“Hay muchas más cualidades en los principios religiosos que los que son únicamente políticos, a pesar de que éstos se refieren a los ideales materiales y físicos de la vida.”
Como sabem os leitores desta newsletter, há sempre nela muitas citações, mas nunca começa com uma citação. Hoje abri uma excepção porque a frase acima é, todos os títulos surpreendente se pensarmos que foi escrita por Fidel Castro no seu último artigo para o Granma, o órgão oficial do regime cubano. El destino incierto de la especie humana, assim se chama El último artículo de Fidel Castro que o El Mundo transcreveu na íntegra e que, mesmo algo confuso, tem a particularidade de nele “El Comandante” recordar a sua educação num colégio jesuíta.
Não valerá a pena especular muito sobre o sentido exacto daquela passagem agora que Fidel Castro morreu. Talvez apenas aproveitá-la para saltarmos para uma outra citação sua, esta sobre a sua própria morte: "Irei para o inferno. O calor será insuportável. Mas a dor não será tanta como esperar demasiado do céu, que sempre falta às suas promessas. Quando chegar ao inferno vou conhecer Marx, Engels e Lenine. E aliás você também, porque os capitalistas também vão para o inferno, especialmente quando gozam demasiado a vida." João Almeida Dias cita-a no obituário que escreveu para o Observador, “Ninguém me consegue matar!” A vida e a morte de Fidel, um texto que recomendo vivamente pois, sem falsas modéstias, parece-me ser o melhor obituário publicado até ao momento em toda a imprensa portuguesa.
A arte do obituário é, no entanto, uma velha tradição da imprensa anglo-saxónica, pelo que não surpreenderá que um dos mais notáveis que pode ler tivesse sido o do New York Times. Em Fidel Castro, Cuban Revolutionary Who Defied U.S., Dies at 90, Anthony DePalma recorda não apenas a vida do líder cubano como, sem complexos, recorda o papel que o jornal para que escreve teve na construção do mito: “No one is sure if the force of the revolution will dissipate without Mr. Castro and, eventually, his brother. But Fidel Castro’s impact on Latin America and the Western Hemisphere has the earmarks of lasting indefinitely. The power of his personality remains inescapable, for better or worse, not only in Cuba but also throughout Latin America. “We are going to live with Fidel Castro and all he stands for while he is alive,” wrote Mr. Matthews of The Times, whose own fortunes were dimmed considerably by his connection to Mr. Castro, “and with his ghost when he is dead.”
O Mr. Matthews a que se refere foi o repórter do New York Times que, em 1957, esteve da Sierra Maestra com Fidel numa altura em que ele ainda liderava a guerrilha que, dois anos depois, derrubaria o regime ditatorial de Fulgêncio Batista. Essa reportagem famosa – Cuban Rebel is Visited in Hideout – pode ser lida consultando o arquivo do New York Times neste link, sem esquecer que DePalma é também autor de uma biografia de Herbert Matthews, "The Man Who Invented Fidel", que morreu há muito, em 1977. Já agora os mais interessados podem também ler um pequeno mas interessante texto do Pointer Institute sobre o trabalho de DePalma, The story behind The New York Times’ remarkable Fidel Castro obit.
Dos restantes obituários que li um outro se destaca, o do El Pais, escrito por Mauricio Vicent, que durante muitos anos foi correspondente do jornal em Havana: Muere Fidel Castro, el último revolucionario. Escreve ele, na conclusão do seu retrato deste homem que exerceu o poder absoluto ao longo de 47 anos: “Dictador calavera para muchos, último revolucionario del siglo XX para sus admiradores en el Tercer Mundo, desde hacía tiempo Castro no participaba en las decisiones de gobierno, aunque por su carácter de símbolo hasta el último hilo de vida influyó en el rumbo político del régimen cubano y marcó la línea roja que no debía cruzarse. Ahora ya no existe. Y esta vez sí es de verdad.”
Referência ainda ao obituário do Financial Times, Fidel Castro, former Cuban president, 1926—2016, por defender que, mais do que ser absolvido pela história, Fidel foi ultrapassado pela história: “Castro used the hostility of the US, and the continuing American embargo, to justify maintaining one-party socialism and the persecution of opponents. The embargo became one of his strongest propaganda weapons in his quixotic struggle to prove he would never bow to Uncle Sam. It was an enduring effort but one that left him and his country an anachronism in a changed world. Rather than absolving him, history seemed to have passed him by.”
Sem surpresa não foram poucos os textos que glosaram a famosa frase “a História me absolverá” que usou na sua defesa depois do assalto ao quartel Moncada em 1952. Jorge Almeida Fernandes, do Público, foi um do que o fez ao interrogar-se directamente sobre se A História o absolverá?, para logo lembrar que “A História não trata necessariamente mal os ditadores, sobretudo quando são “grandes” e nacionalistas.” Mesmo assim não deixa de dar a sua opinião: “Em termos de dignidade, Cuba tornou-se numa “Disneylândia da miséria” e, mais tarde, com o turismo, num paraíso de prostituição, como nos melhores tempos da ditadura de Batista. À História bastará narrar.”
Ora é este balanço que importa fazer, e é por aí que vai o Wall Street Journal no seu editorial Fidel Castro’s Communist Utopia - He turned a developing Cuba into an impoverished prison. Aí se recorda que “The Cuba that Castro inherited was developing but relatively prosperous. It ranked third in Latin America in doctors and dentists and daily calorie consumption per capita. Its infant-mortality rate was the lowest in the region and the 13th lowest in the world. Cubans were among the most literate Latins and had a vibrant civic life with private professional, commercial, religious and charitable organizations. Castro destroyed all that.” Mais: “In the past half century Cuba’s export growth has been less than Haiti’s, and now even doctors are scarce because so many are sent abroad to earn foreign currency. Hospitals lack sheets and aspirin. The average monthly income is $20 and government food rations are inadequate.”
De facto, quando se olha para a Cuba é preciso olhar para além do mito revolucionário associado à figura de “El Comandante”, algo que Mário Amorim Lopes fez num pequeno ensaio para o Eco – O legado económico de Fidel Castro, de onde retirei o quadro reproduzido acima –, assim como para o ambiente claustrofóbico que a ausência de liberdades criou na ilha. A isso mesmo me referi num texto que escrevi há dez anos como prefácio do “Livro Negro de Cuba”, uma obra organizada pelos Repórteres sem Fronteiras e que reúne documentos de organizações de direitos humanos, como a Amnistia Internacional. Esse texto foi agora republicado como especial no Observador – A Cuba imaginada e a crua realidade de uma ditadura – e dele reprocuzo uma passagem onde relato uma experiência por mim vivida durante uma visita a Cuba, uma experiência em que pareci reviver o ambiente de medo e repugnância que a vigilância de pides provocavam no Portugal que eu ainda conheci, o Portugal de antes do 25 de Abril:
“O encontro mais sinistro vivi-o durante uma festa de rua na velha Havana. Lugar de artistas e crioulos, beco entalado entre prédios semi-arruinados que se enchia de música e corpos suados nas manhãs de domingo, surgiu-me como uma ilha de alegria após dias a ouvir repetir a frase nacional de Cuba – “No es facil…” –, até que fui abordado por um tipo magro mas oleoso, a pele cinzenta, vestir negro, voz melada e curiosidade enjoativa. Os momentos em que me dirigiu a palavra, a fazer perguntas, a apresentar-se como vigilante, a garantir que estava ali para garantir a minha segurança, ficaram-me marcados como os mais desagradáveis da visita. Livrei-me dele como quem se livra de uma peçonha, com uma desculpa e virando costas, mas não deixei de reparar como se fizera o vazio à nossa volta, como ninguém parecia querer a sua companhia.”
Às vezes são pequenos episódios que revelam a verdadeira natureza de um regime, e isso mesmo recorda Jeffrey Goldberg da The Atlantic, em Fidel Knew the 'Cuban Model' Couldn't Last Forever, um texto onde recorda a semana que passou com o líder cubano e conta um episódio revelador:
“At the end of our long lunch, Fidel announced that we would all be attending a dolphin show at the Havana aquarium the next day. (This is when I began to understand the true nature of dictatorial power: When his son, Antonio, informed Fidel that the aquarium was actually closed the next day, Fidel lifted a finger and said, like a pharaoh, “It will be open tomorrow.” And it was.)”
É por isso estranho que boa parte da cobertura jornalística em Portugal – em especial nas televisões – se tenha centrado mais na aura mitológica de Fidel, esquecendo ou subvalorizando a natureza ditatorial do seu regime. Henrique Monteiro reagiu, no Expresso; a esta realidade uma forma bem frontal numa crónica em que se interrogou sobre se Vamos santificar o Fidel?: “Por isso, meus camaradas jornalistas, façam a justiça de noticiar este evento com o mesmo distanciamento que mostram face a qualquer um. Não se é melhor ou pior por se esperar o julgamento da História. A democracia é tramada, permite julgamentos a curto prazo e a longo ninguém se lembrará de Fidel. Foi mais um, de uma extensa galeria, de que fazem parte Mugabes, Obiangs, Josés Eduardos dos Santos, Erdogans, Pinochets, Videlas e tantos outros.”
Também eu não deixei de procurar contrariar este ambiente num texto no Observador intitulado Um ditador é um ditador. Ponto final, parágrafo. Aí escrevi que “Fidel sobreviveu a todos os demais não apenas porque viveu até aos 90 anos e morreu na cama. Fidel sobreviveu-lhes porque, mesmo tendo cedido as rédeas do poder ao seu irmão Raúl, morreu numa Cuba moldada à sua imagem e semelhança, subjugada à sua vontade, tão pateticamente “revolucionária” como o ancião que já só víamos em raras aparições envergando lustrosos fatos de treino.”
Ainda no Observador um conjunto de outros textos reflectiram sobre a aparente duplicidade moral com que muitas vezes se avaliam este tipo de regimes:
- Não são “erros”, mas crimes, de José Milhazes, que viveu longos anos na antiga União Soviética: “Se Catarina Martins tivesse empregue a palavra "crimes" não teria coragem de lhe chamar "grande homem". Então um grande homem podia tratar tão mal as minorias [homossexuais] defendidas com tanto ardor pelo Bloco?”
- Ninguém lava a história como os comunistas, de Alexandre Homem Cristo: “Décadas de romantismo à volta de Fidel Castro tornaram menos óbvio para o mundo que ele não passou de um ditador como outros. Eis a demonstração de força da máquina comunista de revisão da história.”
- Fidel Castro, o 25 de Novembro e a opção ocidental, de João Carlos Espada, que estabelece um paralelo entre a forma como em Portugal a democracia foi salva em 1975 e o que se passou na ilha caribenha: “Convém recordar que Fidel impôs uma paupérrima prisão em Cuba com base na infeliz dicotomia do "fascismo ou revolução" — a que o nosso 25 de Novembro de 1975 felizmente pôs cobro. Pelo menos até agora.”
Da imprensa internacional gostava de destacar o excepcional trabalho do El Pais, onde encontrei a maior variada de textos de análise e opinião, por regra de grande qualidade. Alguns destaques:
- Dejar de ser leyenda y dejar de ser, um magnífico texto do escritor Jorge Edwards, que foi embaixador em Havana do governo de Salvador Allende e que aqui defende que “Fidel luchó con dureza contra un estalinismo viejo para imponer el estalinismo suyo”. Mais: “La Revolución Cubana, desde sus orígenes, fue una revolución militar socialista. Tenía que combatir siempre. Ahí estaba su sentido, su justificación y, a la vez, su talón de Aquiles. Ahora me acuerdo de los niños en edad escolar marchando por las calles de La Habana armados con fusiles de palo y gritando consignas. La primera letra del alfabeto era la F de Fidel; la segunda, la CH del Che Guevara. Parece una broma mal intencionada, pero no lo es.”
- Good bye, Lenin!, uma análise muito interessante e original de Rubén Amón, onde se argumenta que “Fidel Castro fue momificado en vida antes de morir, convertido en fetiche y reliquia de su hermano Raúl.”
- La herencia en América Latina, um texto onde se procura responder a uma pergunta que hoje tem um sentido ainda maior, a de saber ¿Cómo fue posible que el régimen castrista resistiera tanto? Curiosamente o articulista recorre ao diagnóstico de antigo embaixador britânico em Cuba, David Thomas, que dá uma resposta em quatro pontos: “1) La revolución cubana era, de origen, made in Cuba, no impuesta por los tanques soviéticos, un producto criollo. 2) La personalidad del líder, irrepetible, insustituible, irremplazable en el panorama histórico latinoamericano. 3) El papel de EE UU (y, en su interior, el contraproducente papel del exilio) en "ayudar" a la revolución con su política errática durante casi 40 años entonces (ahora casi 60). y 4) La contribución del subsidio soviético en solamente tres décadas.”
- El ‘Granma’ nunca llegó a su destino, onde Jan Martínez Ahrens recorda que Fidel morreu no exacto dia em que passavam 60 anos sobre a data da partida de Vera Cruz, no México, do barco que levaria os guerrilheiros castristas até à Sierra Maestra: “Pero los resultados fueron tristes, muy alejados de la utopía de aquellos que subieron al Granma. El sueño nunca se cumplió y, de algún modo, el barco no llegó a puerto. Castro, más que salvar a su patria, construyó un régimen a su imagen y semejanza. Decidió encarnarse en revolución y cerró la puerta a todo cambio. La misma Cuba, la más resplandeciente isla del Caribe, se hundió lejos de sí misma. Sin democracia, sometida a un sistema represivo y paranoide, su ultradependiente economía se desmoronó y perdió el tren de la tecnología hasta convertirse en un parque arqueológico del socialismo del siglo XX.”
A terminar, mais três sugestões, aqui reunidas por serem contributos de algumas das vozes mais autorizadas no que toca a compreender Cuba (e a América Latina). Começo por uma nota de Jon Lee Anderson, grande repórter da New Yorker e autor de uma grande biografia de Che Guevara, Postscript: Fidel Castro, 1926-2016. Escreve ele que “For Cuba’s young people, many of whom were mere children when he retired, Fidel was already an obscure totem, a grandfather figure given to making pronouncements about issues that had little to do with their lives. With growing numbers of Cubans working independently of the state—self-employed cuentapropistas: taxi drivers, cooks, waiters, barbers, handymen—Fidel’s revolutionary exhortations had come to be regarded as the quaint utterings of a old man whose day had come and gone.”
Já Mary Anastasia O’Grady é a grande especialista do Wall Street Journal em América Latina, sendo que na sua coluna For Cubans, the Long Wait Is Over não acredita que o regime possa evoluir sob a direcção do irmão/sucessor, mas tem esperança que as mudanças acabem por ocorrer por ter desaparecido o patriarca que ainda era a referência mais forte da ditadura habanera: “On the flip side, Raúl is hated and economic conditions on the island are getting worse. Cuban blogger Yoani Sánchez captured the sentiments of millions when she tweeted about Fidel: “His legacy: a country in ruins, a nation where the young don’t want to live.” She also observed that “the repression against activists has increased especially in recent days” and that the regime is now preparing for a “canonization.” (...) But a regime that has lived on fear has cremated its most powerful symbol of terror. That’s the best reason to hope for a brighter future.”
Por fim a curiosa, e perspicaz, análise de Andrew Marr que, no britânico The Times, explicou The invention of Marxism’s Mr Cool. De facto, como ele recorda, “The image of Fidel Castro beamed around the world earned him the adoration of a generation of student revolutionaries. It disguised the realities of a totalitarian regime”. Para que isso acontecesse não bastou a imagem icónica e crística de Che Guevara, foi necessário que o mesmo fotógrada ajudasse o líder máximo a ter a imagem certa para uns anos 1960 cheios de movimentos juvenis de contestação: “Korda’s images of Castro arrived in the West at the best possible moment for this new marketing blitz. The 1960s counterculture revolution was in full swing and visual imagery was crucial to the rebellion — from the acid-art of thousands of LP covers, to scatological cartoons and cheaply printed T-shirts. Young Americans and young Western Europeans who wanted to make a leftist protest against their parents and governments needed pictures as in-their-faces offensive as possible. Cool Marxist Castro fitted the bill.”
Claro que há mais, muito mais, um pouco por todo o lado, mas espero ter, com esta selecção, orientando os leitores do Macroscópio para alguns dos textos que me pareceram mais interessantes. Mesmo assim resultou uma newsletter que, em dimensão, rivaliza com os discursos de Fidel, mas disso peço desculpa, pois não estou a pedir meças nesse campeonato de resistência.
Pelo contrário, deixo-vos por hoje, com desejos de que tenham um bom descanso.
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