O redactor-chefe de uma rádio de Moscovo explica porque é que é bom que o telefone toque e do outro lado esteja o Kremlin. Um editor do jornal de Anna Politkovskaia explica porque é que ela se tornou uma heroína no Ocidente e não na Rússia. Uma jornalista de uma televisão do Estado admite que o elogio de Putin é a política da casa.
Como é ser jornalista na Rússia de Putin?
a A Rua Lesnaya, em Moscovo, é uma dessas artérias próprias para o trânsito e impróprias para pessoas que existem em todas as cidades. Os estaleiros de obras dão-lhe um carácter intimidante, a arquitectura é fresca mas é para quem está de passagem: um bloco de escritórios, um Holiday Inn mais abaixo. É fácil sentirmo-nos desprotegidos, expostos. É um lugar onde um crime pode acontecer.
Rua Lesnaya, 8, letras douradas sobre fundo negro: "Anna Politkovskaia viveu e foi assassinada neste prédio a 7 de Outubro de 2006". A placa, por cima da caixa de correio, foi uma iniciativa pessoal de um dos mais ferozes opositores do presidente Putin. "Kasparov", diz-nos ao telefone Ilia Politkovski, 29 anos, filho da jornalista.
Anna Politkovskaia, correspondente especial do jornal independente Novaya Gazeta, publicou mais de 500 artigos e quase todos eles podem ter sido o motivo por que foi assassinada. Em 2004, quando voava para Beslan para negociar com os terroristas que fizeram mais de mil reféns numa escola, Politkovskaia ficou gravemente doente depois de beber chá, no que se suspeita ter sido uma tentativa de envenenamento. Ela sabia que corria riscos; já tinha sido alvo de ameaças, veladas ou directas, antes. Mas, nas semanas que antecederam a sua morte, as defesas de Politkovskaia estavam em baixo: o pai acabara de morrer de um ataque cardíaco, a mãe estava no hospital, a filha estava grávida e acabara de se mudar para o seu apartamento na Rua Lesnaia. "Quando se tem problemas com a família, não nos preocupamos muito connosco", justifica Ilia Politkovski.
Internacionalmente, Anna Politkovskaia era uma das mais notórias jornalistas da Rússia. O seu trabalho valera-lhe uma série de prémios, atribuídos "em cerimónias realizadas em salões de hotéis de Nova Iorque a Estocolmo". A descrição é da revista New Yorker e serve para expor o contraste. A frase que vem a seguir é esta: "Em casa, ela não tinha nada disso".
Poucos dias depois da morte de Politkovskaia, o Levada Center, um centro de pesquisa de opinião pública, conduziu uma sondagem sobre a jornalista junto da população russa. Mais de metade dos inquiridos - 53 por cento - nunca tinham ouvido falar da jornalista antes da sua morte e apenas seis por cento tinham lido alguns dos seus artigos.
"Não se deve exagerar a sua importância porque há só 300 a 400 mil pessoas que lêem o Novaya Gazeta, onde ela publicava", diz Alexei Simonov, presidente da Glasnost Defense Foundation, uma instituição que defende e monitoriza a liberdade de imprensa na Rússia. "Ela era muito popular por aquilo que fazia. Era uma heroína, sem dúvida. Mas não exageremos a sua importância. Para o Ocidente ela é um dos poucos nomes que conhecem porque ela foi bastante elogiada e premiada e porque o seu trabalho era bom. É por isso que a reacção à sua morte se fez sentir mais no Ocidente do que na Rússia."
"Ocidente" é uma palavra recorrente na Rússia, como se fosse uma entidade separada. Se quisermos entrar no jogo, é possível que a reacção de um russo ao nome de Anna Politkovskaia faça um ocidental esbugalhar os olhos. Pelo menos, de um russo pró-Putininista, o que se pode esperar é isto: Politkovskaia era uma louca.
"A ideologia dos dias que correm é a seguinte: a Rússia deve prosseguir o seu próprio modelo de desenvolvimento, a chamada "democracia soberana"; estamos rodeados de inimigos que querem controlar os recursos naturais do nosso país, e muitas das críticas ao governo têm raízes no Ocidente porque os líderes ocidentais não querem uma Rússia forte", explica Roman Shleinov, 32 anos, editor da equipa de jornalismo de investigação no Novaya Gazeta, no seu gabinete. "Esta é a forma que eles encontraram de dizer o que se passa. É muito conveniente acusar todos os críticos de que são inimigos do Estado e levar as pessoas a acreditar nisso. Muitos dos programas televisivos alimentam isso: nós criámos um Estado forte, ninguém gosta disso e os nossos críticos são, na verdade, contratados pelo Ocidente. É a habitual lavagem cerebral das televisões."
Não é difícil confirmar que é um pensamento generalizado. Basta falar com a rua. Não é tão raro assim encontrar quem elogie Putin pela sua altivez para com o resto do mundo. Os russos viajam, vestem-se à ocidental, Moscovo é cada vez menos uma metrópole soviética e cada vez mais capitalista, reluzente, mas o exterior ainda é visto como uma ameaça.
"Claro que na Rússia muita gente não gosta de quem critica. Habituaram-se a ouvir que as críticas são instigadas por inimigos. Dá para perceber o tipo de resistência que Anna Politkovskaya gerava aqui."
Repitam: Putin é bom
Na Rússia, as televisões são a principal fonte de informação para 80 por cento da população. Ao contrário dos jornais, elas chegam a todo o país. Todos os canais abertos estão nas mãos do Estado, total ou parcialmente. Estações privadas como a NTV foram compradas pela Gazprom, o poderoso conglomerado do gás russo, controlado pelo Estado, e sua redacção despedida em peso. O mesmo aconteceu com outros meios de informação, como o jornal Izvestia ou a revista Itogi. E tudo isto aconteceu desde 2000, depois de Vladimir Putin se sentar no Kremlin.
Maria, 22 anos, está a sorver um batido - uma "bomba vitanímica" - num final de dia deixando a hora de ponta no metro de Moscovo para trás. Os seus olhos são como dois periscópios em rotação, olhando à volta, enquanto ela se esforça por falar o inglês que aprendeu. Desde Agosto, Maria é jornalista na estação de televisão mais vista pelos russos, o Canal 1, detido maioritariamente pelo Estado.
Os críticos costumam apontar que os noticiários das televisões nacionais se tornaram meros propagandistas do regime. Só notícias positivas sobre o Kremlin e o país, branqueamento ou depreciação das forças de oposição, Putin mencionado sempre com deferência e solenidade, como se fosse um saudoso defunto...
Apresentar este cenário a Maria iria provavelmente assustá-la. Ela não vê nada de errado naquilo que faz. Ela é nova e ambiciosa - não uma arrivista, mas alguém que encara a carreira como a história da Cinderela.
"Sei que há coisas que devo fazer. Por exemplo, as eleições: sei que há alguns partidos, como a Rússia Unida, que são bons para nós. Essa é a posição dos meus chefes, a política do canal: gostamos do Presidente Putin e dos membros do governo do nosso país. E quando fazemos as nossas reportagens devemos ter isso em mente. Os meus chefes não me ligam todos os dias a dizer: "Não te esqueças..." É um a priori." É assim no Canal Um, e é assim no RTR, outro canal nacional detido pelo Estado, onde Maria trabalhou antes. Assume-se que os jornalistas que aí trabalham conhecem as regras. E isso não incomoda Maria? "Não. É uma coisa comum no nosso país, não me sinto como se estivesse numa situação fora do normal."
E se Maria descobrisse uma notícia prejudicial sobre Putin? "Não poderia contar. É muito difícil trabalhar quando se está na oposição, quando se diz qualquer coisa má sobre o nosso líder nacional."
É por isso que quando se entra na Rádio Eco de Moscovo, não se acredita. É um corredor fundo, e as paredes estão cobertas de retratos de quem passou pela antena desta rádio independente. A primeira galeria, do lado direito, é a secção dos líderes internacionais (embora o ogre Shrek e Liza Minnelli também estejam expostos nesta parte): Blair, Bill Clinton, Gorbachov, Schröder, Solana, Chirac, Angela Merkel, Condoleeza Rice, Collin Powell, Ariel Sharon, Benjamin Netanyahu... Mas também há muitas personae non gratas para ao Kremlin neste corredor: os oligarcas Boris Berezovski, Mikhail Khodorkovski, Kasparov e até Anna Politkovskaia.
Como é que a Eco de Moscovo consegue fazer isto sem ser comprada, encerrada ou controlada pelo Estado como tantos outros media russos?
Imagem: Fala Você |
"Em primeiro lugar, somos muito talentosos", responde Alexei Venediktov, 52 anos, chefe de redacção da Eco de Moscovo, um remoinho de cabelo grisalho de que ouvíramos falar antes de o conhecer e que o torna fisicamente inesquecível. "Segundo: não temos grande influência sobre o eleitorado. Somos uma rádio ouvida pelos colarinhos brancos - por burocratas, pela intelligentsia, por profissionais liberais, etc. Quer dizer, não representamos um perigo para o presidente Putin no sentido de influenciar o eleitorado como as televisões, que têm audiências de milhões." A Eco tem uma audiência diária em Moscovo de 800 a 900 mil ouvintes. Incluindo o Kremlin. "Somos a vitrine, para o Presidente Putin, de que a liberdade de expressão ainda existe. Quando alguém diz que não existe liberdade de expressão, ele responde: "Então e a Eco de Moscovo?" Somos álibis, se quiser. E depois, somos a fonte de informação até para essas pessoas. Kremlin, ministérios, deputados vêm buscar imensa informação aqui."
O telefone de Venediktov toca. "Era o Kremlin." Não é ironia: soube-se há pouco que Putin vai liderar o Estado reunificado da Rússia e Bielorrússia, embora não se saibam mais pormenores.
Venediktov admite que recebe ameaças há 15 anos - dirigidas a ele, à família e aos seus jornalistas. "Alguns até deixaram a Eco de Moscovo admitindo que não queriam arriscar as suas carreiras, para não dizer a vida."
Mas há quem diga que é permitido à Rádio Eco tudo aquilo que não se permite aos outros. Sinal de poder ou de fraqueza (no sentido de ser demasiado inofensiva para incomodar o Kremlin)?
"Isso não me preocupa. Faço o meu trabalho. Se o senhor Putin monopolizou a liberdade, tanto melhor para a Eco de Moscovo, para o nosso negócio. Mas não me parece que seja essa a explicação. A questão não é a censura por parte deste ou daquele ministério ou do Kremlin, mas a autocensura dos meus colegas. Têm medo de dar uma notícia negativa e serem alvos de sanção por parte dos seus patrões ou do Kremlin. Eu não tenho medo, sei onde está a linha vermelha. A linha vermelha é a lei, ponto. Claro que recebo telefonemas deste ou daquele ministro, deste ou daquele membro das associações Kremlin, como dizemos aqui. Mas penso que em todos os países é natural o poder ficar desagradado com o trabalho dos media livres. E cabe ao redactor-chefe minimizar os estragos, por assim dizer. Se não me telefonassem do Kremlin ou dos ministérios, ficaria preocupado - significaria que estão satisfeitos."
O crime compensa
Desde que Putin é presidente da Rússia, 13 jornalistas foram assassinados no país. "A Rússia não está em guerra, as estatísticas mostram que algo de errado se passa", reconhece Roman Shleinov, do Novaya Gazeta.
"Os jornalistas são mortos e, infelizmente, a instrução criminal não faz o seu trabalho", diz Venediktov. "Porque a instrução, o poder, desprezam o trabalho jornalístico. Se matam um banqueiro, um deputado, qualquer personalidade, o procurador-geral investiga e encontra o assassino. Mas se é um jornalista, como é a profissão desprezada aqui, já não fazem o seu trabalho como deveriam."
É também isso que diz Alexei Simonov: as investigações sobre os jornalistas assassinados não têm levado a lado nenhum, o único resultado tem sido a total impunidade. É como dizer: o crime compensa. "Não há razão para haver bom jornalismo no país."
Anna Politkovskaia era boa jornalista e isso valeu-lhe o isolamento, a indiferença. Alguns jornalistas transformaram a sua frustração em ferocidade - pelo menos, essa é uma explicação possível para o tom desagradável de Sergei Parkhomenko, ex-editor da Itogi, que foi demitido quando a Gazprom adquiriu a revista semanal, e actual editor de livros. Parkhomenko recusa um encontro e praticamente grita ao telefone. Perguntamos porque participou nalgumas marchas de protesto lideradas pelo movimento de Kasparov. "Porquê? Porque sou um cidadão deste país que praticamente perdeu a liberdade de escolher a sua profissão! Porque a liberdade de expressão não existe. E essa é uma das raras possibilidades de mostrar que existem opiniões que não são as mesmas que são propagandeadas pela televisão!"
Politkovskaia é apenas o nome que sabemos de cor. "Se olhar para a lista de jornalistas assassinados, vai ver que nunca ouviu falar deles", diz Roman Shleinov. "Estão demasiado longe de Moscovo, demasiado longe da Europa." Não é em Moscovo, mas nas regiões da imensa Rússia que está o maior perigo, defende. Os media locais estão nas mãos de grupos em conflito e a intimidação pela bala é mais recorrente. Na metrópole, há métodos de controlo mais sofisticados: subornos, por exemplo. "Porquê ameaçar um jornalista quando simplesmente podemos comprá-lo?", diz Shleinov.
Perigosa obsessão
Depois de Anna Politkovskaya morrer, com cinco tiros, no interior do seu próprio prédio na Rua Lesnaya, todas as cabeças - pelo menos nessa parte do mundo que a Rússia chama de "Ocidente" - se voltaram para Vladimir Putin. Para a imprensa internacional, ele era o suspeito número um.
Isso é algo que hoje, em Moscovo, toda a gente rejeita, incluindo o filho de Politkovskaia, mas é também a razão mais provável porque há uma investigação aparentemente empenhada sobre a morte da jornalista. Sabe-se que algumas detenções foram feitas, mas o secretismo é absoluto depois do episódio confrangedor de Agosto - o procurador-geral responsável pela investigação anunciou publicamente uma dezena de detenções e as identidades dos suspeitos sem que o processo estivesse concluído; dias depois teve de libertar alguns por falta de provas.
Yassen Zassourski, 79 anos, foi o reitor da faculdade de jornalismo da Universidade Estatal de Moscovo desde 1965 até este ano - agora é presidente. Formou gerações e gerações de jornalistas russos, atravessou intacto o período soviético, a glasnost, o putinismo - e ainda aqui está, quando a vida da maioria dos seus compatriotas seguiu o exemplo do país, isto é, foi convulsa. Seria tema para uma longa conversa, mas Zassoursky só tem 10 minutos. "Os jornalistas são pessoas especiais. São um animal diferente. Vivem para tornar públicos os seus pontos de vista, e essa é uma obsessão perigosa."
Anna Politkovskaia foi aluna de Zassourski. "Conheci-a desde muito cedo. Até conhecia os pais dela. Era óptima estudante e interessava-se por literatura. A sua tese de admissão na faculdade foi sobre poetas russas - Akhmatova, Tsvetaeva... Mas a vida dá as suas voltas e ela foi para a Chechénia. Essa tornou-se a sua nova obsessão."
Fonte: Público
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