terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O Marcelismo e os lesados


O mundo está cheio de injustiças. E a tendência natural das pessoas de bem é, podendo, tentar ajudar.
Tiago Freire
Tiago Freire 20 de Dezembro de 2016 às 00:01

Mas há uma diferença entre ajudarmos um familiar, um vizinho ou qualquer outra pessoa, ou quando essa ajuda é protagonizada por um representante oficial do Estado português, enquanto tal.

Vem isto a propósito de dois episódios dos últimos dias, que ilustram como a boa vontade e um certo desejo de justiça - sempre subjectiva - podem levar os políticos a pisar o risco do que são os seus poderes e, necessariamente, a incorrer em tratamentos desiguais.

Primeiro foi o Presidente da República que, sensibilizado pelo anunciado fim do Teatro da Cornucópia, "invadiu" o palco deste e, perante um envergonhado Ministro da Cultura, pediu que se analisasse para a companhia um potencial estatuto excepcional, através de apoio estatal.


Ontem, tivemos o segundo "round" da cerimónia de assinatura do acordo das autoridades com os lesados do BES. O primeiro foi em Março e teve algumas diferenças: estava lá Carlos Tavares em vez da sua sucessora, Gabriela Figueiredo Dias; assinou-se mesmo um papelinho; anunciou-se a expectativa de ter o dossier fechado em dois meses; e, pormenor, estava lá também Mário Centeno. Ontem, não tivemos assinatura, não tivemos um representante das Finanças na primeira linha. Aliás, nem sequer tivemos solução, apenas mais um anúncio de algo que vai ser desenhado e que pode ou não ser aceite individualmente. Fogo de vista, portanto.

Quanto à tal solução, nada se sabe oficialmente. O mesmo Primeiro-Ministro que acolhe na sua residência duas cerimónias públicas sobre o tema não acha necessário dar esclarecimentos sobre o que está em cima da mesa, ou responder a perguntas. O que se sabe é que o Estado patrocina uma solução, que aparentemente sobrecarrega os bancos do sistema via fundo de resolução. No fim, quem paga a conta? Entre os contribuintes (se houver qualquer tipo de garantia pública) ou os clientes dos bancos, é por aí que andará a resposta.

Os clientes mereciam ser lesados? Certamente que não. Houve falhas de supervisão? Parece-me claro que sim. Mas o mesmo pode ser dito dos pequenos investidores que colocaram dinheiro em acções do BES no seu último aumento de capital. E quem fala no BES fala no Banif e em tantos outros casos. 

Aplicando-se a lei, o buraco estava lá, e a solução lógica seria o recurso aos tribunais. Se estes não são solução, pelo custo e pela morosidade, é aí que o Governo pode começar por mexer, para casos futuros deste e de todos os tipos. Ou reforçar a supervisão para minorar novos problemas. Esse sim, é o seu papel. E não inventar soluções à medida para grupos mais organizados, mais mediáticos ou simplesmente mais chatos. 

Enquanto Passos era de um formalismo quase autista - mas que garantia pelo menos a segurança jurídica de se saber com o que se conta - Costa é um pragmático, vê um problema e resolve-o, mesmo que para isso tenha de fazer uma lei "geral e abstracta" mesmo à medida do BPI ou do BCP, por exemplo. 

Este novo "Marcelismo", este voluntarismo dos afectos, nasce da escolha de resolver um determinado problema, e não da obrigação de o fazer. E esse é o perigo para o futuro: o que dirá o Governo ou o Presidente quando escolherem não resolver um determinado problema? Vão, então, justificar-se com a lei ou mandar os queixosos recorrer aos tribunais?

Fonte:jornaldenegocios

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