Rafael Barbosa* | Jornal de Notícias | opinião
Viçosa, Bica do Aceiro, Maroufeira, Marmeleiro, Barroqueiras, Alagoa, Ribeiro das Figueiras, Vale de Cabreiros, Cabeço do Carril... Por razões familiares, fui, um destes dias, confrontado com a leitura de um inventário onde constam uma série de terrenos outrora ocupados por oliveiras, vinhas, milheirais, figueiras, citrinos e pinheiros. Topónimos que me levaram de regresso aos anos 80 da adolescência e da passagem para a idade adulta, para aqueles longos e quentes verões passados em Domingos da Vinha, aldeia de um pequeno enclave alentejano que se adentra, a norte do Tejo, pelos territórios da Beira Baixa, ali ao lado de Mação.
Entre todos, o meu favorito era o das Corgas, a que se chegava passando pela Charneca e pelo seu caminho em terra bem batida, o único que permitia puxar pela mula, primeiro, e pelo burro, mais tarde, em curtas cavalgadas na carroça. Depois, virava-se à esquerda, entrando pela frescura, pelos cheiros, pelas cores e pelos sons que vinham do pinhal, para se terminar descendo a estreita e íngreme barreira, em direção ao vale, até dar, à entrada da horta, com a generosa nascente que nos matava a sede, a nós e a tudo o que brotava com força e abundância nos férteis terrenos das Corgas: os limões, as laranjas, as tangerinas, o milho, as vinhas, os tomates, as batatas, os feijões e o mais que já se me varreu da memória.
Memórias felizes, memórias infelizes. Porque naquele inventário de nomes, áreas. confrontações e pequenas descrições, feito pela minha mãe e pelo meu tio, o final é quase sempre igual e trágico: "Esta propriedade ardeu em agosto de 2003". Dois ou três anos depois do inferno de fogo, já sem avós, sem burro nem carroça, meti-me a pé pelo caminho que da aldeia sobe para a Charneca. Não cheguei muito longe. O fogo não deixara mais do que espetos negros de pau. Como diria o meu avô João Florindo, se então ainda fosse vivo, a terra ficou viúva. Já não tinha a noção da distância, não reconhecia os caminhos, não havia sons, o cheiro era sempre igual e a queimado, as colinas não eram as mesmas, os vales irreconhecíveis. Voltei para trás, angustiado, e nunca mais lá voltei.
Não foi agora, neste ano de 2017, que Portugal começou a ser destruído pelo fogo. A diferença é que este ano fomos sacudidos com a perda massiva de vidas humanas. Talvez nos sirva de lição. Ou talvez não. Sobretudo quando somos confrontados com o despudor com que um ex-jota, agora líder parlamentar, e quem sabe futuro líder do PSD, profere ultimatos revolvendo os cadáveres, como se fosse um abutre, na sua busca por despojos políticos.
*Editor-executivo
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