Pedro Marques Lopes |
1- A construção e os primeiros tempos da geringonça convenceram muita gente de que o centro estava definitivamente arrumado do cenário político português. Gerou-se mesmo o consenso de que a partir daquele momento a política portuguesa estaria com dois blocos completamente definidos e que nunca mais haveria, nem governos minoritários, nem acordos fora dos blocos. Foi também decretada a morte do voto útil.
Nunca me deixará de espantar a rapidez como em meia dúzia de meses se tiram conclusões que, basicamente, alteram todo o enquadramento político partidário de décadas. Mas assim foi. O facto de programática e ideologicamente o BE, PCP e PS serem completamente divergentes foi visto como um detalhe; esse pormenor de o PS ter uma visão radicalmente oposta à desses dois outros partidos numa matéria essencial como os compromissos europeus foi vista com um encolher de ombros; a posição face a praticamente todas as questões de política internacional ser quase em tudo oposta não seria problema; o facto de não haver o mais leve consenso em matérias como segurança social, educação e praticamente todas as políticas públicas seria uma coisa que se resolveria.
É verdade que para a tese de quem acreditava que os acordos entre os três partidos alteravam o quadro tradicional da política portuguesa contribuiu uma deriva direitista - chamemos-lhe assim apesar de estes conceitos já pouco quererem dizer - do PSD. Mas, mesmo assim, eram muitíssimos mais os pontos de contacto entre este PS e o PSD da altura do que entre o PS e os seus circunstanciais aliados. Mais, as políticas seguidas pelo PS no governo seriam na essência as seguidas por um PSD que não o da liderança que terminará em janeiro. E, sim, seja Rui Rio, seja Santana Lopes, o PSD será um partido muito mais centrista num futuro próximo.
Concluído o acordo mínimo entre PS, PCP, BE, e terminada a hipótese de Passos Coelho (o PSD não estar na governação no momento em que já se previa que a situação melhorasse era vital para Costa e parceiros) voltar ao governo ficaram ainda mais expostas as insanáveis contradições internas da geringonça. Neste momento é claro que o governo vive numa espécie de limbo: não há política pública relevante em que os três se entendam e não há qualquer possibilidade de implementação de reformas. O que aguenta o governo é a perceção, por cada um dos partidos da geringonça, de que quem acabar com ela será penalizado eleitoralmente e uma tentativa desesperada de agradar a eleitorados que se percecionam como votantes num dos três partidos. O efeito é devastador: grupos mais bem organizados e com maior capacidade de pressão jogam com este bem-me-quer mal-me-quer dos partidos da geringonça pondo em risco a estabilidade orçamental, reformas urgentes são adiadas e o governo anda à deriva tentando agradar a gregos e a troianos. Escusado será dizer que sendo cristalino que não há possibilidade de entendimento por causa de princípios fundamentais estando PCP e BE fora do governo, por maioria de razão será impensável um que os faça fazer parte do governo.
Pode António Costa dizer as vezes que quiser que tentará fazer um acordo com o BE e PCP depois das próximas eleições. A partir de agora a linha será mostrar que os comunistas e bloquistas são muito simpáticos e tal mas que não se consegue governar dependendo deles. Ou seja, um apelo ao voto útil.
Por outro lado, fica pela enésima vez transparente que para que sejam feitas reformas importantes, para que existam políticas públicas sólidas são imprescindíveis acordos entre o PS e o PSD. E não sendo plausível nem desejável que estejam num governo juntos é fundamental para o país que se entendam. Foram, aliás, esses entendimentos que geraram o melhor que a nossa democracia construiu - serviço nacional de saúde, escola pública, segurança social, Europa - numa expressão, as conquistas de Abril. A realidade é tramada.
2- Com a lunática história do regresso à situação de antes da crise, regressou também a conversa das suas causas.
A reposição da situação de há dez anos é das coisas mais estapafúrdias de que me lembro na política portuguesa. Como se fosse possível repor o que quer que fosse depois de uma crise que deixou o país muito mais pobre, com menos gente, com menos recursos e com muito menos capacidade de definir o seu próprio caminho. Mais, não será com as correntes políticas europeias que curaremos a doença, estamos condenados a uma morte lenta enquanto durarem.
Mas a propósito disso voltou a narrativa das culpas da crise de 2007/2008. A mentira do "vivemos acima das nossas possibilidades" foi substituída pela mais subtil "foram os privilégios de algumas classes profissionais e o dar tudo a toda a gente" que afundou o país.
Como não quero nem preciso de repetir tudo o que aqui escrevi sobre as governações de antes da crise, nomeadamente as culpas próprias, os desmandos nas obras públicas, o descontrolo orçamental, lembro apenas o seguinte: vivemos a maior crise financeira desde a Grande Depressão, grandes bancos nacionais e internacionais mostraram ser uma espécie de casas de crime organizado destruindo a vida de milhões e milhões de pessoas e a solução encontrada para evitar a catástrofe total foi reduzir os benefícios sociais e aumentar brutalmente os impostos. A isto tudo acresce o remédio que mostrou apenas aumentar a doença. Essas, sim, foram as razões fundamentais para a crise, não os benefícios, os supostos excessivos privilégios de classes e a imaginária fartazana em que se vivia.
Fonte: DN
26 DE NOVEMBRO DE 2017
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