No Colóquio de Políticas Públicas do Património Cultural, organizado pelo Bloco de Esquerda esta sexta-feira na Assembleia da República, a preocupação com a degradação das políticas públicas foi transversal a todos os oradores.
"Corremos o risco de condenar o património em Portugal a uma de duas opções: ou Disney ou abandono".
Na apresentação do colóquio, Catarina Martins abriu a iniciativa abordando os problemas, velhos e novos, com que se depara o sector.
Na Cultura “há um problema de base que o Bloco de Esquerda deve assumir”, começou por dizer. Um problema “político” que é o facto de as “posições conjuntas não abordarem estas matérias”.
“Não especificámos objetivos em matéria onde haveria, aparentemente, algum entendimento”, algo que, “somos obrigados hoje a reconhecer, não existia”. Como resultado, explica,”não foi possível até agora plasmar em orçamentos de estado, e portanto, nas opções políticas do governo, um investimento maior na Cultura.”
Falou depois de dois problemas “novos, e dois problemas velhos” nas políticas públicas do património.
Um problema novo, diz, é "a enorme pressão do turismo sobre o património. Não entendemos que o turismo seja negativo para o património, mas se não encararmos os desafios que o turismo traz para o património, estamos mal."
"Quando falo de desafios não falo apenas dos desafios inerentes ao desgaste do património apenas por ter mais visitantes. Falo também dos interesses imobiliários e especulativos o património", continuou.
"Não por acaso o programa Revive foi desenhado como foi. Há uma enorme pressão, não só da administração central mas também das autarquias para que se permitam todo o tipo de negócios com o património", relembrou.
"Este problema novo junta-se a outro problema também novo: nunca os serviços estiveram tão fragilizados. Nunca houve tão poucos técnicos com tantos dossiers. Nunca foi tão difícil acompanhar as questões do património como hoje. Sente-se hoje como nunca se sentiu o depauperamento dos serviços face às exigências crescentes."
Isto acontece “em cima dos problemas de sempre”, continua Catarina Martins. Em primeiro lugar, para lá do problema orçamental, o “problema da própria tutela do património”. Especificamente, “a forma como foi desmantelada e como o parecer técnico foi deslegitimizado no processo de decisão do Estado”, algo que acarreta “enormes riscos”.
E depois o problema antigo de não se pensar o património com as comunidades. “Continua a existir uma visão do património como se ele existisse para lá das populações. Não existe programas de uso, de proximidade e envolvimento com as comunidades.”
"Precisamos de outra visão que inclua o diálogo com as populações", concluiu.
"Corremos o risco de condenar o património em Portugal a uma de duas opções: ou Disney ou abandono". Ou seja, na confluência dos novos e velhos problemas, o que se está a criar é uma “conservação artificial do património”, r”ecuperado para o visitante de fora, interessante do ponto de vista da receita mas destrutivo a longo prazo, porque corta a relação com as populações” e, em alternativa, apenas o abandono."
“Assistimos a uma captura do património pelo imobiliário”
Maria Ramalho, Presidente do Conselho de Administração da Comissão Nacional Portuguesa do ICOMOS do ICOMOS, começou por perguntar “o que resta hoje de políticas públicas”?
“Não é exagero da minha parte dizer que está em curso um mega processo de alienação, de deterioração do património cultural muito fruto da desconstrução das políticas públicas de proteção dos monumentos e paisagens”, disse.
“Muitas pessoas querem agir mas não sabem como”, continuou. “Temos de pensar nisto como um fenómeno da globalização, hegemónico”. E “o que sentimos no património é que, se não tem valor para economia não tem existência real”.
“As principais vítimas deste fenómeno", diz, são as cidades históricas face ao turismo de massas.
Lisboa e Porto neste momento são as cidades na mira. Portugal está refém do investimento imobiliário “salvífico”, que impõe “legislação facilitadora no que respeita ao património, que desregula as instituições de proteção do património, que pulveriza a tutela técnica sobre o património e, de facto, assistimos a uma captura do património pelo imobiliário”.
E denunciou as “estratégias de reabilitação urbana, que se apropria de um vocabulário positivo para o património, afunilando esforços e milhões de fundos europeus em reabilitações falsas” de empresas do imobiliário”.
“90% dos arqueólogos trabalham em regime precário”
Jacinta Bugalhão, arqueóloga da Direção-Geral do Património Cultural, denunciou as sucessivas reorganizações orgânicas nos últimos quinze anos, “alheias a qualquer avaliação das próprias reformas e, sobretudo, alheias a qualquer ideia sobre o património”.
Especificamente sobre o setor da arqueologia, relembrou que as funções do Estado, de regulação, fiscalização e licenciamento, estão dependentes do bom funcionamento dos serviços de arqueologia garantidos pelo tecido empresarial do setor, um setor “muito frágil”, indica.
Das 27 empresas em atividade, apenas cinco têm uma estrutura robusta. O que indicia um dos maiores problemas do setor: “A situação dos arqueólogos em Portugal em termos de condições de trabalho é dramática”, avisa. “A gigantesca maioria dos arqueólogos - existem hoje cerca de 1000 a 1200 arqueólogos no ativo, dos quais pelo menso 90% trabalham em regime precário.”
“Hoje não há estratégia na arqueologia”, avisa, apontando para processos de desregulação a favor das pressões imobiliárias. Por isso, pede a criação de “um organismo especializado com tutela da arqueologia”, com uma hierarquia e processos de decisão claros que garanta o “bom funcionamento do modelo de arqueologia em Portugal”.
“Haver ou não haver Ministro revelou-se irrelevante”
“Vivemos num momento de total esquizofrenia no sector”, começa por dizer Raquel Henriques da Silva, Professora Universitária e ex-diretora do Instituto Português de Museus de 1997 a 2002. E justifica a afirmação: “nunca tivemos pessoal tão preparado e nunca fomos tão mal tratados”, disse. “O desnível entre a nossa capacidade técnico-científica e a incapacidade em transformarmos isso em capacidade política e financiamento.”
E compara com o setor da Ciência onde, apesar dos altos e baixos, "existe um investimento continuado que não se regista na Cultura". Além disso, se a precariedade é um problema na investigação científica, nas “humanidades é um flagelo”.
“A cultura está completamente fora do financiamento europeu a não ser em programas de outros setores, que não têm como prioridade o investimento na Cultura”, denuncia.
Apesar do cenário, “continua-se a trabalhar espantosamente bem nos museus. E o que é extraordinário é ver que, quase sem técnicos, quase sem equipas, com falta de financiamento total, continua a ter um nível de atividade muito acima do que seria expectável.”
“Estou-me nas tintas se temos Ministro ou Secretário de Estado da Cultura, porque é igual, claramente irrelevante, existir um Ministro da Cultura sem peso político”, disse.
E revelou que “vai mesmo haver um novo organismo que vai dirigir os museus e património. A ser anunciado em setembro.” Mas, avisa, é “indiferente” existir o novo organismo porque “as questões fundamentais vão manter-se inalteradas. É escandaloso os orçamentos da cultura continuarem como estão”, declarou.
E em segundo lugar, relembrou a “saída maciça dos técnicos superiores que se reformam e não são substituídos. Não deve haver em portugal nenhum sector da administração pública onde a não substituição dos quadros seja tão radical. Porque é total. Ninguém entra há pelo menos quinze anos.”
"A ausência de estratégia de reinvestimento na Cultura é aflitiva"
Jorge Campos, deputado do Bloco de Esquerda, criticou a ausência de uma estratégia de reinvestimento na Cultura. "Vamos fazer dois anos de governo do Partido Socialista, e a ausência de uma estratégia de reinvestimento na Cultura é aflitiva", sublinhou.
Além disso, "iniciativas como o Programa Revive não só não ajudam a uma recuperação dos serviços de estado como aprofundam a desestruturação da tutela técnica a favor de um aparelho de ajuda aos interesses do imobiliário, algo absolutamente perverso", acrescentou Jorge Campos.
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