Sylvia Debossan Moretzsohn
Professora aposentada da UFF, pesquisadora do ObjETHOS
A coincidência entre o aniversário do golpe e a repercussão do casodo sujeito preso em flagrante por ejacular em cima de uma mulher num ônibus mas libertado no dia seguinte transformou a imagem do estupro numa perfeita metáfora do país.
De fato, estamos sendo estuprados desde a fatídica sessão da Câmara do dia 17 de abril do ano passado, em que, entre gargalhadas e rojões de papel metalizado, aquela multidão de deputados fantasiada de verde e amarelo expôs ao mundo a qualidade de nossa representação parlamentar. A falta de decoro não se limitou aos exageros de comportamento: chegou ao cúmulo de uma declaração de voto que elogiava o torturador-símbolo do período da ditadura.
O clima de “liberou geral” torna desnecessário manter as aparências. Então o senador que articulou o golpe como “um grande acordo, com o Supremo, com tudo”, pôde falar abertamente em democratizar a suruba.
Nas ruas, a massa de classe média não economizava na linguagem chula e misógena. De todas, a melhor síntese do sentido simbólico do golpe foram os adesivos com a caricatura de Dilma sorrindo com as pernas arreganhadas na lataria do carro, no buraco do tanque de gasolina, recebendo um jato de combustível.
Então o golpe completa um ano e o ejaculador do ônibus, que acumulava 16 boletins de ocorrência pelo mesmo tipo de conduta, é preso e imediatamente solto, só para ser preso novamente dois dias depois, por idêntico motivo.
O caso teve enorme repercussão nas redes sociais. Leigos jamais conseguiriam entender como um sujeito com tal histórico poderia ser devolvido às ruas assim, sem mais. Inclusive porque o juiz que tomou essa decisão reconhecia a gravidade do ato e mencionava esse comportamento recorrente, sugerindo a necessidade de tratamento psicológico e psiquiátrico.
No meio jurídico, porém, as opiniões se dividiram e muitos apoiaram o juiz porque, segundo eles, a decisão teria de ser técnica e, tecnicamente, aquela atitude não poderia ser enquadrada como estupro. Nas redes que reuniam defensores do abolicionismo penal proliferaram manifestações entre irônicas e ofensivas aos que, igualmente antipunitivistas, deploravam a decisão. Como se abolicionismo significasse ausência de punição, e não o estabelecimento de um horizonte – porque nada além disso é possível numa sociedade de classes – na direção do afastamento do direito penal como solução de conflitos, o que é algo bem diferente. Combater o punitivismo é combater o apelo ao direito penal e ao endurecimento das penas, que é urgente e há três décadas é tendência crescente no mundo.
Mas o “tribunal do Facebook” é assim: um vasto campo no qual as pessoas extravasam suas paixões, imediata e irrefletidamente. Por isso mesmo as discussões que começam de maneira ponderada descambam para a agressão e a ofensa. De modo que os identificados à esquerda que ousaram criticar a decisão do juiz tiveram seu caráter posto em dúvida – seriam falsos antipunitivistas que finalmente se revelariam ao menor sinal de um caso moralmente condenável – e chegaram a ser associados à extrema-direita, personificada no famoso deputado cuja candidatura à presidência vem ganhando adesões crescentes. Os que defendiam o juiz que soltou o acusado sublinhavam a necessidade do respeito estrito à aplicação técnica da lei.
Não se trata aqui de entrar nessa discussão, primeiro porque um artigo de crítica de mídia não tem de enveredar pela crítica do direito penal ou da criminologia, segundo porque essa discussão específica não é da minha competência. Poderia citar, entretanto, juristas como Afrânio Jardim, que mesmo rejeitando a classificação de estupro considerou que o juiz poderia ter convertido a prisão em flagrante em prisão preventiva, ou a professora de direito Maíra Zapater, que considera que o caso se enquadra como estupro e expôs sua interpretação num vídeo que circulou pelas redes. Mas o que importa aqui são outras coisas: primeiro, o apego ao racionalismo e à aplicação técnica da lei, como se não houvesse diferentes interpretações possíveis; segundo, o apelo do feminismo – pelo menos, de parte significativa dele – ao direito penal como forma de defesa dos direitos das mulheres; finalmente, o papel da mídia no endurecimento da legislação penal, que resultou na inclusão do estupro como crime hediondo e, mais tarde, na classificação, como estupro, de várias práticas antes punidas de maneira mais branda.
Mídia e punitivismo
Comecemos pelo fim: já foi objeto de inúmeras análises o papel da mídia na excitação do clamor público para o endurecimento da legislação penal, a partir da publicidade a crimes que ganham especial repercussão e repulsa justamente porque são noticiados com ênfase e persistência. “A partir do momento em que o fenômeno da violência passa a ser explorado politicamente pelos meios de comunicação social”, diz Alberto Silva Franco, “a opinião pública é conduzida à adoção de uma postura reativa e à exigência de medidas cada vez mais repressivas a fim de que ‘a lei e a ordem’, artificialmente postas em xeque, sejam restabelecidas. Fala-se, então, em ‘luta’ ou em ‘cruzada’ contra o crime e em eliminação ou repressão mais severa do criminoso”.
Silva Franco dá exemplos que relacionam o noticiário com o agravamento da legislação: a Lei dos Crimes Hediondos, de 1990, após a pressão e a disseminação do medo pela mídia diante da onda de sequestros de empresários (casos Martinez, Salles, Diniz, Medina), que levaram mesmo as pessoas mais pobres a temer a possibilidade de serem vítimas daquele tipo de crime. Depois, em 1994, o caso Daniela Perez, com a intensa repercussão midiática – a moça atuava na novela das nove quando foi morta pelo colega que contracenava com ela, e a mãe, autora da novela, se empenhou ao máximo para incluir o homicídio no rol dos crimes hediondos. No ano seguinte, diante do caso de corrupção no Congresso conhecido como “Anões do Orçamento”, surgiu a Lei do Crime Organizado, “cuja virtude máxima é não definir no que consiste o próprio crime organizado”. Poderia ser lembrado também o noticiário sobre crimes cometidos por menores pobres contra pessoas de classe média, invariavelmente detonadores de campanhas para a redução da maioridade penal – sublinho a condição social do agressor porque o famoso caso do índio Galdino, que dormia num abrigo de ônibus em Brasília e foi queimado vivo por um grupo de jovens, entre eles um menor de idade, provocou horror mas nenhuma linha sobre a hipótese de alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O mecanismo é conhecido: excita-se o clamor público e cria-se a justificativa para o endurecimento penal.
O feminismo acabou refém dessa lógica, apesar das melhores intenções. Não por acaso: num artigo publicado há dez anos sobre a Lei Maria da Penha, Nilo Batista mostra que o afloramento do movimento de defesa dos direitos da mulher, nos anos 60 do século passado, coincidiu com o surgimento das teses da criminologia crítica, mas ambos “pouco usufruíram um do outro” e o feminismo acabou se voltando para a criminologia positivista, adotando a ideia de que o gênero, “longe de ser uma construção social, era uma fatalidade biológica que podia conduzir ao crime – como preconizavam Lombroso e Ferrero – sempre que a piedade e os sentimentos maternais da mulher cedessem à paixão ou ao erotismo”.
O gênero como construção social e não como fatalidade biológica: os sexos não têm “naturalmente” qualidades diferentes, esta é uma formulação positivista da qual decorre também a afirmação da oposição entre razão (masculina) e sensibilidade (feminina). Isto deveria dizer algo a respeito do comportamento atual de algumas feministas.
A ingenuidade – no dizer de Maria Lúcia Karam, citada por Beatriz Malcher – da ideia de utilizar o sistema penal como proteção e não como punição levou não apenas ao empenho na aprovação da Lei Maria da Penha – pela qual mesmo uma injúria verbal pode caracterizar violência doméstica – mas também na defesa da caracterização de “feminicídio” para certas circunstâncias qualificadoras do homicídio.
Este é o quadro geral que nos permite entender as mudanças na legislação tipificadora do estupro, objeto de tanta polêmica no caso do ejaculador.
A esquerda positivista
Finalmente chegamos à polêmica que tomou conta do Facebook, na qual os defensores do abolicionismo penal reagiram às vezes com ironia, às vezes agressivamente, contra quem, também identificado à causa, ousava discordar da decisão do juiz que soltou o agressor. Não foi só o argumento tosco de que sugerir interpretação diferente da lei significava transgredi-la – afinal, repetiram, “Moro também ‘interpreta’ a lei”, como se houvesse termo de comparação entre as inúmeras ilegalidades da Lava Jato e esse caso específico –, não foi só a pecha de “esquerda punitiva”, que estaria, para todos os efeitos, assimilada à extrema-direita: foi principalmente o zelo na discussão estrita da técnica, do enfoque “lógico-racional” à luz da “dogmática penal”, como se o direito fosse um mundo à parte, alheio à vida cotidiana. Foi um preciso exemplo de ocultação dos conflitos sociais através da ocultação do debate político sobre eles, que, no dizer de Nilo Batista, encontra “na mais bisonha e elementar linguagem jurídico-penal seu melhor instrumento”. Como no exemplo do debate sobre a questão agrária, reduzido “a umas tantas questões muito singelas: houve esbulho possessório? A terra ocupada era juridicamente improdutiva, ou a ocupação foi ilegal? Houve homicídio? Cabe reconhecer legítima defesa? Mas quem atirou primeiro? Houve resistência à ordem judicial de desocupação?”
Assim, diz Nilo, o debate sobre a tragédia fundiária brasileira cede lugar a “áridas tertúlias jurídicas, incapazes de esclarecer e menos ainda de mobilizar”.
Por que? Porque, como ele mesmo referiu em outro artigo,
“Juristas sofrem de uma doença profissional perigosa, proveniente do contraste entre as altas temperaturas da fundição do discurso do poder e as neves eternas da legalidade compreendida pelo viés positivista, que congela esse discurso na lei. Tal enfermidade nos habilita a perceber conflitos sociais como simples deficiência de normatização, que o inesgotável Estado do bem-estar jurídico tratará logo de suprir, motivo pelo qual adquirimos a capacidade mágica de superá-los com dois ou três artigos e parágrafos. Ficamos sempre um pouco desorientados perante a força bruta que rompe os modelos legais, ansiosos por repousar no porto seguro de alguns incisos e alíneas”.
Numa tentativa de demonstrar como a crítica contundente ao sistema de justiça criminal não pode se limitar a dizer que o sistema penal é produtor de violências, mas precisa “ser capaz de identificar as violências produzidas pelo discurso do campo penal”, a professora Camila de Mello Prando aponta como são frágeis e viciadas as interpretações canônicas a respeito do que sejam “violência ou grave ameaça”, condicionantes para a tipificação do estupro. “Segundo o viés da definição hegemônica doutrinária e jurisprudencial, isto [no caso do ônibus] estaria ausente. Onde está a faca? Onde está a arma? Onde está a ameaça grave passível de ser executada?”
No entanto…
“O que este viés não é capaz de enquadrar na interpretação da “grave ameaça”, e que só pode ser acessado se compreendermos a dimensão da violência de gênero – absolutamente ignorada por uma ignorância (estruturalmente constituída) do campo penal – é que o ato de um homem se masturbando em pé na frente de uma mulher sentada durante sua viagem de ônibus tem a possibilidade de ser constituído como um constrangimento com grave ameaça. Este argumento está ao alcance da cena. Não é um ato de desejo, como imaginam inocentes (?) penalistas, não é um ato de nojo. O pau deste homem é a faca no pescoço da mulher. E isto só se pode ver se há um mínimo de compreensão de como se estruturam as dinâmicas de violência fundadas nas hierarquias de gênero. E isto já é um outro capítulo. Um capítulo de um livro que no campo penal os penalistas – ditos assim no masculino – deliberadamente se recusam a abrir”.
Por fim, caberia assinalar que o caso do ônibus nos leva equivocadamente a pensar que o típico estuprador é alguém como o sujeito que agora está preso – um doente mental, que não consegue se controlar, não sabe o que está fazendo e precisa de tratamento. A propósito, Hugo Souza recorda os estudos referenciais de Vera Regina Pereira de Andrade, que “há mais de dez anos já alertava sobre o equívoco que é a caracterização desse tipo de agressor como “expressão de uma aberração sexual e da busca despudorada do gozo por um certo número de lunáticos”, pois não se trata apenas de uma violência praticada por estranhos na rua, “mas sobretudo, e majoritariamente, nas relações de parentesco (por pais, padrastos, maridos, primos), profissionais (pelos chefes) e de conhecimento em geral (amigos)”. Ou seja, são violências que ocorrem “na rua, no lar e no trabalho, contra crianças, adolescentes, adultas e velhas, tendo sido denunciado contra vítimas desde poucos meses de idade até sexa ou octogenárias e praticadas por homens que nada têm de tarados, desviados sexuais ou ‘anormais’, mas um vínculo forte com a vítima”.
Por isso, diz Hugo:
“Se tivéssemos no Brasil uma imprensa minimamente capaz (desejosa, seria a palavra) de cumprir seu papel de verdadeiramente esclarecer, em vez de apenas se retroalimentar com clarões sensacionais, neste momento os repórteres estariam incumbidos de fazer falar os estudiosos mais sérios e reconhecidos do tema da violência contra a mulher, em vez de correr para repercutir o que têm a dizer precisamente aqueles que só têm a dizer ‘a mais bisonha e elementar linguagem jurídico-penal’, recorrendo às minúcias da letra da lei para vaticinar que ejacular no cangote alheio é crime, ou que é contravenção”.
Se tivéssemos, também, uma esquerda antipunitiva não positivista, não teríamos tido tamanha polêmica nas redes. Sobretudo, não teríamos a automática e desdenhosa desqualificação da pergunta “e se fosse com você?”, reação imediata e recorrente de tantos – principalmente, tantas – que se indignaram com a situação. Entender o sentido dessa pergunta é reconhecer que nada, absolutamente, pode ser analisado do ponto de vista estritamente técnico, porque é da vida humana que se trata, com todas as suas contradições, conflitos e paixões. Refugiada nas neves eternas da legalidade, esta esquerda aparentemente prefere instalar-se no conforto da ética da convicção, que desobriga do enfrentamento com o mundo real, e se contenta com as “áridas tertúlias jurídicas” – a “masturbação sociológica”, na linguagem de um famoso ex-ministro já falecido. Curiosa esquerda, esta, que não parece minimamente interessada em esclarecer ou mobilizar. Se pensarmos no estupro como metáfora do golpe, talvez possamos perceber um aspecto insuspeito do que nos conduz a tamanha inércia e nos leva a naturalizar as muitas violências que, pelo menos em tese, anunciamos desejar combater.
Referências
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal. O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, nº 50. Florianópolis: UFSC, jul. 2005, p. 71-102.
BATISTA, Nilo. Justiça e linchamento (notas ao artigo do prof. George Fletcher). Discursos Sediciosos nº 12. Rio de Janeiro: Revan, 2º semestre de 2002, p. 163-166.
_____________. Só Carolina não viu. Violência doméstica e políticas criminais no Brasil. In: Mello, Adriana Ramos de (Org.). Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editores, 2007.
MALCHER, Beatriz Moreira da Gama. Criminologia feminista e Estado penal. Entre o empoderamento e os desejos punitivos. Revista Transgressões, v. 4, nº 2, Natal, 2016. Disponível aqui.
PRANDO, Camila Cardoso de Mello. O caso do ônibus e a seletividade dos penalistas. Empório do Direito, 2/9/2017. Disponível aqui.
SILVA FRANCO, Alberto. As perspectivas do direito penal por volta do ano 2010. Discursos Sediciosos nº 9-10, ano 5. Rio de Janeiro: Revan, 1º e 2º semestres de 2000, p. 43-64.
SOUZA, Hugo. Seria o “silencioso massacre” crime ou contravenção? Medium, 2017. Disponível aqui.
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