Manuel Carvalho da Silva | Jornal de Notícias | opinião
Qual será a génese comum de acontecimentos, que permite a alguns políticos e comentadores afirmar que Pedrógão e Tancos "ficarão ligados para sempre"? Por que razão a Direita e os formadores da agenda mediática desencadearam um processo de tiro ao alvo, situando os problemas quase só nas responsabilidades políticas individuais, como a grande questão política com que os portugueses se devem ocupar?
O país vive uma crise política? Ou será que a Direita e certos paladinos dos compromissos do velho "arco da governação" têm força suficiente para resumir a política a exercícios de desestabilização do Governo, impedindo o debate aberto e a construção de respostas aos problemas concretos com que os portugueses se deparam no dia a dia e aos bloqueios que impedem o desenvolvimento da sociedade?
A tragédia de Pedrógão Grande e o gravíssimo desaparecimento de armas de Tancos, ocorreram num mesmo período temporal, trouxeram à superfície fragilidades múltiplas, inclusive algumas relacionadas com "o estado do Estado", profundamente debilitado ao longo do tempo pelo "arco da governação", quantas vezes para dar espaço a negócios desastrosos e promíscuos. Destruíram-se estruturas e organizações na administração central e local a pretexto do seu envelhecimento, custo e desadequação, sem se criarem outras mais eficazes. Quando a ênfase no individual e o ataque ao coletivo são o pão nosso de cada dia, quando os trabalhadores do Estado são desvalorizados ou achincalhados, gera-se desleixo e desresponsabilização. As políticas de austeridade aprofundaram o rumo de degradação e inculcaram práticas de autolimitação, gerando uma espécie de irracionalidade automática nas opções de muitos decisores quanto às prioridades de investimento.
Observando as muitas coisas certas e os inúmeros disparates que têm sido expandidos, deve dizer-se que é desastroso colocar Pedrógão e Tancos numa amálgama e apresentá-la como a questão política do país.
Pedrógão exige, no imediato, um sério plano de apoio às populações e, num prazo curto, a responsabilização de quem por incúria pode ter contribuído para a dimensão da tragédia. Além disso, mostra-nos práticas de prevenção e combate aos incêndios desajustadas e sistemas de informação e outros a exigirem consistentes reformulações; que é necessário estruturar e aplicar políticas de organização florestal e territorial; que se exigem novas reflexões sobre o modelo de desenvolvimento no que diz respeito a estratégias demográficas e à promoção de atividades económicas que tornem o território mais coeso.
De Tancos emerge um outro caderno de encargos bem distinto. Desde logo, a gravidade do que ali aconteceu, em condições que ainda não se conhecem, é absolutamente intolerável e tem de, com muito rigor, se apurar e atribuir responsabilidades. Para isso, urge desarmar possíveis manipulações daqueles que gostariam de ver os militares a porem "o poder político na ordem", e há que exigir aos governantes pleno exercício da gestão das suas responsabilidades. É preciso travar tentativas de gerar pânico a partir de um hipotético incremento do terrorismo em resultado do "desaparecimento" daquelas armas. O(s) furto(s) praticados em Tancos trouxeram à superfície a exigência de uma análise à situação das Forças Armadas (e por arrastamento das Forças de Segurança), dos seus meios humanos, materiais, técnicos e científicos, das estruturas ao seu dispor e das condições para a sua manutenção, do seu papel na afirmação da independência e soberania do país, do seu contributo para afirmação e prestígio do Estado democrático. E mostra ser imprescindível dignificar os militares.
A Direita levará até ao limite a estratégia do tiro ao alvo, acima de tudo porque não quer que se discutam os problemas estruturais concretos e específicos que estão a montante de cada uma destas dolorosas e graves ocorrências. É certo que há membros do Governo e outros responsáveis da administração que se puseram a jeito; que as lógicas do "austeritarismo" estão impregnadas até à medula em alguns governantes; que é forte a cultura de gestão promíscua gerada por décadas de exercício do poder do arco da governação.
Em diversos aspetos, é indispensável uma governação nova.
* Investigador e professor universitário
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