Nos últimos dias têm vindo a acumular-se os sinais de que a marca deste Governo e desta maioria – desfazer, revogar, repor, ou seja tudo o que significa contrariar o que foi feito nos últimos anos – começa a inquietar quem segue a realidade portuguesa além-fronteiras. E que “virar a página da austeridade” enfrenta a oposição de Bruxelas. Ontem, por exemplo, acordámos com um conjunto de notícias pouco tranquilizadoras.
Primeiro, a confissão por fonte governamental de que Bruxelas exige défice abaixo de 2,8%, estando o Governo a fazer “ginásticas para contas baterem certas”. O que indica que as contas, afinal, não estavam a bater certas. Pouco depois foi divulgado um relatório arrasador do influente banco alemão Commerzbank onde se escreve que "Portugal é a nova criança problemática" do euro. Porquê? Precisamente pela reversão de muitas das políticas que estavam a ser seguidas. Eis uma passagem desse relatório:
Com as medidas agora anunciadas, a recuperação sustentável está em risco de tropeçar, uma vez mais. Ainda que a política orçamental expansionista possa ajudar a impulsionar a procura do setor privado no curto prazo, qualquer ímpeto positivo deverá ser cada vez mais neutralizado – ou, mesmo, ultrapassado – pelos efeitos de um aumento dos custos do trabalho e da redução das margens de lucro das empresas. As previsões do Governo de que as medidas se pagarão a si próprias no longo prazo não deverão materializar-se.
Tudo isto num quadro de pessimismo sobre a evolução da economia mundial por parte do FMI e quando, de acordo com a UTAO, mesmo para manter o défice de 2015 abaixo dos 3% (se tal aconteceu) a exigência era muita. Mas talvez o que mais tenha alarmado os comentadores foi a divulgação, a semana passada, do relatório do IGCP – o instituto que gere a dívida pública – e das contas da UTAO sobre as necessidades de financiamento nos próximos anos. Ora a conclusão foi que cortar o défice mais devagar obriga a mais 11 mil milhões de dívida. Isto porque “os peritos que dão apoio ao Parlamento fizeram as contas ao programa de financiamento do IGCP, bem como às novas previsões apresentadas pela agência (…) e retiraram uma consequência: com a mudança de estratégia orçamental, só por via das necessidades de financiamento para cobrir o défice do Estado, as necessidades de emissão de dívida aumentam significativamente”. No total aumentam, no período desta legislatura e se tudo corresse de acordo com as previsões do Governo de António Costa, mais 11 mil milhões de euros.
Para Pedro Sousa Carvalho, do Público, não restaram dúvidas:Chegou a conta do banquete socialista. Algo que explica assim: “Esta semana, enquanto ainda se tentava perceber como é que o Governo vai descalçar a bota por ter rasgado os contratos de concessão dos transportes públicos, já as misericórdias se preparavam para pedir indemnizações ao Estado por ter anulado a transferência dos hospitais. Ainda se tentava perceber por que carga de água é que os funcionários públicos hão-de trabalhar 35 horas e os do privado 40 horas e já o Governo anulava os exames do 4.º e do 6.º anos. É a demonstração de que não há almoços grátis (…). As promessas eleitorais e os acordos à esquerda têm um preço e esse preço são 11 mil milhões de euros. E adivinhe quem vai pagar.”
Mas se aquele número foi, digamos assim, o número-choque da semana, a verdade é que… “Era uma vez um país onde os governantes adoravam destruir pilares para construir outros novos. A energia dos seus habitantes era gasta na destruição e construção das estruturas do seu país. Estavam condenados a uma espécie de suplício de Sísifo. É assim Portugal.” A descrição é de Helena Garrido, do Jornal de Negócios, em Assim falha Portugal.
Nesta vertigem de muito mudar um dos temas que passou pelo Parlamento quase sem que houvesse grande discussão pública foi a reversão dos horários de trabalho na Função Pública, que serão de novo de 35 horas, centrando o debate apenas entre um Ministério das Finanças a “fazer ginásticas com os números” e uma CGTP a gritar “Já!” e ameaçando com greves.
Este processo mereceu a Celso Filipe, de novo do Jornal de Negócios, um comentário – As 35 horas e o guloso mil-folhas – onde que “O mil-folhas é para ser comido e já, em dose dupla ou tripla, porque isso faz parte da natureza da gula. O Governo do PS, que anda a distribuir mimos pelas corporações, de forma a arregimentar novos apoios caso seja confrontado com um cenário de eleições antecipadas, tem aqui um desafio importante. Caso ceda aos sindicatos, o Governo ficará definitivamente marcado como vulnerável e à mercê de todas as reivindicações possíveis e imaginárias. Ganhará em simpatias, é certo, mas perderá em tudo o resto.”
A hipótese de cedência aos sindicatos está por agora em suspenso, mas para todos os que não são funcionários públicos, e por isso trabalham no regime geral das 40 horas no sector privado, a decisão, a pressão e a retórica não deixam de surpreender. Até porque, como notou Francisco Ferreira da Silva em A semana de 40 horas, no Diário Económico, “A duração do trabalho no mundo varia, de forma geral, entre as 40 e as 44 horas por semana, sendo bem conhecida a expressão anglo-saxónica “nine to five” que se refere à jornada de oito horas. A própria Organização Internacional do Trabalho, num estudo sobre a duração do trabalho em todo o mundo fala num “amplo consenso de que a semana de 40 horas constitui o nível apropriado”. O trabalho da OIT reconhece mesmo que a maioria dos países tem “limites legais abaixo das 48 horas e a semana de 40 horas é uma realidade em cerca de metade deles”. É caso para perguntar, que razões levam partidos e sindicatos a quererem agora reduzir o tempo de trabalho no sector público, quando a maior parte do sector privado trabalha mais?”
(Já agora: hoje também se ficou a saber qual a diferença entre salários do sector publico e no sector privado, e a diferença é bem significativa a favor dos funcionários públicos, um gap que o diferencial de qualificações pode explicar, pelo menos em parte.)
No mesmo jornal, António Costa pegava neste exemplo das 35 horas, entre outros, para, em As contradições do novo ciclo anti-austeridade, escrever que “Claro que o Governo está a pagar pela estratégia eleitoral de promessas e mais promessas, seguidas das letrinhas minúsculas como as que, às vezes, descobrimos nos contratos quando menos queremos. Criou expectativas e agora tem uma greve geral pela frente marcada pelos ‘seus’, os que, no parlamento, suportam o governo. A pressão dos sindicatos da Função Pública só tem uma classificação: irresponsabilidade.”
A questão é tão sensível que mesmo na bancada do PS há quem manifeste publicamente a sua preocupação pela pressão que está a ser feita. Num texto que merece ser lido com muita atenção, o deputado independente Paulo Trigo Pereira acaba por referir-se em concreto ao problema das 35 horas na sua crónica de estreia como colunista do Observador, Que condições de governabilidade nesta legislatura? Nota ele: “não posso entender a precipitação com que alguns atores políticos e sindicais pretendem implementar de imediato as 35 horas (há já pré-anúncios de greve) sem acautelarem, desde já, o que está no programa do governo (o não impacto orçamental) e ponderarem outras questões relevantes: a abrangência da medida, o tipo de contratos envolvidos, o efeito nas horas extraordinárias, nas escalas dos serviços, nos horários de atendimento ao público, etc. (…) Uma reforma só é durável se for bem preparada e em política, como em muitas outras coisas, a pressa costuma ser má conselheira. A governabilidade nesta legislatura dependerá de fatores externos, que não podemos controlar, mas a nível interno depende da sabedoria e da capacidade de visão estratégica de todos (políticos e parceiros sociais) que querem dar um novo rumo a este país.”
Um texto que complementa bem este é o de Luis Reis, no Económico, com o sugestivo título de O alquimista. Nele, ao reflectir também sobre as condições que o executivo de Costa tem para governar bem, sublinha que “O que torna esta situação grave para os cidadãos – muito bem alheios às intrigas, aos interesses e às gratificações partidárias – é que ela fragiliza imensamente a estabilidade do Governo e, por essa via, degrada inevitavelmente a qualidade da governação e a capacidade de o próprio Governo prever e explicar às pessoas o seu ‘road map’, tornando-se manietado no momento de assegurar aos investidores (estrangeiros e nacionais) que tudo vai bem.”
De facto, ainda antes destes desenvolvimentos – isto é, da aprovação relâmpago das 35 horas na generalidade, da conta dos 11 mil milhões ou das explicações do ministro da Educação sobre o novo sistema de avaliação – já eu próprio escrevera no Observador sobre A volúpia do “desfazer”, o risco de outro resgate. A minha preocupação tinha uma razão simples, que os factos subsequentes vieram reforçar: “Desde que tomou posse que praticamente todas as medidas aprovadas pelo Governo ou pela maioria de esquerda no Parlamento representam mais despesa pública, ou então menos receita. Todas sinalizam que os dias de esforço e exigência são coisas do passado, falemos de férias e feriados ou de exames. Todas tendem a penalizar o investimento privado, mesmo as que acenam com cenouras de milhões vindos de fundos comunitários (fundos que, de resto, são herança deixada pelo governo anterior). Todas apontam para que existe muita preocupação com os efeitos de curto prazo (em especial os que se possam traduzir em popularidade) e muito pouca inquietação com o factura que chegará no dia seguinte.”
Já esta semana Paulo Sande regressou, também no Observador, ao tema da obsessão pela mudança deste Governo, em Os sete pecados veniais do governo da “mudançocracia”. Notando também ele (como Helena Garrido, já citada) de um fenómeno novo, sugere que, daqui para a frente, se actue de outra forma, seguindo outras regras e procupações: “pensar antes de agir, não mudar por mudar, estudar a fundo o impacto das medidas adoptadas antes de aprovar leis a todo o custo, mudando só o que definitivamente for melhor para o país e para os portugueses; governar de acordo com o programa, princípios e ideais do partido que governa (diferente seria uma coligação de governo); avaliar as condições de governabilidade e de sucesso da governação.”
Antes de terminar, regresso a um tema que já ocupou o Macroscópio a semana passada, o de uma das mudanças mais polémicas das últimas semanas, a do sistema de avaliação no Ensino Básico. E faço-o para vos referir mais três textos, dois saídos no Observador e um no Diário de Notícias.
Primeiro, os dois textos muito críticos:
- Não gostavam do Crato? Ora tomem lá o Tiago, que eu mesmo escrevi para o Observador: “Não está em causa apenas uma escola mais facilitista ou reverter medidas de Nuno Crato. O novo modelo de avaliação é muito pior do que isso, é o regresso ao ministério dos professores, não da Educação.”
- O papagaio da Fenprof, de António Barreto no Diário de Notícias, muito cáustico com a forma de actuar do ministro da Educação: “Não ouve nem dialoga com os parceiros, mas "informa-os das premissas". Não ouviu os directores das escolas não se sabe porquê, mas também não interessa, porque "quem governa é o governo". Reformou os exames e as avaliações a meio do ano, o que para ele não tem qualquer espécie de importância. Não falou com várias sociedades científicas, nem com organizações de pais, mas ouviu a Fenprof, que já o felicitou.”
- A escola do saber ser, de Susana Amador, deputada do PS, publicado aqui no Observador: “O legado herdado não nos conduziria a elevados padrões de qualidade educativa, nem a uma escola integradora e inclusiva, onde o saber SER deve ser um dos principais pilares.”
E por hoje fico-me por aqui. Suspeito que, com o aproximar da discussão do Orçamento para 2016, o Macroscópio regressará mais vezes a estes terrenos. Para já, desejo-vos, como sempre, bom decanso e boas (e plurais) leituras.
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