terça-feira, 24 de julho de 2018

Macroscópio – Dos “paladares” de Cuba ao nosso alojamento local: o socialismo é sempre o socialismo

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
Twitter @jmf1957

A única vez que estive em Cuba, há já quase 20 anos, o país estava sair do chamado “período especial” – os anos de enormes dificuldades económicas que se seguiu à queda do comunismo no Leste europeu e à perda dos principais financiadores do castrismo – e, precisamente porque a economia estatal tinha colapsado, o regime autorizara que as famílias abrissem as portas de suas casas e criassem pequenos restaurantes para turistas que ficaram conhecidos por “paladares”. De imediato se multiplicaram estas casas modestas onde se servia uma saborosa comida caseira, pelo que Fidel apressou-se a conter este entusiasmo com a economia privada: cada família só podia ter um “paladar”, e cada “paladar” só podia ter 12 lugares. Mais do que isso permitiria que os mais industriosos “enriquecessem”, porventura num processo que os marxistas designam por “acumulação primitiva do capital”, e isso podia fazer esmaecer os encantos do socialismo e tornar mais evidentes as limitações da economia privada. Com o passar dos anos o limite ao número de lugares passou para 20 e, já sem Fidel aos comandos, para 50, mas a preocupação central mantem-se: ninguém pode enriquecer por obra e graça do seu talento e trabalho. 
 
Não pude deixar de me lembrar destes “paladares” sob vigilância castrista quando assisti, nas últimas semanas, ao debate sobre as limitações ao alojamento local. Nós não vivemos nenhum “período especial” como o cubano, mas tivemos uma bancarrota e uma crise; entre nós não surgiram “paladares”, mas para milhares de famílias o alojamento local foi o oxigénio que lhes permitiu respirar nos momentos de maior aperto. E se estes dois paralelos não fossem suficientes, eis que se andou a debater um limite de sete alojamentos locais por proprietário, uma norma que acabou por cair mas que não seria assim tão diferente da norma “anti-enriquecimento” da Cuba de Fidel. Enfim, detalhes de um debate que as férias parlamentares obrigaram a terminar, porventura sem ponderação suficiente e tempo para aferir do efeito das leis já em vigor e que são bem recentes. Daqui que o tenha selecionado para o Macroscópio de hoje, sem grande esperança de comover corações, mas ao menos deixando alguma informação essencial e algumas reflexões. 
 
Para abrir, o que esteve e está em causa, algo que o Observador explicava em Alojamento Local. O que muda, porque muda e os riscos da mudança e o Jornal de Negócios também expunha, num tom mais descritivo, em Dez perguntas e respostas sobre as alterações ao alojamento local. As questões levantadas no Observador eram quatro – O que muda na lei do alojamento local?; Porque muda a lei do alojamento local?; Os riscos da lei. Da vingança pessoal ao Turismo; e Qual o peso do Alojamento Local em Portugal?– e no texto alinhavam-se argumentos de defensores e críticos da nova legislação. Entre os críticos destaque para Eduardo Miranda, presidente da ALEP, para quem “as alterações à lei vão trazer “consequências gravíssimas para o Turismo, que é o motor da economia”. Eduardo Miranda adverte que “um terço dos turistas que escolhem Portugal ficam em alojamentos locais e muitos vêm pela experiência do alojamento local”. Ou seja: se o setor sofrer, Portugal perde uma vantagem competitiva que tinha para outros países.” Mais: por virtude das alterações das regras dos condomínios, “os titulares de alojamento local passam a estar “completamente reféns do interesse dos vizinhos, levando à possibilidade de birras pessoais. Por hipótese, se houver alguém que tem problemas com o vizinho há anos, pode juntar-se a outros vizinhos com quem se dê bem para estragar o negócio ao vizinho com quem se dá mal”.
 
Quanto a informação de enquadramento, referência ainda ao facto de uma sondagem ter mostrado que os Lisboetas vêem com bons olhos o aumento do turismo na cidade e de existirem dúvidas sobre se Bruxelas tem ou não de aprovar as quotas das câmaras portuguesas para o alojamento local. Há mesmo quem ache que “Isto vai acabar nos tribunais”

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Relativamente ao argumentário, começo por algumas tomadas de posição de quem está ligado ao sector, como Ana Jacinto, Secretária-Geral da AHRESP, uma associação do ramo do turismo, que num texto no Diário de Notícias pediu Mais respeito pelo alojamento local: “Dos estudos que a AHRESP realizou, surge a clara conclusão de que a maioria dos imóveis estavam desocupados antes de serem convertidos em AL. Em Lisboa, por exemplo, grande parte dos edifícios da Baixa estavam devolutos. Aqui sim, o alojamento local é o grande responsável, mas pela reabilitação urbana e por um novo dinamismo, especialmente nos centros históricos das cidades, com impacto em todo o comércio e em toda a restauração.Um outro aspeto, não menos importante, tem que ver com os efeitos positivos que esta atividade tem tido na nossa economia, e que não pode ser descurado. Em 2016, o AL já representa 1% do PIB nacional, tendo criado oito mil postos de trabalho, só na Área Metropolitana de Lisboa.”
 
A estes argumentos económicos juntam-se argumentos que deveriam ser de bom senso, pois recordam que a cidade que hoje se diz perdida para os turistas tinha antes sido perdida ou para escritórios ou simplesmente abandonada, como recordou Vera Gouveia Barros no jornal online Eco, em O monopólio a recuperar o sentido: “Durante anos (e anos em que a população portuguesa estava a aumentar, ao contrário do que sucede agora), escritórios de advogados, consultórios médicos, sedes de empresas ou instalações de organizações várias tomaram conta de prédios de habitação. Nunca foi um problema. Tal como não foi um problema que a nova lei do financiamento dos partidos desse a estes a hipótese de ocupar gratuitamente os imóveis do Estado. Ou que para eles não haja pagamento de IMI. O alojamento local é que é o óbice à disponibilidade de habitações. Mesmo quando estudos mostram que mais de metade das unidades se instalou em imóveis que estavam desocupados.
 
Numa prosa mais pessoal, e por isso mais calorosa, Ana Só Lopes, ainda no jornal i, lembrou em A fúria contra o alojamento local e a turismofobia que “Lisboa reconstruiu-se com o turismo. Todo o discurso que está subjacente à guerra contra o alojamento local e ao turismo radica numa falta de memória do que era a Lisboa degradada de há apenas 10 anos e numa nostalgia de centro histórico paradisíaco que nunca existiu.”
 
Num texto mais longo, mais argumentado e mais sistemático, Ricardo Arroja procurou explicar no jornal online Eco porque é que, com a nova legislação, O alojamento local foi torpedeado. Eis uma passagem do seu texto: “A exemplo da proposta de lei de bases da habitação (...) – que se arroga o direito de definir “a dimensão adequada da habitação” dos portugueses – as alterações legislativas de ontem seguem o mesmo sentido de estatização do investimento e de limitação dos direitos de propriedade dos investidores. Só assim se consegue compreender a atracção do legislador pela definição de um número máximo de estabelecimentos por proprietário.”

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“Estatização do investimento”, “limitação dos direitos de propriedade”: eis dois comportamentos típicos do socialismo cubano e, pelos vistos, tentadores para o socialismo português, mesmo para o mais moderado. E como assim vou mesmo terminar remetendo-vos para o texto de ontem de Helena Matos, Quantos votos vale um senhorio? A prosa merece que passem os olhos por ela, pelo que só deixo este aperitivo, entre o divertido e o trágico, inspirado pelo famoso limite à propriedade de alojamentos locais: “Porquê sete? Porque não dez? Cinco? Uma dúzia? Admitindo que este tecto máximo não foi definido a partir da canção de roda “Sete e sete são catorze/ com mais sete vinte um/ tenho sete namorados/ mas não gosto de nenhum” em que se baseia este limite? Por outro lado a ideia de que existe uma “sobrecarga do alojamento local face ao volume para habitação” é uma mistificação pois o alojamento local não roubou fogos à habitação: a maioria dos fogos afectados ao alojamento local estavam devolutos.”
 
De resto por aqui me fico para começo desta semana, não vos tomando mais tempo. Bom descanso e boas leituras. 
 
 
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