Visita de Fidel Castro a Salvador Allende, no Chile em 1971. Ocasião em que o ditador cubano ofereceu ao comunista chileno um fuzil russo AK-47.
- Péricles Capanema
Poderá acontecer no Brasil a mesma coisa. Terminei, de caso pensado, o último artigo “A produção permanente do caos” com a frase “A nova lei instauraria em larguíssima medida a segurança jurídica no agro brasileiro”. O que fazia aí o “em larguíssima medida”? Com a lei, ficaria parcialmente protegida a segurança jurídica. Por inteiro, não. Permanecem brechas largas — muitas e em vários âmbitos. Pensava eu ao concluir o mencionado artigo nos “resquícios legais”, utilizados pelo governo de Salvador Allende (3-11-1970 – 11-9-1973) para impor legal e gradualmente o comunismo no Chile. Salvador Allende não precisou mudar a legislação, utilizou a que estava valendo, o embasamento legal do país estava repleto de minas despercebidas pela maioria desatenta.
Avanzar ocupando espacios de la institucionalidad burguesa. As normas demolidoras dormiam no fundo das gavetas no meio da despreocupação geral — “avanzar ocupando, paso a paso, espacios de la institucionalidad burguesa”, foi lema socialista intensamente empregado naquela época. Ocupando o poder, com base em leis vigentes, a coligação governante Unidade Popular detonou algumas das minas e, com isso, pôde realizar amplíssimo programa estatizante; à vera, explodiu o país andino. Poderá acontecer no Brasil a mesma coisa. Existem, espalhados na legislação nacional, incontáveis “resquicios legales”; são minas que um dia poderão explodir, detonando o país. Tenho em vários artigos advertido para esse perigo. Oxalá que não soframos a saraivada demolidora, disparada com munição já hoje estocada nos paióis brasileiros. Escrevo para afastar a ameaça, molhar ou eliminar a pólvora. Infelizmente, pelo que percebo, nenhuma repercussão, ou quase nenhuma; é um dos meus numerosos fracassos. Reconheço e admito, a forma pode deixar muito a desejar, mas o conteúdo merece atenção. Lembro aqui “Voz que clama no deserto”, postado em 22-1-2019; “Delenda est Carthago”, postado em 19-2-2019; “Amadurecimentos esperançosos”, postado em 3-7-2019; “Brisa de bom senso”, postado em 7-8-2019; “Pústulas diletas”, postado em 12-12-2020.
Poderá acontecer, não; está acontecendo. Corrijo-me. Na verdade, a assertiva acima, poderá acontecer a mesma coisa entre nós, tem incorreto o tempo verbal. Já está acontecendo. Na campanha desabrida em curso para estatizar o campo brasileiro e entregar a posse das áreas estatizadas aos índios, temos episódio prenunciativo no caso do marco temporal, cuja destruição é visada por ação concertada de frente ampla poderosíssima, animada por utopismos e ambientalismo extremistas. Todo o bloco das esquerdas está lutando encarniçadamente para que a lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973 (governo Médici) continue intacta, enquanto deputados da bancada ruralista querem modificá-la para aumentar a participação de segmentos sociais; enfim torná-la mais inclusiva e participativa. Escrevi em artigo recente (“Ainda é possível salvar os índios”) a respeito, aqui vai: “Opção preferencial pelo entulho autoritário. Agora, a segunda haste da torquês, dilacera igualmente. A esquerda toda, CIMI, PT, PSOL, ONGs filo-comunistas internacionais e seus companheiros de viagem fazem defesa furibunda de um entulho autoritário, a saber, disposições tecnocráticas e autoritárias da lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973 (governo Médici). Para todos eles, é xodó intocável em relação ao ali escrito. Com base nelas, do artigo 231 da Constituição Cidadã, acima mencionada, esperam gradualmente borrifar o agro brasileiro de norte a sul de manchas de efetivo comunismo — salpicação crescente de propriedades estatais entregues a comunidades indígenas. A experiência histórica mostra, teremos grupamentos humanos vegetando na miséria, lanhados pela desorganização interna e de órgãos governamentais, torturados pelo crime, a mais de viver do dinheiro público. É futuro que se deseje?”
Documento revelador. Só agora chego ao ponto crucial do presente artigo. Está na rede, em PDF, o “paper” “Los resquicios legales y el uso das las normas jurídicas que interpretadas constituyen uma herramienta para configurar el derecho descodificado”. [Os resquícios legais e o uso das normas jurídicas que interpretadas constituem ferramenta para configurar o direito descodificado]. Marcos Espinosa é o autor do trabalho esclarecedor do tema; o patrocinador é Carlos Abel Jarpa Webar. Ambos são políticos de expressão no Chile, deputados federais em várias legislaturas. A matéria, simpática ao governo da Unidade Popular, tem dois pontos principais: ressalta a importância dos resquícios legais no governo da referida coligação e destaca o papel central do professor e jurista Eduardo Novoa Monreal (1916 – 2006), assessor jurídico do presidente Salvador Allende, na aplicação e aceitação tal instrumento. Reitero, Marcos Espinosa é simpático ao uso dos resquícios legais e manifesta admiração pelo professor Eduardo Novoa Monreal. É congruente que seja também essa a posição de quem patrocina e divulga o trabalho, o deputado Carlos Abel Jarpa Webar. Para nós brasileiros, o “paper” é revelador especialmente por ser a situação legal nossa enormemente parecida com a descrita no trabalho.
Ninho de guacho legal. O professor Novoa mostra em que terreno grassaram os resquícios legais: “A legalidade chilena de fato é apenas um emaranhado frondoso de normas carentes de sistemática, desordenadas e muitas vezes incoerentes”. Em ocasião diversa, afirmou o professor Novoa: “O sistema legal chileno faz muito tempo perdeu seu caráter orgânico e está convertido em um vastíssimo conjunto de leis desordenadas, carentes de princípios reitores, faltas de unidade, muitas vezes incoerentes e contraditórias”. É diferente do Brasil? Em nada. Dentro desse emaranhado, afirma o autor Marcos Espinosa, nasce o problema, qual norma preferir, qual norma aplicar. E aí o governo de Allende buscou “a norma vigente que permitisse realizar as mudanças estruturais para a implantação do Estado socialista”. Obedecia à estratégia de “criar uma extensa propriedade social que caísse nas mãos do Estado”.
Principais instrumentos. O Chile teve um governo socialista em 1932. Toda sua legislação nunca foi revogada, apenas deixou de ser utilizada. Em 1970, Allende a aplicou. Havia ainda um conjunto de normas legais discricionárias à disposição dos presidentes anteriores, em especial no âmbito trabalhista e das atividades produtivas, que as utilizavam com parcimônia. Allende se valeu delas.
Normas antigas em vigor. O professor Eduardo Novoa Monreal foi atacado por “El Mercurio”, o principal jornal do país, por estar estimulando atividades fora da Constituição. Em carta ao matutino, ele observou: “O Poder Legislativo os convalidou (os resquícios legais) em múltiplas ocasiões, aprovando leis que os modificavam ou derrogavam, total ou parcialmente. O Poder Judiciário os aceitou como leis, dando-lhes expressa aplicação com tal caráter em numerosas decisões. O Poder Executivo e os organismos públicos de maior hierarquia, entre estes a Controladoria Geral da República, impuseram seu acatamento. Seria possível agora discutir sua legitimidade?” Em outra oportunidade, o professor Novoa publicou trabalho explicando o que significava resquícios legais. Para eles, era simples, são “caminhos legais para avançar rumo ao socialismo”. E detalhava, existem “vários preceitos legais aptos a apoiar o programa da Unidade Popular”.
O preço caro do desleixo. Manifestou-se desafiante em certo momento o professor Eduardo Novoa Monreal: “Para mim está muito clara a razão da amargura que produzo nos inimigos do governo ao mostrar a vigência de tais instrumentos legais e sua possível utilização em uma política que leva ao socialismo. Tal amargura é tanto maior quanto mais deles eram desconhecidas tais normas, porque só agora percebem que muito antes do governo atual, quando tinham força política, poderiam tê-las derrogado. Sua ignorância, sua falta de assessoria jurídica competente ou seu erro de cálculo levaram a deixá-las intocadas”.
Meta radical, métodos graduais. Não é raro escutar a falácia de que Salvador Allende propunha socialismo democrático aceitável. É fake new, para utilizar linguagem do momento. Aqui segue um comunicado caseiro da minha doméstica Fact Check. Salvador Allende foi dos fundadores do Partido Socialista Chileno (do qual sempre foi filiado disciplinado) partido que afirmava em sua declaração de princípios: “O Partido aceita como método de interpretação da realidade o marxismo”. A seguir indica como objetivo o fim da propriedade privada dos meios de produção e a ditadura do proletariado: “O regime de produção capitalista, baseado na propriedade privada da terra, dos instrumentos de produção, do câmbio, do crédito e do transporte, deve necessariamente ser substituído pelo regime socialista no qual a dita propriedade privada se transforme em coletiva. Durante o processo de transformação total do sistema é necessária uma ditadura dos trabalhadores organizados”. E proclama o objetivo de transformar a América Latina em união de repúblicas soviéticas: “A doutrina socialista é de caráter internacional e exige uma ação solidária e coordenada dos trabalhadores do mundo. Para realizar este postulado, o Partido Socialista proporá a unidade econômica e política dos povos da América Latina para se chegar à Federação das Repúblicas Socialistas do Continente”.
Desativemos as minas. Reitero o que já venho repetindo há anos, para alguns talvez já realejo incômodo: é preciso desativar as minas. Continuando vigentes, probabilidade alta, um dia elas serão instrumentos para virar o Brasil de pernas para o ar.
ABIM
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