quarta-feira, 19 de julho de 2017

Opinião: Pedrogão Entre o Poder e a Verdade

Podia ter corrido bem?
Poder podia, mas não connosco!
Quanto mais recordo a noite de sábado, dia 17 de junho, mais me convenço de que tudo podia ter sido diferente. Mas a verdade é que não podia mesmo, porque somos como somos.
Vivi a noite do incêndio de Pedrogão, junto ao incêndio e soube, como todos, pela televisão, que havia vítimas, que eram muitas, que era muito grave. Depois começou a contagem crescente dos mortos e todos tomámos a verdadeira consciência da tragédia humana. As muitas centenas de casas destruídas e a área, a perder de vista, com tudo negro, esbatia-se na contabilidade macabra de todos os que partiram.
Todos os anos é a mesma conversa, que já me incomoda, o vento, sempre forte, claro, o calor, sempre muito, como se outra coisa nesta época fosse de esperar, a baixa humidade, é óbvio, a falta de acessibilidades, a orografia e o coberto vegetal. Caramba, há 30 anos que são sempre as mesmas razões e hoje e ontem, em todos os incêndios que nos entram em casa pela televisão. Já chega de vento, de calor e de baixa humidade, como desculpas, esse é o nosso País, essa é a nossa realidade e vamos ter disso sempre, cada vez mais, já agora!
Desta vez, também se apelou à falha das comunicações, ao SIRESP, o que ele nos custou e custa todos os anos e às suas debilidades (que sempre ocorreram, só sendo agora notícia), à demorada avaliação real da dimensão do incêndio, às falhas da triangulação inicial e às do ataque ampliado. Podem apontar o dedo à GNR e às cinco horas passadas entre o início do incêndio e a sua chegada à estrada 236, onde morreram 47 pessoas. E em 5 horas o que se pode, o que se deve fazer, na coordenação de um incêndio previsível, como muito apontaram e que já levava o freio nos dentes há muito tempo.
O que dizer da autoridade florestal, inexistente na eficácia das medidas no terreno, que nem das matas nacionais tomam bem conta e da desertificação do interior, que acontece há anos e da gestão da posse dos terrenos que estão, na sua maioria, abandonados.
Podem sublinhar a precipitação no apuramento da causa do incêndio, por parte da PJ e ao silêncio ensurdecedor a que se remeteu depois do IPMA vir dizer que ali e àquela hora, trovoada, não houve. Não houve a causa apurada e o apurador da causa desapareceu e tudo bem, adiante. Podem olhar de lado as Câmaras Municipais e os seus Presidentes, enfim, aqueles que são a Autoridade Municipal de Proteção Civil e o garante da segurança dos seus munícipes e melhor perceber o desleixo generalizado na limpeza dos espaços à volta das povoações e das casas.
Podemos questionar sobre os serviços municipais de proteção civil e validar quantos técnicos da área trabalham em cada um deles. A estrada 236 e a margem de segurança nas suas bermas, só depois do incêndio foi, vergonhosamente, limpa, numa ofensa de cuspir na cara de todos os familiares dos que ali morreram, também por toda a carga térmica estar em cima do alcatrão.
Podem falar da floresta e verberar contra o eucalipto, sendo certo que as manchas verdes sobrantes naqueles montes carbonizados, ainda são as plantações dessa árvore, desde que o solo tenha sido previamente lavrado.
Podem referir o caso da viatura especial de transporte de cadáveres da ANPC, que não funcionou exatamente quando era precisa ou os inúmeros responsáveis operacionais trocados em cima da época de maior incidência de fogos florestais, com contornos difíceis de explicar. À conversa pode trazer-se a instalação do Posto de Comando em Pedrogão e as razões que levaram a ter de o deslocar, logo a seguir, para o Avelar. Podem falar de falta de meios, de inexistência de bombeiros num interior sem gente, sem jovens, mas, mesmo se os houvessem, sem incentivos reais ao voluntariado.
Pode falar-se muito de bombeiros, mas os seus dirigentes, que andam sempre de mão estendida a pedir, para poderem ter fundos para comprar equipamentos de proteção individual e carros de fogo para apagar o fogo que é de todos, ainda são apelidados de interesseiros, por lá andarem para ter prestígio na terra.
Pode afirmar-se que todos ajudam e que a mulher de um Bombeiro, ainda assim, teve dificuldade em visitar o seu marido no Hospital, queimado no incêndio. Podem falar o que quiserem, se quiserem saber tudo o que se passa e o que se passa é que nós, nós somos mesmo assim! É o fado.
Nós falamos, discutimos, avaliamos, inquirimos, produzimos extensos relatórios, auditorias e livros brancos. Convidamos catedráticos para comissões sobre incêndios e ignoramos a opinião dos Bombeiros, porque nenhum aterrou nessa comissão, estranho não é? Mas acho bem, porque depois, ao trabalho que realizarem, não lhes ligamos nenhuma. No fim, fazem-se uma ou duas das medidas lá apontadas, das mais fáceis e das mais visíveis e siga adiante, que para o ano há mais. Pode discutir-se o DECIF, quando tudo acaba por ser como a ANPC quer, como aconteceu este ano, impondo uma diretiva financeira inaceitável. Pode fazer-se “greve” ao Dia Nacional do Bombeiro, mas é esse Bombeiro, mulher e homem simples de Portugal, que morre numa estrada a tentar salvar o seu semelhante.
Agora podemos, mais uma vez, voltar a produzir os mesmos estudos, auditorias, a elaborar os mais completos relatórios, mas a verdade meus caros, está na refundação do sistema de proteção e socorro, na redefinição da estrutura vertical de comando, no papel efetivo de coordenação da Autoridade Nacional de Proteção Civil nos teatros de operações e não de comandamento, na mobilização de meios e recursos, planeados na grelha de território, com base no princípio da subsidiariedade, numa abordagem descomprometida de tudo o que é de legítimo direito para os voluntários, os assalariados, os profissionais, sejam eles municipais ou sapadores, havendo uma intervenção transversal de defesa do que a cada um importa, porque todos são Bombeiros de Portugal.
A verdade está em que tem de acabar este aproveitamento despudorado de um Estado que usa e abusa da solidariedade e da disponibilidade de um povo, que dá os seus filhos à morte, vestidos de Bombeiros, por umas migalhas de euro à hora.
É inaceitável o tempo de espera, da espera por um cartão social do Bombeiro. A verdade está na necessidade de se fazer uma verdadeira tipificação dos corpos de bombeiros e em definir um financiamento justo das associações, entidades detentoras de corpos de Bombeiros e não de lhes diminuir, de forma cega, o que recebem. A verdade está na inquestionável necessária formação, focada numa Escola Nacional de Bombeiros para Bombeiros, em espaços de efetiva proximidade junto daqueles que são a sua razão de existência e na criação de uma cultura de segurança nas populações, responsabilidade única o Estado, que decorre da Lei de Bases da Proteção Civil, com a formação e a sensibilização como traves mestras da prevenção e do evitar, em vez de remediar.
A verdade está numa intervenção reguladora direta do Estado, sempre com uma corajosa atitude na abordagem de tudo ao que aos Bombeiros diz respeito e com a frontalidade em assumir que a Segurança é perda de liberdade e tem custos.
Mas quanto custam as vidas deste incêndio de Pedrogão? Para as famílias tudo, porque tudo perderam, os pais, os filhos, as mulheres, os maridos. Para alguns que nos governam com base num calendário, daqui a algum tempo, já nem é assunto.
Para mim e para muitos como eu, o assunto é a razão de nos levantarmos, pelos Bombeiros de Portugal e de afirmarmos o que nos vai na alma.
Lídio Lopes

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