Etnocentrismo é uma visão do mundo onde
o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são
pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas
definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a
dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afectivo, como sentimentos de
estranheza, medo, hostilidade, etc.
Perguntar sobre o que é etnocentrismo é,
pois, indagar sobre um fenómeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e
racionais quanto elementos emocionais e afectivos. No etnocentrismo, estes dois
planos do espírito humano - sentimento e pensamento - vão juntos compondo um fenómeno
não apenas fortemente arraigado na história das sociedades como também
facilmente
Assim, a colocação central sobre o
etnocentrismo pode ser expressa como a procura de sabermos os mecanismos, as
formas, os caminhos e razões, enfim, pelos quais tantas e tão profundas
distorções se perpetuam nas emoções, pensamentos, imagens e representações que
fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós. Este problema não é
exclusivo de uma determinada época nem de uma única sociedade. Talvez o
etnocentrismo seja, dentre os fatos humanos, um daqueles de mais unanimidade.
Como uma espécie de pano de fundo da
questão etnocêntrica temos a experiência de um choque cultural. De um lado,
conhecemos um grupo do eu", o "nosso" grupo, que come igual,
veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo,
acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder
da mesma forma empresta à vida significados em comum e procede, por muitas
maneiras, semelhantemente. Aí então de repente, nos deparamos com um
"outro", o grupo do "diferente" que, às vezes, nem sequer
faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos
como possíveis. E, mais grave ainda, este outro" também sobrevive à sua
maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também
existe.
Este choque gerador do etnocentrismo
nasce, talvez, na constatação das diferenças. Grosso modo, um mal-entendido
sociológico. A diferença é ameaçadora porque fere nossa própria identidade
cultural. O monólogo etnocêntrico pode, pois, seguir um caminho lógico mais ou
menos assim: Como aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto! Como é que
eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles só podem estar errados ou tudo o que eu
sei está errado! Dúvida ameaçadora?! Não, a vida deles não presta, é selvagem,
bárbara, primitiva! Decisão hostil!
O grupo do "eu" faz, então, da
sua visão a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a
natural, a superior, a certa. O grupo do "outro" fica, nessa lógica,
como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível. Este processo resulta
num considerável reforço da identidade do "nosso" grupo. No limite,
algumas sociedades chamam-se por nomes que querem dizer "perfeitos",
"excelentes" ou, muito simplesmente, "ser humano" e ao
"outro", ao estrangeiro, chamam, por vezes, de "macacos da
terra" ou "ovos de piolho". De qualquer forma, a sociedade do
"eu" é a melhor, a superior. É representada como o espaço da cultura
e da civilização por excelência. É onde existe o saber, o trabalho, o
progresso. A sociedade do "outro" é atrasada. É o espaço da natureza.
São os selvagens, os bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois, estes
somos nós. O barbarismo evoca a confusão, a desarticulação, a desordem. O
Selvagem é o que vem da floresta, da selva que lembra, de alguma maneira, a
vida animal. O outro" é o "aquém" ou o "além", nunca o
"igual" ao "eu".
O que importa realmente, neste conjunto
de ideias, é o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma atitude informa os
diferentes grupos.
O que importa realmente, neste conjunto
de ideias, é o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma atitude informa os
diferentes grupos. O etnocentrismo não é propriedade, como já disse, de uma
única sociedade, apesar de que, na nossa, revestiu-se de um carácter activista
e colonizador com os mais diferentes empreendimentos de conquista e destruição
de outros povos.
A atitude etnocêntrica tem, por outro
lado, um correlato bastante importante e que talvez seja elucidativo para a
compreensão destas maneiras exacerbadas e até cruéis de encarar o
"outro". Existe realmente, paralelo à violência que a atitude
etnocêntrica encerra, o pressuposto de que o "outro" deva ser alguma
coisa que não desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo.
Creio que é necessário examinar isto
melhor e vou fazê-lo através de uma pequena estória que me parece exemplar.
Ao receber a missão de ir pregar junto
aos selvagens um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar
no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou
para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si
próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes,
fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre
absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e,
após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu
distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos depois, fez-se amigo de
um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e
mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente, do barulhento, colorido e
estranho objecto que o pastor trazia no pulso e consultava frequentemente. Um
dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio
dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.
A surpresa maior estava, Porém, por vir.
Dias depois, O índio charnou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz,
seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima
nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um
belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. O
índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por
aquele novo e interessante objecto. Quase indistinguível em meio às penas e
contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora
mínimo e sem nenhuma função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no
rosto do pastor. Fora-se o relógio.
Passados mais alguns meses o pastor
também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos
superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na
comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre
evangelização. Seu tema: "A catequese e os selvagens". Levantou-se,
deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que
buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do
seu escritório.
Nelas, arcos, flechas, tacapes,
bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e
sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda
pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu
relógio.
Esta estória, não necessariamente
verdadeira, porém, de toda evidência, bastante plausível, demonstra alguns dos
importantes sentidos da questão do Etnocentrismo.
Em primeiro lugar, não é necessário ser
nenhum detective ou especialista em Antropologia Social (ou ainda pastor) para
perceber que, neste choque de culturas, os personagens de cada uma delas
fizeram, obviamente, a mesma coisa. Privilegiaram ambos as funções estéticas,
ornamentais, decorativas de objectos que, na cultura do "outro",
desempenhavam funções que seriam principalmente técnicas. Para o Pastor- o uso
inusitado do seu relógio causou tanto espanto quanto o que causaria ao jovem
índio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada um
"traduziu" nos termos de sua própria cultura o significado dos objectos
cujo sentido original foi forjado na cultura do "outro". O
etnocentrismo passa exactamente por um julgamento do valor da cultura do
"outro" nos termos dá cultura do grupo do "eu".
Em segundo lugar, esta estória
representa o que se poderia chamar, se isso fosse possível, de um etnocentrismo
"cordial", já que ambos - o índio e o pastor - tiveram atitudes
concretas sem maiores consequências. No mais das vezes, o etnocentrismo implica
uma apreensão do "outro" que se reveste de uma forma bastante
violenta. Como já vimos, pode colocá-lo como "primitivo", como
"algo a ser destruído", como "atraso ao desenvolvimento",
(fórmula, aliás, muito comum e de uso geral no etnocídio, na matança dos
índios).
Assim, por exemplo, um famoso cientista
do início do século, Hermann von Ihering, director do Museu Paulísta,
justificava o extermínio dos índios Caingangue por serem um empecilho ao
desenvolvimento e à colonização das regiões do sertão que eles habitavam. Tanto
no presente como no passado, tanto aqui como em vários outros lugares, a lógica
do extermínio regulou, infinitas vezes, as relações entre a chamada civilização
ocidental" e as sociedades tribais. Isso lembra o comentário, tristemente
exemplar, de uma criança, de um grande centro urbano, que, de tanto ouvir
absurdos sobre o índio, seja em casa, seja nos livros didácticos, seja na
indústria cultural, acabou por defini-los dizendo: "o índio é o maior
amigo do homem".
Em terceiro lugar, a estória ainda
ensina que o "outro" e sua cultura, da qual falamos na nossa
sociedade, são apenas uma representação, urna imagem distorcida que é
manipulada como bem entendemos. Ao "outro" negamos aquele mínimo de
autonomia necessária para falar de si mesmo. Tudo se passa como se fôssemos
autores de filmes e livros de ficção científica onde podemos falar e pensar o
quanto é cruel, grotesca e monstruosa uma civilização de marcianos que capturou
nosso foguete. Também, porque somos os autores destes filmes e livros, nada nos
impede de criarmos um marciano simpático, inteligente e superpoderoso que com
incrível perícia salva a Terra de uma colisão fatal com um meteoro gigante.
Claro, como o marciano não diz nada, posso pensar dele o que quiser.
Assim, de um ponto de vista do grupo do
"eu os que estão de fora podem ser brabos e traiçoeiros bem como mansos e
bondosos. Aliás, "brabos" e "mansos" são dois termos que
muitas vezes foram empregados no Brasil para designar o "humor" de
determinados animais e o "estado" de várias. tribos de índios ou de
escravos negros.
A figura do louco, por exemplo, na nossa
sociedade, é manipulada por uma série de representações que oscilam entre estes
dois pólos, sendo denegrida ou exaltada - como o marciano - ao sabor das
intenções que se tenha. Isto não só ao longo da história, mas também em
diferentes contextos no presente. A expressão "fulano é muito louco"
pode ser elogiosa em certos casos e pejorativa em outros. Em alguns momentos da
história o louco foi acorrentado e torturado, em outros, foi feito portador de
uma palavra sagrada e respeitada.
Aqueles que são diferentes do grupo do
eu – os diversos "outros" deste mundo - por não poderem dizer algo de
si mesmos, acabam representados pela óptica etnocêntrica e segundo as dinâmicas
ideológicas de determinados momentos.
Na nossa chamada "civilização
ocidental", nas sociedades complexas e industriais contemporâneas, existem
diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de
representações negativas do "outro". O caso dos índios brasileiros é
bastante ilustrativo, pois alguns antropólogos estudiosos do assunto já
identificaram determinadas visões básicas, determinados estereótipos, que são
permanentemente aplicados a estes índios.
Eu mesmo realizei, há alguns anos, um
estudo sobre as imagens do índio nos livros didácticos de História do Brasil.
Estes livros têm importância fundamental na formação de uma imagem do índio,
pois são lidos e, mais ainda, estudados por milhões de alunos
pré-universitários nos mais diversos recantos do país. Alguns destes livros
alcançam tiragens altíssimas e já tiveram mais de duzentas edições. Através
deles circula um "saber" altamente etnocêntrico - honrosas excepções
sobre os índios.
Os livros didácticos, em função mesmo do
seu destino e de sua natureza, carregam um valor de autoridade, ocupam um lugar
de supostos donos da verdade. Sua informação obtém este valor de verdade pelo
simples fato de que quem sabe seu conteúdo passa nas provas. Nesse sentido, seu
saber tende a ser visto como algo "rigoroso", sério" e
"científico". Os estudantes são testados, via de regra, em face do
seu conteúdo, o que faz com que as informações neles contidas acabem se fixando
no fundo da memória de todos nós. Com ela se fixam também imagens extremamente
etnocêntricas.
Alguns livros colocavam que os índios
eram incapazes de trabalhar nos engenhos de açúcar por serem indolentes e
preguiçosos. Ora, como aplicar adjectivos tais como "indolente" e
"preguiçoso" a alguém, um povo ou uma pessoa, que se recuse a
trabalhar como escravo, numa lavoura que não é a sua, para a riqueza de um
colonizador que nem sequer é seu amigo: antes, muito pelo contrário, esta
recusa é, no mínimo, sinal de saúde mental.
Outro fato também interessante é que um
número significativo de livros didácticos começa
com a seguinte informação: os índios
andavam nus. Este "escândalo" esconde, na verdade, a nossa noção
absolutizada do que deva ser uma roupa e o que, num corpo, ela deve mostrar e
esconder. A estória do nosso amigo missionário serviu para a constatação das
dificuldades de definir o sentido de um objecto - o relógio ou o arco - fora
dos seus contextos culturais. Da mesma maneira, nada garante que os índios
andem nus a não ser a concepção que eles mesmos tenham de nudez e vestimenta.
Assim, como o "outro" é alguém
calado, a quem não é permitido dizer de si mesmo, mera imagem sem voz,
manipulado de acordo com desejos ideológicos, o índio é, para o livro didáctico,
apenas uma forma vazia que empresta sentido ao mundo dos brancos. Em outras
palavras, o índio é "alugado" na História do Brasil para aparecer por
três vezes em três papéis diferentes.
O primeiro papel que o índio representa
é no capítulo do descobrimento. Ali, ele aparece como selvagem",
"primitivo", "pré-histórico", "antropófago", etc.
Isto era, para mostrar o quanto os portugueses colonizadores eram
"superiores" e civilizados".
O segundo papel do índio é no capítulo
da catequese. Nele o papel do índio é o de "criança",
"inocente", "infantil", "almas virgens", etc.,
para fazer parecer que os índios é que precisavam da ,,protecção" que a
religião lhes queria impingir.
O terceiro papel é muito engraçado. É no
capítulo "Etnia brasileira". Se o índio já havia aparecido como
"selvagem" ou "criança", como iriam falar de um povo - o
nosso - formado por portugueses, negros e "crianças" ou um povo
formado por portugueses, negros e "selvagens"? Então aparece um novo
papel e o índio, num passe de mágica etnocêntrica, vira "corajoso",
"altivo", cheio de "amor à liberdade".
Assim são as subtilezas, violências,
persistências do que chamamos etnocentrismo. Os exemplos se multiplicam nos
nossos cotidianos. A "indústria cultural" - TV, jornais, revistas,
publicidade, certo tipo de cinema, rádio - está frequentemente fornecendo
exemplos de etnocentrismo. No universo da indústria cultural é criado
sistematicamente um enorme conjunto de "outros" que servem para
reafirmar, por oposição, uma série de valores de um grupo dominante que se
autopromove a modelo de humanidade.
Nossas próprias atitudes frente a outros
grupos com os quais convivemos nas grandes cidades são, muitas vezes, repletas
de resquícios de atitudes etnocêntricas. Rotulamos e aplicamos estereótipos
através dos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com a diferença. As ideias
etnocêntricas que temos sobre as "mulheres", os negros", os
"empregados", os "paraíbas de obra", os
"colunáveis", os "doidões", os "surfistas", as
"dondocas", os "velhos", os "caretas", os
"vagabundos", os gays e todos os demais "outros" com os
quais temos familiaridade, são uma espécie de "conhecimento" um
"saber", baseado em formulações ideológicas, que no fundo transforma
a diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico.
Mas, existem ideias que se contrapõem ao
etnocentrismo. Uma das mais importantes é a de relativização. Quando vemos que
as verdades da vida são menos uma questão de essência das coisas e mais uma
questão de posição: estamos relativizando. Quando o significado de um ato é
visto não na sua dimensão absoluta mas no contexto em que acontece: estamos
relativizando. Quando compreendemos o "outro" nos seus próprios
valores e não nos nossos: estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as
coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter
um fim ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas.
Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é
não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem
e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença.
A nossa sociedade já vem, há alguns
séculos, construindo um conhecimento ou, se quisermos, uma ciência sobre a
diferença entre os seres humanos. Esta ciência chama-se Antropologia Social.
Ela, como de resto quase todas as atitudes que temos frente ao
"outro", nasceu marcada peio etnocentrismo. Ela também possui o
compromisso da procura de superá-lo. Diferentemente do saber de "senso
comum", o movimento da Antropologia é no sentido de ver a diferença como
forma pela qual os seres humanos deram soluções diversas a limites existenciais
comuns. Assim, a diferença não se equaciona com a ameaça, mas com a
alternativa. Ela não é uma hostilidade do "outro’, mas uma possibilidade
que o "outro" pode abrir para o "eu".
(do Livro: "O que é
Etnocentrismo", Everardo Rocha, Ed. Brasiliense, 1984, pág. 7-22)
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