneira, em 2002 a Comunidade de Sant’Egídio lançou o repto às cidades de todo o mundo: unirem-se e manifestarem-se contra a pena de morte.

A iniciativa contou no seu primeiro ano com a participação de 80 cidades, sendo que neste momento já quase 2000 assinalam o dia através de acções que vão de concertos, à iluminação de edifícios, marchas, etc. 

Em 2004, a cidade da Praia aderiu à iniciativa, que é promovida localmente pela comunidade Sant’Egídio de Cabo Verde e à qual se têm vindo a juntar outros parceiros, como a Comissão Nacional dos Direitos Humanos e Cidadania (CNDHC), a Lasu Branku, e comunidades religiosas.

Número de execuções no mundo aumentou em 2015

A pena de morte é ainda vigente por legislação em 58 países do mundo. E os dados mais recentes não são animadores. Segundo a Amnistia Internacional (AI), no ano de 2015 registou-se o maior número de execuções dos últimos 25 anos. 

Foram executadas pelo menos 1634 pessoas, o que representa não só o maior número desde 1989 como um aumento de 50% em relação a 2014. O número não contabilizada os condenados chineses, uma vez que o país considera as execuções segredo de Estado.

A responsabilidade por este abrupto aumento é, essencialmente, de três países: Irão (977 pessoas executadas, incluindo 4 menores), Paquistão (320 pessoas, das quais 5 menores) e Arábia Saudita (158, mais 76% do que em 2014). Juntos representam 89% do total estimado - sem contar com a China, da qual não há números, mas que lidera o ranking dos países que mais aplicam a pena capital.

Outro dado inquietante da AI é que pelo menos seis Estados que não tinham feito execuções em 2014 fizeram-no em 2015, incluindo o Chade, “onde aconteceram as primeiras execuções em mais de uma década.”

Pela positiva, mais quatro países aboliram a pena de morte da sua legislação: Fiji, Madagáscar, República do Congo e Suriname. A estes junta-se este ano a Mongólia, com a entrada em vigor do seu novo código penal.

“Pela primeira vez na História, a maioria dos países no mundo – 102 – aboliu totalmente a pena de morte. Ao todo, 140 Estados ao redor do planeta são abolicionistas na lei ou na prática”, escreve a AI. 

Em Janeiro de 2015 a ONU reconhecia a existência de 193 países, não considerando o Vaticano, Palestina (países observadores), Kosovo ou Taiwan.

A abolição e suas leis

Em 1867 é abolida a pena de morte em Portugal que se torna, assim, um dos primeiros Estados modernos da Europa a eliminar esta punição, para crimes civis - o primeiro foi o Grão-Ducado da Toscana (1786), seguido de San Marino (1865). Foi também o primeiro a inscrever essa proibição na Constituição. 

Três anos mais tarde, em 1870, a abolição é estendida a todas a todos os territórios sob administração portuguesa. 

Hoje, a Constituição cabo-verdiana garante, no seu artigo 28º que “A vida humana é inviolável”. Mais, a Magna Carta não só proíbe também a pena de morte como impede a extradição em caso de possível aplicação da pena capital. 

A restante legislação, com destaque para o Código Penal reitera de forma clara os ditames da Constituição. “Em caso algum haverá pena de morte” (art. 45º)”, diz o documento. Também a Lei do Estrangeiro assegura que “não se concederá a extradição quando o facto for punível com a pena de morte”( artigo 90º).

Cabo Verde é ainda signatário de vários pactos, documentos e convenções internacionais que defendem o direito à vida como fundamental e garantem a integridade física e a dignidade da pessoa.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 783 de 30 de Novembro de 2016.

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