Leo
Daniele (*)
Um depósito contendo objetos
caoticamente amontoados ao sabor dos anos: uma televisão quebrada jazendo ao
lado de uma garrafa aberta de champanhe francês, confinando com uma bola de
futebol estragada; um chapéu de feltro tipo antigo sobre uma pilha de listas
telefônicas ultrapassadas; um velho rádio com sua antena agressivamente
apontada para o teto, bom vizinho de um computador tornado obsoleto, mas que
não foi vendido em tempo hábil, ou seja, antes de perder todo valor... Para muitas
pessoas, o Século XX foi algo assim. Mero rótulo colocado sobre uma realidade
confusa.
Por esse motivo, numerosos são os que
desistem de entender seu significado na majestosa galeria dos séculos que se
foram, atirando para o ar, à guisa de justificativa: “Mas isto não forma
conjunto!”
Isto porque os cenários e os atores
mudaram substancialmente ao longo do Século XX. Basta pensar nos bondes puxados
por burros em meio a prédios sem concreto armado e em ruas geralmente sem
asfalto, do início do século. Ou naquela gente que se movia devagar, os homens
com chapéu, as senhoras com longas saias, uns e outros ignorantes do que fosse
uma televisão ou uma pílula anticoncepcional. Ou naqueles casamentos estáveis
(menos de 2% de separações em 1900 contra quase 20% no ano 2.000).
Como tudo é diferente hoje! Como foram
vertiginosas as transformações que se verificaram em nosso tempo!
Nos primeiros anos do século, um
telefone que toca constitui uma novidade sensacional. Bem menos de 100 anos
depois, a lembrança da conquista da lua provoca tédio!
Tudo aquilo que é lançado como última
novidade torna-se obsoleto em pouco tempo. E à força de tudo precisar ser
hiper-novo, tudo como que já nasce velho, embora com direito a alguns minutos
de “glória”.
Em termos de tipo humano, as alterações
também foram impressionantes. É quase impossível imaginar, encontrando-se num
mesmo salão, um Guilherme II com um Bill Gates. Ou um Clemenceau com um Perón.
Ou um Eduardo VII com um Clinton. Enquanto um se inclina e pergunta “como tem
passado Vossa Senhoria?”, o outro dispara um “oi!” ou “olá!”...
Entretanto, todos esses personagens tão
diversos, mas representativos de seu tempo, viveram num mesmo século!
Chateaubriand (1768-1848) observava:
“Este amor ao feio que nos tomou, este horror do ideal, esta paixão pelos
mancos, aleijados, vesgos, trigueiros, desdentados, esta ternura pelas
verrugas, rugas, escarros, pelas formas triviais, sujas, comuns, são uma
depravação do espírito; ele não nos foi dado pela natureza da qual tanto se
fala” [1].
Mas a arte contemporânea é tal qual ou
até pior do que Chateaubriand descreve. Lê-se no "New York Times":
Para se destacar como modelo, agora é preciso ter algum defeito. “Quando
procuro modelos, ‘ser bonita’ não está na minha agenda”. [2]
Nossa época, como qualquer época da
História, pode ser julgada através do tipo humano que gerou. De pouco
adiantaria conquistar a Lua e todas as estrelas, e ao mesmo tempo desvendar o
micro-universo do átomo, efetuar todas as proezas da tecnociência, atingir um
grau de enriquecimento prodigioso numa estabilidade econômica completa, se
concomitantemente o tipo humano entrasse em visível decadência. Pois o que
interessa sobretudo ao homem, abaixo de Deus, é o próprio homem.
Vamos imaginar que em 100 anos todos os
homens, atingidos por uma enfermidade desconhecida, se tornassem anões. Que
decepção! Por mais que as conquistas da ciência e o desempenho da economia
fossem expressivos, esse século ficaria marcado como catastrófico.
Felizmente, no Século XX isso não
ocorreu no aspecto físico. Que dizer da alma e da personalidade? É a pergunta.
Afirma Plinio Corrêa de Oliveira: “Uma
concepção a-filosófica e a-religiosa da sociedade, meramente econômica e
profissionalista, dá origem ao grande desespero das multidões contemporâneas.
Ontem estas se esbaldavam para fazer capital, hoje para fazer revolução, e já
amanhã para se atirarem no bueiro do miserabilismo niilista, isto é, na
glorificação do andrajo e da miséria, da sujeira, do desmazelo e do caos”. [3]
______
Notas:
[1] Essai sur la littérature anglaise,
II.
[2] Marisa Meltzer, "The New York
Times", in "Folha de S. Paulo", 24-9-13.
[3] Em 11-2-83.
(*) Leo Daniele é colaborador da Agência
Boa Imprensa (ABIM)
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