domingo, 15 de janeiro de 2017

A jurisprudência não acha graça ao "maricas" do Ricardo Araújo Pereira

É "em nome do povo", ainda que a procuração da respetiva outorga de poderes permaneça em local desconhecido há anos, que os tribunais administram a justiça. E, ao contrário do que os jornais aparentam, não são os grandes casos que consomem o quotidiano dos juízes, procuradores, advogados, funcionários, computadores e impressoras. Pelo contrário: são os pequenos processos, aquelas coisas que, sinceramente, não interessam muito a não ser para as próprias partes, as chamadas bagatelas penais, que canibalizam os tribunais, fornecendo uma espécie de radiografia do chamado País real.
Como, por exemplo, os primeiros casos deste observatório alternativo da justiça, "Em nome do povo": a questão que hoje se coloca vem a reboque da polémica pré-Natal entre Ricardo Araújo Pereira e alguns movimentos LGBT. Afinal, chamar "maricas" é ou não ofensivo? Pode apelidar-se alguém de maricas, sem que com isso se esteja a imputar uma certa e determinada orientação sexual?

Nos idos de 1998, um homem foi condenado pelo homicídio da mulher. O arguido alegou ter sido "tomado por emoção violenta", uma vez que apanhara a companheira "beijando outro homem, numa rua da Amadora" e, ainda por cima, ela dirigiu-lhe "um sorriso" quando deu pela sua presença. Isto é de levar alguém à loucura. Porém, como não reagiu imediatamente e só cometeu o crime horas depois, em casa, o Supremo Tribunal de Justiça desconsiderou o argumento. O mesmo não fez quanto ao facto de o homicida ter alegado ainda que a sua mulher o tinha chamado de "corno", "maricas", "impotente" e "frouxo". Isto sim, gerou, segundo os conselheiros, "um estado de grande exasperação no arguido, fazendo diminuir consideravelmente a sua culpa".

Dez anos antes, os conselheiros do colendo Supremo Tribunal terão queimado muitas pestanas a estudar, analisar, refletir, ponderar o seguinte caso: Em 1983, enquanto passavam férias em Portugal, a mulher chamou o marido, "na presença de várias pessoas, "maricas" e "disse que ele não prestava para nada na cama". "Expressão aquela", anotaram os conselheiros, sinónimo de indivíduo "efeminado", "homem invertido", seja lá o que isso for. Quanto ao "não prestar para nada na cama", quando dito pela mulher, significa, sempre de acordo com a mais elevada jurisprudência, que "ele e sexualmente incapaz". Tudo isto foi, obviamente, considerado fundamento para a dissolução do casamento.

Já em 2002, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou como "fundamento de divórcio" a circunstância de uma mulher apregoar perante amigos, conhecidos e até a própria filha que o marido era "maricas". O problema, porém, foi mais complicado para julgar: é que, já depois de o processo estar a correr, o casal, ainda que a espaços, voltou a partilhar o leito. Conclusão: se chamar "maricas" é fundamento para divórcio, é "causa de exclusão" o facto de marido e mulher já depois dos factos "terem passado a dormir novamente juntos e a manter relações sexuais, ainda que depois tenham passado a dormir em quartos separados". Aparentemente, a questão da alegada "mariquice" foi ultrapassada.

Mais abaixo no mapa, em Évora, os juízes desembargadores analisaram, em 2008, o recurso de um arguido condenado em primeira instância pelos crimes de ofensa à integridade física simples e um de injúrias. E qual foi a injúria? "No dia 5 de Agosto de 2006, depois de lhe ter desferido os pontapés e o murro, quando se encontrava a abandonar o local, o arguido, em público, aos gritos e de forma exaltada, dirigiu as seguintes palavras: "maricas", "panasca"", segundo os elementos da primeira instância. Nota: o caso envolveu dois cunhados.

No recurso para o Tribunal da Relação de Évora, o condenado alegou que as expressões "proferidas no circunstancialismo em que foram proferidas" (sic), no meio da porrada, "entre dois indivíduos ainda jovens e naturais de um meio rural, não podem nem devem ser consideradas como discriminatórias ou ofensivas do bom nome e honra". Negando ainda alguma vez ter pretendido referir-se à "orientação sexual" do cunhado. Lá está: maricas no sentido de medroso. Quanto ao "panasca" é que já é mais difícil encontrar outro sentido que não panasca. Deixemos a hermenêutica para os veneráveis desembargadores da Relação de Évora: "Se é verdade que a vida é composta de mudança, não é menos certo que nenhum homem, no seu estado normal, e ainda que seja homossexual, aceitará que alguém lhe chame "maricas" ou "panasca", a menos que se encontre num ambiente de brincadeira e com pessoas a si chegadas e já predisposto a alguma brejeirice". O melhor é o humorista Ricardo Araújo Pereira não apostar em piadas com "maricas". A jurisprudência não acha graça.

Fonte: DN | 15-01-2017

carlos.lima@dn.pt

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