terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Opiniõ | Uma nada raríssima tristeza

Gostamos de histórias simples. A das Raríssimas foi-nos servida assim, sem nuances, sem dúvidas -- e, se não era claro então tem de o ser agora, a partir de um lado de uma contenda de que não fomos informados. Mas, mais que dizer de um alegado excelente jornalismo, o que sucedeu diz de nós.
Fernanda Câncio
Quase nunca nada é simples. Nem histórias nem pessoas. Dizem-nos isso os grandes tratados filosóficos, a grande literatura e até os textos sagrados. Até os profetas fraquejam, duvidam, caem em tentação, tentam escapar ao destino. Nenhuma grande personagem de romance é monolítica. Karenina arrepende-se de ter querido morrer quando já na linha do comboio: "Que estou a fazer?" Jesus na cruz murmura: "Por que me abandonaste?" O discípulo Pedro trai-o, abjura-o três vezes, e no entanto será o fundador da sua igreja.

Sabemos isso por nós próprios, se formos capazes de nos vermos. Sabemos o quanto somos contraditórios. Sabemos que não somos simples, a preto e branco, e que os outros também não podem ser. E, no entanto, tantas vezes, agimos e pensamos como se fossem. Queremos histórias simples em que saibamos de quem gostar e a quem odiar, em que o bem e o mal estejam claramente demarcados, sem confusões nem neblinas, em que possamos dar gás à indignação, à raiva, ao espírito de turba, ou à adulação santificadora. Assim foi, assim tem sido com o caso da semana. Uma reportagem da TVI, transmitida sábado 9, apresentou-nos uma história assim, sem dúvidas: havia uma associação muito boa criada e dirigida por uma mulher muito má, que a coberto do prestígio e poder granjeados pela sua boa obra praticava desmandos e abusos, e pessoas que a denunciavam.

Aquilo que a reportagem denuncia é, à partida, muito censurável: uma presidente de IPSS que não só tem marido e filho assalariados da dita como fala deles como "os meus olhos e ouvidos aqui" e parece apresentar este último como "herdeiro"; que aufere um salário global de cerca de seis mil euros, incluindo PPR de oitocentos euros, cobrança de quilómetros casa trabalho numa viatura da organização e ainda põe despesas de roupa e supermercado no cartão de crédito da dita. Tudo muito mau. Mas, como nas histórias demasiado simples, devemos olhar melhor, perguntar que estamos a ver e porquê. Vemos gravações de reuniões internas da IPSS em vídeo. Vemos dois ex tesoureiros - portanto ex membros da direção da IPSS --, denunciar e acusar, um deles com anos nessa posição e portanto com amplo conhecimento das contas e corresponsabilidade falando como se não tivesse nada a ver com o que acusa e denuncia. Não vemos a reportagem questionar as responsabilidades de quem conviveu com os desmandos, de quem os avalizou nas contas da organização e porquê. Não nos diz quanto, já agora, auferiam os restantes membros da direção (nomeadamente os tesoureiros em causa) ou sequer quem são, ou qual a estrutura salarial da IPSS - só nos é referido o salário de um consultor que veio depois a ser secretário de Estado da Saúde e o era quando a reportagem foi para o ar, sem que seja dada qualquer informação sobre a adequação do tipo de trabalho por este desenvolvido àquela remuneração. Tudo aquilo que possa desviar o foco do alvo - a presidente da IPSS - é escamoteado. Tudo o que possa temperar a imagem diabolizada dessa mulher é retirado da equação. E o efeito, claro, é o esperado: um levantamento nacional contra ela, um clima de linchamento mediático.

Uma semana depois, e porque esta falou, numa entrevista à RTP (no Sexta às Nove), temos um enquadramento menos simplório do caso. Sabemos que houve denúncias cruzadas - à tutela (ministério da Segurança Social) -- da parte de quem acusa a ex-presidente, e da ex-presidente ao MP contra a sua ex-vice-presidente (é confuso, sim). E se a entrevista da ex-presidente à RTP corrobora algumas das denúncias da reportagem da TVI - desde logo a de uma atitude de prepotência e de auto-engrandecimento e a incapacidade de separar a organização de si mesma, claramente encarando-a como coisa sua -- levanta questões muito sérias: como foi possível transmitir em dezembro um trabalho alegadamente "de investigação" sobre a gestão da Raríssimas sem mencionar o facto de existir, desde julho, um inquérito no MP sobre alegados crimes cometidos pela ex vice-presidente? Que seriedade podemos conferir a uma "investigação" que à luz daquilo que agora se sabe devemos suspeitar ter sido municiada, senão desencadeada, por quem está a ser investigada por aquilo de que a ex-presidente é acusada na reportagem?

Claro que a denúncia contra a ex vice-presidente da Raríssimas pode ser caluniosa; claro que se pode vir a concluir que a ex-presidente é culpada de gestão danosa, que as duas o são ou nenhuma o é. Ou seja, neste momento sabemos muito pouco ainda. Mas temos de saber que a primeira história que nos serviram está viciada, porque não nos apresenta todos os elementos disponíveis, porque nos conduz para conclusões sem nos dar toda a informação que tinha a obrigação de nos apresentar. Chama-se a isso sensacionalismo e manipulação, portanto mau jornalismo - que neste caso chegou ao ponto da mais obscena devassa persecutória e moralista, com a entrevista ao secretário de Estado. Porém muito mais perigosa e preocupante que o mau jornalismo é a alegria com que tanta gente o aceita e incensa e se entrega ao ódio, sem resquício de dúvida ou reflexão, erguendo em turba as tochas para mais uma fogueira. E tudo isso em nome de uma ideia de bem e de bondade e de verdade, claro. Porque estamos todos muito preocupados com as crianças da Raríssimas, não é? E é Natal.

Fonte: DN
Edição 18 DE DEZEMBRO DE 2017

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