Há textos que a Guerra e Paz tem todo o gosto em divulgar. Por exemplo este que A. M. Pires Cabral escreveu sobre O Bebedor de Tisanas, o último livro de poesia de Américo Brás Carlos, que acabámos de publicar. A. M. Pires Cabral é poeta, ficcionista e ensaísta. Aqui, neste texto, é um poeta que revisita outro poeta. Depois de o lermos, olhamos para O Bebedor de Tisanas com outros olhos.
Das muitas e muito variadas competências que Américo Brás Carlos tem demonstrado ao longo de uma vida cheia e realizada, a de poeta não é certamente a menor nem a menos importante. Não é um poeta que cumpra o protocolo do poeta português, que manda publicar um primeiro livro antes dos 20 anos. Na verdade, estreia-se na poesia aos 40 anos — mas com um livro como Adagio, Romanza e Grave (2012, 2.ª ed. em 2014), revelador de uma oficina poética que se mostrava desde logo adulta e segura, atenta ao exterior e ao concreto, sem descurar o interior e a emoção. A boa impressão deixada por esse livro, que ninguém diria ser obra de estreia, é confirmada pelo segundo livro, As Flores Brancas do Frangipani, em que Américo Brás Carlos continua a demarcar o seu terreno como poeta, mas também a procurar caminhos novos para a sua poesia, como por exemplo a contemplação do pungente drama das migrações que se desenrola em Tarifa e Lampedusa, «onde chegam corpos como se fosse natural». Preste-se um pouco de atenção a estas palavras. «Chegam corpos» — isto é, gente a quem é negada a dignidade do espírito e da razão. «Como se fosse natural» — que melhor maneira de formular a gritante injustiça do modo como o homem se organiza e verberar as desigualdades daí decorrentes? Américo Brás Carlos está de um dos lados da barricada e proclama-o.
O terceiro livro (O Bebedor de Tisanas, de 2020) é uma reconfirmação categórica. O poeta está agora na plena posse dos seus recursos. Apurou o gosto por encontrar as palavras certas, quantas vezes esquivas, para cada momento («Persigo as palavras ajudado por tisanas»; e «as palavras / com que puxo o brilho às cores / desbotadas do passado») e vai diversificando os alvos da sua poesia, em busca de «um milagre / respirando numa folha de papel». O milagre é o poema, naturalmente.
Na primeira parte do livro, insiste na evocação da infância (evocação que às vezes aparenta ser comedida e distante, mas que na verdade é emocionalmente envolvida). A infância — a fonte de que brota tudo, afinal.
Na segunda parte, viaja ao longo do mundo largo, mas, atenção, não termina a viagem sem um novo recuo à infância: «Quanto mais cirando pelo mundo, mais claramente vejo que vem daqui [leia-se: da infância, à maneira de Rosebud] a música que me embalou toda a vida».
A terceira parte é um tributo a Eros, uma glorificação do amor, mas com alguns sábios avisos de permeio, como no poema «Lição»: «Repara bem: / os pássaros marinhos / vão à praia para buscar alimento. / Não para deixar as suas marcas na areia.» Ou, mais incisivamente ainda, no poema «Ao natural», este memento inescapável: «E, naturalmente, / no final deste muito andar, / depois da boa e da má sorte, / depois dos usuais sucessos, reveses, / horas, dias, semanas, meses, / alegrias, angústias, inacções, / asneiras primeiras, segundas, terceiras, / dilações, às vezes, / e alguns desvarios pelo meio, / despontará indiferente o dia / que não desejo, nem receio.» Este dia da indiferença — que outra coisa pode ser senão uma metáfora da morte?
Nenhum comentário:
Postar um comentário