quarta-feira, 12 de julho de 2017

CABO VERDE | O Sr. Presidente da República e a “Não – Justiça”


Amadeu Oliveira | Expresso das Ilhas | opinião

Em Memória do Presidente Dr. António Mascarenhas Monteiro”

Por imperativo constitucional, em Cabo Verde, quem manda e desmanda na Justiça não é o Governo, nem o Presidente da República, nem a Assembleia Nacional mas sim o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ).

Tal órgão é composto por 9 (nove) elementos e o seu presidente deve ser nomeado pelo Presidente da República mediante proposta dos demais membros desse mesmo Conselho. É necessário realçar que o presidente do CSMJ deve ser, obrigatoriamente, um Magistrado Judicial, pelo que as possibilidades de escolha por parte do Senhor Presidente da República são muito limitadas, já que têm de se cingir aos Magistrados Judiciais que sejam já parte do mesmo CSMJ.

Depois de nomear o Presidente do CSMJ, lamentavelmente, nem o Presidente da República, nem os demais órgãos de soberania, possuem mais qualquer possibilidade de seguimento e avaliação do funcionamento do CSMJ que, doravante, passará a actuar livremente, sem rei, nem lei (fazendo pouco da lei).

Perante a falta de trabalho, ausência de resultados ou mesmo falhas de honestidade no seio do CSMJ, nenhum órgão de soberania dispõe de instrumentos legais, eficazes e eficientes para avaliar ou corrigir os eventuais abusos ou desvios reinante nesse órgão.

Ora, tal configuração constitucional, decorre de uma errada interpretação do princípio da Separação de Poderes segunda a qual “cada macaco deve ficar no seu galho”, no que se refere aos órgãos de soberania, a saber: (i) – Assembleia Nacional (Poder Legislativo), (ii) Governo (Poder Executivo) e (iii) Tribunais e CSMJ (Poder Judicial), sendo certo que nos Regimes Semi-Presidencialista ou Parlamentar-Mitigado (como é o caso de Cabo Verde), a figura do Presidente da República surge como o fiel da balança entre esses vários poderes;

Dentro deste quadro constitucional, ultimamente (já tarde demais) Sua Excelência o Senhor Presidente da República tem esboçado algumas iniciativas para tentar se inteirar dos graves, malignos e tenebrosos desvios de poder dentro do sistema judicial, nomeadamente, promovendo a auscultação de várias entidades relacionadas com o sector da justiça, visando uma escolha criteriosa do novo Presidente do CSMJ;

Vai daí que, através de um artigo de opinião intitulado de “Mais Atenção À Separação de Poderes”, publicado na página 14 do jornal Expresso das Ilhas, Nº 807, de 17 de Maio último, o Dr. Humberto Cardoso resolveu insurgir-se contra o Senhor Presidente da República, Dr. Jorge Carlos Fonseca, porque, supostamente, o mais alto Magistrado da Nação terá andado a violar o princípio da Separação de Poderes, só pelo facto do Presidente da República ter esboçado uma vaga pretensão de seguimento e avaliação acerca do funcionamento do CSMJ.

O Dr. Humberto Cardoso chega ao ponto de plasmar no seu texto que “O Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) é o órgão constitucional de gestão e de disciplina dos juízes. É evidente que no seu funcionamento deve ser completamente autónoma e livre da influência do Poder Político”; .... “Há que dar a devida atenção ao Princípio de Separação de Poderes”.  

É claro que essa tese é fruto de um terrível equívoco na interpretação do Princípio de Separação de Poderes que importa clarificar, não vá o Senhor Presidente da República recuar ou titubear nas suas iniciativas em relação à pouca vergonha em que se transformou o nosso sistema de Não-Justiça em Cabo Verde;

Em virtude de o Dr. Humberto Cardoso colocar um pendor excessivamente formalista, rígido e teórico nas suas análises, no que tange à Não-Justiça instalada em Cabo Verde, acaba, assim, por tecer duras e injustas críticas ao Presidente Jorge Carlos Fonseca, quando este, finalmente, começa a fazer algo de jeito no sentido de melhorar o sistema, indo um pouco mais além do que os seus já estéreis discursos de ocasião, designadamente os proferidos nas cerimónias de abertura de cada ano judicial. Tenho de reconhecer que o Dr. Jorge Carlos Fonseca tem feito bons discursos a esse respeito, mas, por não serem acompanhados de acções práticas (magistratura de influência), tudo não tem passado de conversa vazia e retórica de político, tal como era mera poesia as intervenções do Dr. José Maria Neves no tempo em que o PAICV estava no poder.

Assim, de retórica em retórica, a situação da Não-Justiça se degradou a tal ponto que, neste momento, ninguém de boa consciência poderá negar que tanto nas vilas como nas cidades, no campo como nos portos, nos cutelos como nos vales, nos bares e botecos, nas empresas e nas famílias, nas conversas de cidadãos sérios e esforçados como até na boca de políticos demagogos, em todo o lado, já se formou a convicção, quase unânime, de que a Justiça, em Cabo Verde, não é célere o suficiente, não é séria o bastante, não é justa como se desejaria, não é de fácil acesso como reza a Constituição e nem sequer é útil, pois, quando vem, (se não prescrever) é sempre tarde e a más horas, para além de ser, muitas vezes, mal fundamentada e nada credível;

Por outro lado, existe, na nossa sociedade, a percepção de que determinados magistrados agem como se fossem intocáveis e impunes, pese embora manifestos abusos de poder, aldrabices de toda a casta e espécie, favorecimentos e tráfico de influências, o que faz com que determinados processos sejam despachados num ápice (escassos meses) enquanto outros processos da mesma natureza, género e valor, demoram anos para conhecerem um simples despacho de citação que nada mais é do que seis letras (C I T E – S E ) com uma rubrica do Juiz  e uma data por baixo, para não falarmos da contingência de terem de aguardar mais de uma década para uma decisão final.

Neste quadro de desmandos e de impunidade em relação às irregularidades cometidas por determinados magistrados, não havendo uma reacção adequada e atempada por parte dos órgãos de direcção, disciplina e organização do sistema judicial (CSMJ), urge e impõe-se uma tomada de posição por parte dos titulares dos demais órgãos de soberania, máxime, de Sua Excelência o Senhor Presidente da República. É que numa República que seja Republicana de verdade não pode existir nenhum Poder, nem mesmo sendo o Poder Judicial, a arvorar-se em Poder Absoluto, colocando-se acima do controlo e fora do escrutínio dos demais Órgãos de Soberania: – Presidente da República, Assembleia Nacional e Governo – e acima do próprio Povo, em cujo nome os Tribunais existem, funcionam e ditam sentenças.

14.  Pelo exposto, ao contrário do que vem sendo defendido pelo Dr. Humberto Cardoso, e fazendo um trocadilho com as suas próprias palavras, diríamos que “É evidente que no funcionamento do CSMJ deve haver um acompanhamento, acções de correcção, avaliação e responsabilização por parte dos titulares dos demais órgãos de Soberania, não podendo o CSMJ ser um órgão absolutamente autónoma e livre da influência do Poder Político, seja a Presidência da República, Assembleia Nacional e o Governo, pois é chegada a hora de dar uma vassourada nos actuais membros do CSMJ e indigitar outra casta de cidadãos que sejam portadores de uma visão para o sector, uma estratégia direccionada para os resultados, que tenham metas de quantidade e de qualidade a serem atingidas e que seja gente imbuída de honestidade, amor à Justiça e seriedade, capaz de conferir uma outra credibilidade ao sistema”.

É que o entendimento abraçado pelo Dr. Humberto Cardoso revela ser manifestamente imprudente, prejudicial e equivocado, abrindo portas a toda a casta de abusos e desmandos, como os que temos testemunhado dentro do Sistema Judicial, protagonizados por magistrados (sobretudo Juízes) desde a primeira instância (Juiz do Tribunal de Ribeira Grande de Santo Antão, por exemplo) até ao Supremo Tribunal de Justiça (Secção Crime, por exemplo), sem olvidar as formidáveis omissões e truques do actual CSMJ que tem sido tão Mal-Presidido e tão mediocremente dirigido, como se não fosse possível ao CSMJ fazer mais e melhor com os recursos que os sucessivos Governos colocaram à sua disposição.

Nesse quadro, impõe-se ao Senhor Presidente da República uma outra actuação, mais atenta e mais cuidada, mais preocupada com os resultados em termos de qualidade e quantidade, mais interventiva e responsabilizadora, por forma a tentar contrariar o triste estado actual das coisas.

Por isso, qualquer vítima dessa “Não-Justiça” deve aplaudir, estimular, suportar, apoiar e louvar a iniciativa Presidencial de estar a auscultar várias entidades e personalidades ligadas ao mundo da Justiça, antes do Senhor Presidente indigitar o novo Presidente do CSMJ, sem que com isso esteja a quebrar a Princípio da Separação de Poderes.

Face a essa equivocada interpretação do princípio de Separação de Poderes, apraz-me perguntar: (i) De que servirão a Presidência da República, os Deputados Nacionais, o Governo e a Oposição se o País não tiver um sistema judicial capaz de resolver, em tempo útil, um eventual litígio entre vizinhos, entre empresas ou entre um trabalhador e a sua entidade patronal??? (ii) De que serve ao cidadão dizerem-lhe que vive num Estado de Direito Democrático onde impera o princípio da Separação de Poderes se não pode defender o seu Direito perante um Tribunal célere e credível, mediante um processo justo e equitativo, conseguindo uma decisão séria e credível, em tempo útil ??? (iii) Enfim, de que lhe serve todos esses lindos palavreados se, quando precisa da Justiça, corre o risco de encontrar magistrados prevaricadores, actuando a seu bel-prazer, retardando determinados processos ao mesmo passo que aceleram outros, cometendo iniquidades indiscritíveis, sem receio algum, por estarem cientes da impunidade, por saberem não existir, em Cabo Verde, um Serviço de Inspecção Judicial que, pese embora estar prevista na Constituição da República, nunca, nem o PAICV, nem o MPD, (os dois partidos políticos que nos tem Governado), fizeram questão de ver em funcionamento.

Aliás, para além das iniciativas acima descritas, caso o Senhor Presidente da república quiser mesmo dar um contributo nessa matéria, deverá começar por desencadear uma alteração constitucional no sentido de se revogar o Nº 6 do Artigo 223º da Constituição, visando abolir a regra de que o CSMJ deve ser sempre presidida por um Magistrado Judicial, um Juiz, pois essa regra tem conduzido a que o CSMJ funcione mais como um covil de branqueamento dos abusos de determinados magistrados judiciais do que um órgão de disciplina e de credibilização da nossa Justiça.

Por outro lado, é urgente promover uma alteração constitucional por forma a que o Governo tenha a possibilidade de indicar um seu representante, entre os 9 (nove) membros do CSMJ. A entrada de um representante do Governo no CSMJ justifica-se, quanto mais não seja, porque a figura do Ministro da Justiça é a mais criticada, mesmo que, no quadro constitucional actual, o Governo não possua a menor possibilidade de actuação/intervenção no funcionamento da máquina da justiça, para além da disponibilização de meios materiais e recursos financeiros.

Ademais, é sabido que o Povo pensa (com razão) que, quando elege um Governo para administrar o País, isso inclui o bom funcionamento dos Tribunais e a credibilização da Justiça, sendo o Governo o responsável político pela boa ou má administração do País, em todos os sectores sem exclusão, englobando também o sector da Justiça.

Por uma questão de honestidade intelectual devo referir que essas duas últimas sugestões de alteração constitucional não são da minha autoria, foram-me incutidas pelo falecido Presidente da República, Dr. António Mascarenhas Monteiro, no Hotel Salinas Sea, do Grupo Oásis, na Ilha do Sal, no dia 15 de Fevereiro de 2016, quando ele me deu a subida honra de acompanhar a sua esposa, Dra. Odette Pinheiro, ao Tribunal do Sal, para me servir de testemunha num processo-crime em que eu era o Arguido – Réu, em virtude de eu ter tecido fortes e duras críticas em relação ao desempenho profissional de um Juiz (Dr. Ary Santos que é membro do CSMJ), pelo que eu estava a ser julgado por suposto crime de Injúria e Difamação contra esse membro do CSMJ.

Incrivelmente, logo depois do julgamento ter terminado, todas as provas realizadas demonstrando a veracidade das minhas afirmações desapareceram dentro do Tribunal, incluindo todas as gravações áudio dos depoimentos de todas as testemunhas, pelo que até à data de hoje, nem eu, nem o referido magistrado fomos responsabilizados pelos nossos actos e omissões, tendo ficado tudo escondido por debaixo do enorme tapete de poucas-vergonhas que mancham o sistema judicial de Cabo Verde.

Face ao extravio das provas testemunhais dentro da secretaria do tribunal do Sal, recorri para o Supremo Tribunal de Justiça, suplicando para um novo julgamento, mas até a data de hoje ainda o STJ não proferiu o almejado Acórdão, que deve ser tão fácil de cozinhar que não levará duas horas sequer a ser elaborado. Entretanto, o mais provável é que eu tenha de aguardar anos afio, senão for uma década, a espera de ser julgado novamente.

É claro que sobre este e muitos outros casos rocambolescos, o CSMJ sempre preferiu meter a cabeça na areia, fingindo-se de morto, cego, surdo e mudo, só para não ter de actuar em conformidade.

Pois, quem tenha o poder e o dever de promover as necessárias reformas no sector da Justiça que seja breve, antes que seja demasiado tarde, e Cabo Verde entrar numa deriva populista, em que as gentes do Povo possam desatar a fazer justiça pelas suas próprias mãos, por falta de instâncias judiciais sérias e credíveis em quem se pode confiar. – A Bem da Nação Cabo-Verdiana!!!

Praia, Mercearia Andrade, Junho de 2017.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 813 de 28 de Junho de 2017

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