O que Marcelo Rebelo de Sousa fez foi manifestar o contínuo histórico baseado no conceito do bom português que trata os “seus negros” com humanidade.
ANTÓNIO TOMÁS
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, foi visitar a ilha de Gorée, no Senegal, e fez declarações sobre o envolvimento de Portugal no tráfico de escravos. O que lá mencionou foi o gesto madrugador de Portugal ao ter reconhecido a injustiça da escravatura, em 1761, quando pela mão do marquês de Portugal aboliu tal prática em parte do seu território em “reconhecimento pela dignidade do homem”, segundo disse.
As declarações do Presidente tiveram o condão de iniciar um saudável debate sobre a participação portuguesa no tráfico de escravos, a colonização e a descolonização, e sobre como esses assuntos são tratados hoje nos programas de ensino em Portugal. O que tem faltado no debate não são argumentos que rebatam as convicções de Rebelo de Sousa, mas as vozes da intelectualidade negra portuguesa. Não se atribuía tal silêncio simplesmente aos parcos números deste grupo, atribua-se sim à relação que existe entre declarações sobre benevolência colonial e o ocultamento das vozes dos ex-colonizados. Ou seja, o paternalismo que caracterizou o colonialismo português continua na forma como os negros são representados (ou não representados) no Portugal pós-colonial.
Isto tem a sua história. A reacção do Estado Novo ao início das guerras de libertação nos seus territórios foi a recusa em negociar com os então chamados “terroristas”. Tal recusa não foi simplesmente motivada por cálculo militar, ou estratégico. O Estado Novo não tinha como reconhecer os movimentos de libertação como “dignos representantes” dos seus povos, porque era então inconcebível reconhecer negros como interlocutores válidos (houve excepções, naturalmente, como a tentativa do general Spínola em negociar com Amílcar Cabral sob os auspícios do presidente senegalês Léopold Sedar Senghor).
O silenciamento dos africanos é um tema que está no cerne não só da escravatura, como da própria colonização. Tem fundamento na separação entre os domínios público e privado, como explica Aristóteles. Representação pública e participação política só cabem a homens livres. Os escravos são propriedade, fazem parte do domínio privado e têm de ser representados. Dispensam-se os exemplos de como este princípio foi pedra basilar na experiência colonial europeia em África. De tal forma que no prefácio à Antologia da Nova Poesia Negra e Malgache, o filósofo francês Jean-Paul Sartre defende que a fala, ou o uso da palavra na forma de poesia, é que tornava os africanos donos do seu destino. O que abria também a via para a autonomia política dos africanos, ocorrida sobretudo na década de 1960.
Portanto, o que se nota hoje em Portugal é uma dificuldade em lidar com o passado colonial. É simultaneamente como se Portugal nunca tivesse colonizado e nunca tivesse descolonizado. Ou é como se a descolonização tivesse tido lugar em África, mas nunca tenha ocorrido em solo português. Talvez porque o que foi madrugador não foi Portugal ter reconhecido a injustiça da escravatura, em 1761, mas ter transformado “colónias” em “províncias ultramarinas” em 1951, na revogação do Acto Colonial. Isso só por si não conta como descolonização, naturalmente. Mas Portugal levou a sério esta farsa. Serviu de justificação para a pressão em descolonizar imposta por organismos internacionais. No discurso da época, Portugal não podia descolonizar porque não tinha colónias. Consequentemente, o Estado Novo não teve de lidar com a descolonização. E tendo havido uma revolução para que Portugal deixasse África, o abandono do império acabou por ocupar o lugar de uma descolonização efectiva.
Isso explica a ferida aberta que a África colonial ainda hoje constitui. Explica o pesado silêncio sobre a presença em África que muitos portugueses carregaram até recentemente. Mas explica também a posição subalterna, ou mesmo colonial, a que o contingente negro da população portuguesa tem sido votado até hoje. Ou seja, é como se o colonialismo, ou as mitologias coloniais, se tivesse virado para dentro. Daí que os problemas que as comunidades de origem africana vivem ainda hoje em Portugal são de natureza colonial. Não se pode negar que o país tem feito algum progresso. Mas há ainda uma grande falta de representação de negros na política, nos meios de comunicação de massas e no ensino e investigação de temas que lhes deveriam dizer respeito (como a história de África, por exemplo). O que Rebelo de Sousa fez foi manifestar o contínuo histórico baseado no conceito do bom português que trata os “seus negros” com humanidade. Este foi o grande baluarte do passado colonial e continua a sê-lo no presente pós-colonial português.
Fonte: Público
Antropólogo no African Centre for Cities, University of Cape Town
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