Israel celebrou os seus 70 anos na passada segunda-feira, dia 14. Houve festa, polémica e drama. E sobre o drama – 62 mortes em confrontos na fronteira da Faixa de Gaza – que toda a atenção se concentrou. Até porque em Jerusalém a festa se confundiu com a polémica, pois o principal acto público foi a inauguração da nova embaixada dos Estados Unidos. Vamos pois ao drama, até porque importa, como é timbre desta newsletter, ir além da superfície.
Primeiro ponto: que é que se passou realmente nos confrontos para deles resultarem tantos mortos? É certo que o julgamento de muitos se antecipou a qualquer investigação, falando-se logo de “força desproporcionada”, “tiro de snipers” ou mesmo “crime contra a humanidade”. A ideia é que o exército israelita teria disparado de forma indiscriminada sobre uma multidão que se manifestaria de forma pacífica. Hoje sabemos que as coisas não se passaram exactamente assim, e começámos a compreendê-lo quando o grupo radical Hamas, que controla e governa a Faixa de Gaza, assumiu que 50 dos 62 mortos seriam operacionais da organização, e que pelo menos outros três mortos pertenceriam a uma outra organização terrorista, a Jihad Islâmica. Essa contabilidade parece indicar que não houve, no mínimo, se disparou de forma indiscriminada sobre a multidão.
Felizmente já começaram a aparecer relatos jornalísticos e outros testemunhos que ajudam a perceber melhor o que se passou, sendo que de destacar as reportagens do New York Times e do Washington Post que a revista Tablet cita num muito interessante e esclarecedor artigo de Yair Rosenberg, 13 Inconvenient Truths About What Has Been Happening in Gaza. Aí se nota, de forma bastante equilibrada, que, por um lado, “Many of the thousands of protesters on the Gaza border, both on Monday and in weeks previous, were peaceful and unarmed”, mas que, ao mesmo tempo, “Hamas manipulated many of these demonstrators into unwittingly rushing the Israeli border fence under false pretenses in order to produce injuries and fatalities”: “As the New York Times reported, “After midday prayers, clerics and leaders of militant factions in Gaza, led by Hamas, urged thousands of worshipers to join the protests. The fence had already been breached, they said falsely, claiming Palestinians were flooding into Israel.” Similarly, the Washington Post recountedhow “organizers urged protesters over loudspeakers to burst through the fence, telling them Israeli soldiers were fleeing their positions, even as they were reinforcing them.”
Ou seja, queria-se que aquela manifestação fosse mais do que apenas uma marcha, mesmo mais do que uma marcha acompanhada pela queima de pneus e pelo lançamento de alguns “cocktails Molotov”. Por isso mesmo é muito interessante ler o testemunho de um reservista israelita mobilizado naquele dia para guardar a fronteira, Kinley (Moshe) Tur-Paz, fundador e CEO da rede Kibbutz HaDati Educational. Num texto publicado no Times of Israel, e que recomendo que leiam na íntegra – I was at the Gaza border, we did all we could to avoid killing– o autor começa por dar conta do seu constrangimento (“I write these words with great caution, and from a sense of mission”) mas acaba por ser claro sobre aquilo a que assistiu: “I want to testify that what I saw and heard was a tremendous, supreme effort from our side to prevent, in every possible way, Palestinian deaths and injuries. Of course, the primary mission was to prevent hundreds of thousands of Gazans from infiltrating into our territory. That kind of invasion would be perilous, mortally dangerous, to the nearby communities; would permit terrorists disguised as civilians to enter our kibbutz and moshav communities, and would leave us with no choice but to target every single infiltrator. That’s why our soldiers were directed to prevent infiltration, in a variety of ways, using live ammunition only as a last resort.” Mais: “A situation where thousands of people rush you is frightening, even terrifying. It is extremely difficult to show restraint, and it requires calm, mature professionalism. Sixty-two dead is an enormous number. But I can testify from my first-hand experience, that every bullet and every hit is carefully reported, documented and investigated, in Excel spreadsheets. Literally. I was there and I saw it with my own eyes.”
Seja lá como for dificilmente podemos esperar um inquérito independente, como notava o já citado artigo da Tablet: “Because the entire debate around Israel’s conduct has been framed by absolutists who insist either that Israel is utterly blameless or that Israel is wantonly massacring random Palestinians for sport, a reasonable inquiry into what it did correctly and what it did not is unlikely to happen.”
Mesmo assim importa conhecer o que pretendiam, ou pelo menos diziam pretender, alguns dos organizadores da manifestação, que foi designada de “Grande Marcha do Retorno”, e para isso recorro a dois artigos publicados na imprensa dos Estados Unidos:
- No New York Times Ahmed Abu Artema recorre à sua experiência de vida para justificar o porquê de I Helped Start the Gaza Protests. I Don’t Regret It.No coração da sua argumentação está esta passagem: “We have chosen May 15 as the culmination of our protests because that is the day that Palestinians mark the “nakba,” the Arabic word for catastrophe, which is what we call the expulsions from our homes 70 years ago. Whatever solution we negotiate in the future to allow our two peoples to live together peacefully and equally must start with a recognition of this wrong.” Esse reconhecimento pode no entanto ter enormes consequências, pois o autor também especifica que “We are intent on continuing our struggle until Israel recognizes our right to return to our homes and land from which we were expelled.”
- Hussein Ibish, na The Atlantic, num artigo onde reconstitui a história da catástrofe que foi para os palestinianos a derrota na guerra da independência de Israel, sustenta precisamente que é aí que tudo radica, pois trata-se de A 'Catastrophe' That Defines Palestinian Identity. O texto é longo, mas esta passagem é significativa: “While Palestinians do have cultural features that distinguish them from other Arabs, it is their history and, above all, the nakba and its never-ending aftermath, that firmly separates them from all other Arabs. All Palestinians, including those left behind in Israel, shared this experience. And given that most Palestinians today are either exiles, refugees, or living under Israeli occupation—or, at best, live as second-class citizens of Israel itself—their collective social, political, and historical identity centers almost entirely around the shattering experience of the nakba. No other group of Arabs endured this.” Ibish reconhece contudo que “The rupture of the nakba cannot be mended. The state of Israel is a reality that will not disappear.”
A conciliação deste realismo com a reivindicação de um incondicional “direito de retorno” às terras, aldeias e casas que um dia foram dos árabes que viviam no que é hoje o Estado de Israel tem sido um dos maiores bloqueios a qualquer processo de paz, algo que, de novo no New York Times, notava Bret Stephens Gaza’s Miseries Have Palestinian Authors, num texto em que chegava a citar Ahmed Abu Artema. De acordo com o seu ponto de vista a miséria de Gaza não é só culpa de Israel, ou do Egipto, ou mesmo da Autoridade Palestiniana em ruptura com o Hamas, pois é muito culpa da forma como, nestas décadas, os palestinianos agiram. Para sustentar esse ponto de vista dá vários exemplos: “In 1970, Israel set up an industrial zone along the border with Gaza to promote economic cooperation and provide Palestinians with jobs. It had to be shut down in 2004 amid multiple terrorist attacks that left 11 Israelis dead.”(...) “In 2007, Hamas took control of Gaza in a bloody coup against its rivals in the Fatah faction. Since then, Hamas, Islamic Jihad and other terrorist groups in the Strip have fired nearly 10,000 rockets and mortars from Gaza into Israel — all the while denouncing an economic “blockade” that is Israel’s refusal to feed the mouth that bites it. (Egypt and the Palestinian Authority also participate in the same blockade, to zero international censure.)” (...) “In 2014 Israel discovered that Hamas had built 32 tunnels under the Gaza border to kidnap or kill Israelis. “The average tunnel requires 350 truckloads of construction supplies,” The Wall Street Journal reported, “enough to build 86 homes, seven mosques, six schools or 19 medical clinics.”
A conclusão de Bret Stephens é que “No decent Palestinian society can emerge from the culture of victimhood, violence and fatalism symbolized by these protests. No worthy Palestinian government can emerge if the international community continues to indulge the corrupt, anti-Semitic autocrats of the Palestinian Authority or fails to condemn and sanction the despotic killers of Hamas. And no Palestinian economy will ever flourish through repeated acts of self-harm and destructive provocation.” É uma posição que converge com a expressa por Yossi Klein Halevi num artigo na The Atlantic, The Real Dispute Driving the Israeli-Palestinian Conflict, um texto onde se sustenta precisamente que “A cycle of denial has defined the shared existence of neighboring peoples for seven decades”. Neste texto achei especialmente interessante a forma como chama a atenção para o facto de o recente discurso de Mahmoud Abbas, o líder da Autoridade Palestiniana, em que este apareceu a desvalorizar o Holocausto, ter outras passagens igualmente significativas, e chocantes: “The international community missed a more consequential affront in Abbas’s speech: the denial of the Jewish people’s rootedness in the land it shares with the Palestinian people. “Their narrative about coming to this country because of their longing for Zion, or whatever—we’re tired of hearing this,” Abbas told the Palestinian National Council. “The truth is that this is a colonialist enterprise, aimed at planting a foreign body in this region.” Abbas’s “Zion denial” explains much about why the conflict between Israelis and Palestinians remains so intractable. If Israel is merely a colonialist project, rather than the fulfillment of an exiled people’s longing to return home, then it is illegitimate. You don’t make peace with colonialism—you destroy it. Seventy years after the founding of the Jewish state and the beginning of the Palestinian tragedy, peace remains as elusive as ever—in large part because of the pervasive denial, both within Palestinian society and throughout the Middle East, of Israel’s legitimacy, and the hardline response that denial evokes among Israelis.”
Eu próprio também escrevi sobre este tema no Observador, em O mito fundador que é a desgraça dos palestinianos, um texto que parte do leitmotiv da “Grande Marcha do Retorno” para sublinhar o beco sem saída que constitui insistir nessa reivindicação. Lembro mesmo as gigantescas transferências de populações que ocorreram no século XX na Europa e noutros pontos do Levante, sublinhando que elas foram instrumentais para a paz que vivemos nas últimas sete décadas. Em contrapartida, “sublinhar a impossibilidade de chegar a algum acordo de paz enquanto a identidade palestiniana estiver presa à Nakba e à reivindicação do direito de retorno, enquanto persistir numa cultura de vitimização e rejecionismo, o que significa que está prisioneira do conceito irredentista de que a própria existência de Israel é um acto de colonialismo e, por isso, um Estado ilegítimo que tem de desaparecer.E também enquanto, para alimentar esse mito, os mais altos responsáveis palestinianos continuarem a defender que nunca houve judeus na Palestina, que nunca houve sequer um Templo de Salomão no monte onde hoje se situa a Esplanada das Mesquitas em Jerusalém ou mesmo que o Holocausto é uma invenção para justificar o apoio do Ocidente a Israel. Trata-se de um discurso adoptado ao mais alto nível, mesmo pelos supostos moderados.”
Trata-se, no fundo, de aceitar o resultado de uma guerra travada em 1948, uma guerra cujo desenlace estava tudo menos assegurado no momento em que se iniciou, como recordou Esther Mucznik num texto que escreveu no Público sobre a fundação do Estado de Israel, “Esta era a nossa hora histórica”: “A 12 de Maio tem lugar em Telavive a reunião do Governo Provisório que iria decidir a proclamação (ou não) do Estado. Todos os presentes estavam cientes de que uma eventual proclamação seria imediatamente seguida de uma invasão árabe. Para além de Ben-Gurion, que dirigia a reunião, e de outros membros do Governo Provisório, estavam também dois comandantes da Haganah – organização de defesa judaica –, Yigael Yadin e Israel Galili, para fazerem o ponto da situação militar. “Que hipótese temos?”, questiona Ben-Gurion. A resposta de Yadin vem célere: “No máximo 50%...” Mas Ben-Gurion sabia que, independentemente da decisão tomada, os árabes atacariam. Assim pronuncia-se a favor. Cinco dos dez participantes na reunião juntam-se a ele, quatro votam contra. O Estado Judaico será proclamado dois dias depois.” A seguir, como se sabe, apesar de terem de enfrentar cinco exércitos árabes, os israelitas ganharam a sua Guerra da Independência.
Antes de terminar, e por não me querer cingir à abordagem dos confrontos em Gaza, acho que vale a pena chamar a atenção para os diferentes trabalhos realizados pelo Expresso a propósito dos 70 anos do Estado de Israel, quer para a reportagem de Luciana Leiderfarb O princípio da incerteza, quer para a edição especial, e de acesso livre, do Expresso diário da passada segunda-feira, A contradição tem nome de país: Israel 70 anos. Oferece muitos e variados textos, e perspectivas contrastantes, sendo introduzido por uma análise de José Cardoso, Atrás de uma utopia.
Com a esperança de vos ter trazido novos dados e pistas de leitura, mesmo que houve muitos mais ângulos para abordar numa região tão carregada de história e tão marcada por conflitos e radicalismos como aquela a que também chamamos Terra Santa, despeço-mo com votos de bom descanso neste fim-de-semana que agora se inicia.
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