É
"em nome do povo", ainda que a procuração da respetiva
outorga de poderes permaneça em local desconhecido há anos, que os
tribunais administram a justiça. E, ao contrário do que os jornais
aparentam, não são os grandes casos que consomem o quotidiano dos
juízes, procuradores, advogados, funcionários, computadores e
impressoras. Pelo contrário: são os pequenos processos, aquelas
coisas que, sinceramente, não interessam muito a não ser para as
próprias partes, as chamadas bagatelas penais, que canibalizam os
tribunais, fornecendo uma espécie de radiografia do chamado País
real.
Como,
por exemplo, os primeiros casos deste observatório alternativo da
justiça, "Em nome do povo": a questão que hoje se coloca
vem a reboque da polémica pré-Natal entre Ricardo Araújo Pereira e
alguns movimentos LGBT. Afinal, chamar "maricas" é ou não
ofensivo? Pode apelidar-se alguém de maricas, sem que com isso se
esteja a imputar uma certa e determinada orientação sexual?
Nos
idos de 1998, um homem foi condenado pelo homicídio da mulher. O
arguido alegou ter sido "tomado por emoção violenta", uma
vez que apanhara a companheira "beijando outro homem, numa rua
da Amadora" e, ainda por cima, ela dirigiu-lhe "um sorriso"
quando deu pela sua presença. Isto é de levar alguém à loucura.
Porém, como não reagiu imediatamente e só cometeu o crime horas
depois, em casa, o Supremo Tribunal de Justiça desconsiderou o
argumento. O mesmo não fez quanto ao facto de o homicida ter alegado
ainda que a sua mulher o tinha chamado de "corno",
"maricas", "impotente" e "frouxo". Isto
sim, gerou, segundo os conselheiros, "um estado de grande
exasperação no arguido, fazendo diminuir consideravelmente a sua
culpa".
Dez
anos antes, os conselheiros do colendo Supremo Tribunal terão
queimado muitas pestanas a estudar, analisar, refletir, ponderar o
seguinte caso: Em 1983, enquanto passavam férias em Portugal, a
mulher chamou o marido, "na presença de várias pessoas,
"maricas" e "disse que ele não prestava para nada na
cama". "Expressão aquela", anotaram os conselheiros,
sinónimo de indivíduo "efeminado", "homem
invertido", seja lá o que isso for. Quanto ao "não
prestar para nada na cama", quando dito pela mulher, significa,
sempre de acordo com a mais elevada jurisprudência, que "ele e
sexualmente incapaz". Tudo isto foi, obviamente, considerado
fundamento para a dissolução do casamento.
Já
em 2002, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou como
"fundamento de divórcio" a circunstância de uma mulher
apregoar perante amigos, conhecidos e até a própria filha que o
marido era "maricas". O problema, porém, foi mais
complicado para julgar: é que, já depois de o processo estar a
correr, o casal, ainda que a espaços, voltou a partilhar o leito.
Conclusão: se chamar "maricas" é fundamento para
divórcio, é "causa de exclusão" o facto de marido e
mulher já depois dos factos "terem passado a dormir novamente
juntos e a manter relações sexuais, ainda que depois tenham passado
a dormir em quartos separados". Aparentemente, a questão da
alegada "mariquice" foi ultrapassada.
Mais
abaixo no mapa, em Évora, os juízes desembargadores analisaram, em
2008, o recurso de um arguido condenado em primeira instância pelos
crimes de ofensa à integridade física simples e um de injúrias. E
qual foi a injúria? "No dia 5 de Agosto de 2006, depois de lhe
ter desferido os pontapés e o murro, quando se encontrava a
abandonar o local, o arguido, em público, aos gritos e de forma
exaltada, dirigiu as seguintes palavras: "maricas",
"panasca"", segundo os elementos da primeira
instância. Nota: o caso envolveu dois cunhados.
No
recurso para o Tribunal da Relação de Évora, o condenado alegou
que as expressões "proferidas no circunstancialismo em que
foram proferidas" (sic), no meio da porrada, "entre dois
indivíduos ainda jovens e naturais de um meio rural, não podem nem
devem ser consideradas como discriminatórias ou ofensivas do bom
nome e honra". Negando ainda alguma vez ter pretendido
referir-se à "orientação sexual" do cunhado. Lá está:
maricas no sentido de medroso. Quanto ao "panasca" é que
já é mais difícil encontrar outro sentido que não panasca.
Deixemos a hermenêutica para os veneráveis desembargadores da
Relação de Évora: "Se é verdade que a vida é composta de
mudança, não é menos certo que nenhum homem, no seu estado normal,
e ainda que seja homossexual, aceitará que alguém lhe chame
"maricas" ou "panasca", a menos que se encontre
num ambiente de brincadeira e com pessoas a si chegadas e já
predisposto a alguma brejeirice". O melhor é o humorista
Ricardo Araújo Pereira não apostar em piadas com "maricas".
A jurisprudência não acha graça.
Fonte: DN | 15-01-2017
carlos.lima@dn.pt
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