A jornalista Tânia Rei foi até ao heliporto de Macedo de Cavaleiros conhecer as caras e as histórias do Helicóptero do INEM sediado em Macedo de Cavaleiros.
Vieram autoestradas e túneis. Ainda assim, Trás-os-Montes continua demasiado longe doshospitais de referência.
A equipa do Heli 3, em Macedo de Cavaleiros, coração do nordeste, chegou em 2010. Tem hélices na vez das asas, mas para muitos é um autêntico anjo da guarda. É composta por quase 60 profissionais, entre médicos, enfermeiros, pilotos e técnicos de manutenção. Dos cinco helicópteros de socorro existentes no país, é aquele que mais vezes é chamado. Muitas vezes, faz toda a diferença quando é preciso encurtar distâncias e fazer render cada minuto.
O Ministério da Saúde, em 2010, na altura com Ana Jorge a assegurar a pasta, quis colmatar as gigantes assimetrias entre o litoral e o chamado interior. À data, eram dois os meios de socorro aéreos com estas características – um no Grande Porto, outro na Grande Lisboa. Serviam com eficácia o resto do país no caso de missões secundárias, como o transporte de doentes entre unidades hospitalares. No caso de missões primárias, acidentes ou doença súbita, a realidade complicava-se, mais se somarmos o facto de as Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação, (VMER) não abundarem. Refira-se que o distrito de Bragança, onde está localizado este meio aéreo, tem apenas uma ao serviço, para doze concelhos. No vizinho, Vila Real, são duas para valer a catorze.
1 abril de 2010. O Dia das Mentiras em que a assistência mais rápida passou a ser verdade. Um helicóptero de socorro do Instituto Nacional de Emergência Médica de Portugal (INEM) vinha para Macedo de Cavaleiros, geograficamente o centro do distrito de Bragança.
“A nós o gelo não nos bate nas rodas”
Cada vez que há uma chamada para uma missão, preparam-se para voar dois pilotos, um médico e um enfermeiro.




O médico Filipe Serralva (à esquerda) e o piloto Diogo Pina (à direita)

A VMER do distrito de Bragança está sediada na capital distrital que, refere o médico Filipe Serralva, ao serviço do Heli 3 desde o início, “é muito periférica”, o que faz com que o resto da região fique desprotegida. “Há zonas em que o doente para chegar ao hospital demora uma hora e meia, uma hora e quarenta minutos”, lembra Filipe Serralva. A situação pode ser vista ainda de outro modo: “Para chegar um meio de socorro diferenciado ao doente, com um médico, um enfermeiro e um pequeno kit de Unidade de Cuidados Intensivos, que é o que leva o helicóptero ou uma VMER, pode demorar-se entre cinquenta minutos a uma hora. Isso é intolerável, principalmente no caso de acidente ou de doença súbita”.
Na base deste Heli 3, onde a equipa recebeu o BPS, a alegria nos rostos é geral quando se fala das vidas que foram salvas. Foram muitas. No entanto, “não é só a vida que se salva”. Com o trabalho destes profissionais, “pode salvar-se uma função, ao evitar que se perca um braço, a visão ou evitar que alguém fique paraplégico”, remata Filipe Serralva. Quando o resultado final não é o mais feliz, fica a sensação de “ajudar a fazer o luto”, uma vez que tudo o que estava ao alcance foi feito.
Uma região com tantas especificidades, que encerra mais uma: é a zona mais difícil do país para voar. E o chefe de base, Luís Romão, diz-nos porquê: “aqui, aterrados, estamos a mais altitude do que aquela a que fazemos a maior parte dos voos em volta da zona de Lisboa e no resto do Sul. Aqui estamos a 1800 pés. Lá, fazemos os voos a 1500”. O problema da região é além da “orografia, que é tudo muito alto, “o tempo, que é mais severo”, continua Luís Romão. “Temos muitas alturas com gelo, turbulências fortes e mau tempo”. O piloto da empresa Babcock Internacional, confessa que “às vezes, os voos são feitos com muita boa vontade” porque, em algumas missões “se não imperasse a boa vontade, estariam reunidas todas as condições para as cancelar”. Ainda assim, salienta Luís Romão, não é uma má localização para este helicóptero, é sim mais exigente.
O bimotor estacionado em Macedo de Cavaleiros tem uma outra particularidade – uma VMER que o acompanha em permanência e que é ativada ou para ocorrências próximas da cidade (até mais ou menos quinze quilómetros de distância) ou quando as condições climatéricas não permitem a saída do meio aéreo.
Numa região onde os acessos são muitas vezes entraves, o helicóptero reduz distâncias. Em escassos vinte minutos, no máximo, consegue chegar a qualquer ponto do distrito de Bragança. De carro, para ir de Bragança, na ponta Norte, até Freixo de Espada à Cinta, a terra mais a Sul, é preciso despender quase duas horas. Já para não falar da segurança de quem viaja, sendo menos frequentes acidentes aéreos do que automóveis. Este meio é mais abrangente, e está ao serviço de todo o Norte do país. Pelo menos uma vez por mês vai até Lisboa, normalmente em missões secundárias.
“Nove meses de inverno, três de inferno”, descreve o povo neste ditado popular o clima transmontano. Janeiro é, por tradição, o mês mais árduo. Se no verão está sempre bom tempo para as missões, no inverno não é a regra. O nevoeiro impossibilita o helicóptero de voar, e para quem presta socorro em terra a tarefa não fica facilitada. Filipe Serralva volta a juntar-se à conversa: “além das características geográficas da região, há as climatéricas, porque durante o inverno muitas estradas têm gelo, e mesmo os bombeiros não podem fazer o socorro tão rápido quanto quereriam. Ora, a nós o gelo não nos bate nas rodas”.
Muitos dos profissionais vêm de grandes centros, e só começam a ter noção da verdade da região no contexto de trabalho. “Uma coisa é ver na televisão, que demoraram uma hora a chegar ao hospital”, atira o enfermeiro Rui Rocha, “outra é sentir in loco as dificuldades”. Não se trata de “trabalhar melhor ou pior, mas sim de uma adaptação às condicionantes locais”.
Mais formação para todos
Levantar e aterrar são as fases mais críticas. Saber como está o tempo e onde aterrar no local para onde vão, também. Vai-se referindo amiúde ao longo da entrevista que seria bom que cada município destinasse um local iluminado para que o helicóptero pudesse aterrar, em caso de necessidade. Já Acácio Ferreira, piloto na equipa, encurta as explicações, dizendo que “era importante haver formação mais específica para as outras entidades envolvidas nas missões de socorro, a vir da escola-base de cada instituição, para saberem que, por exemplo “um helicóptero, precisa de uma determinada dimensão para aterrar, que é necessário cortar o trânsito por segurança, dado que a própria estrada muitas vezes é o melhor sítio para aterrar, em caso de acidente. Ficamos logo ali ao lado. Ou para que não nos mandem aterrar em locais onde existem cabos de alta tensão”.
Um novo hangar a caminho




Até outubro deve ficar concluído o novo hangar do Heliporto Municipal de Macedo de Cavaleiros

No Heliporto Municipal de Macedo de Cavaleiros, sítio de recolha do helicóptero de socorro, existe, neste momento, um hangar. A pista já por duas épocas de combate a incêndios acolheu um helicóptero pesado, o Kamov, que “dormiu” ao relento. Está na calha um novo espaço para recolha de aeronaves. Essa obra vai ser lançada a concurso este mês, informa a autarquia macedense. Tem previstos 117 mil euros, no âmbito do Pacto de Coesão Territorial. Em outubro deve estar terminada, e conclui parte do projeto do Heliporto.
“Alguns pilotos e técnicos, quando se deslocam para este Heliporto, têm que ficar em contentores, ou respondem à chamada. Queríamos retirar essa componente, e dar-lhes mais dignidade.”, avança Duarte Moreno, presidente da Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros, que define como próximo passo, ainda que sem prazo, “a construção de uma sala de operações, de um espaço de apoio, casas de banho e de um armazém para guardar material”. A autarquia apoia logisticamente a equipa do Heli 3. O autarca macedense considera que “todo o território é beneficiado com a presença deste helitransporte”, porque “o médico chega mais rapidamente junto do doente do que o contrário”.
“Não estava aqui hoje, se não fossem eles”




Sandra Esteves e o filho Gonçalo, em 2012.

“O Gonçalo andava a brincar com a irmã na sala. Tropeçou e caiu com a garganta na esquina da mesa”. O Gonçalo tinha apenas dois anos naquele verão, e estava em casa com a família em Sendim, Miranda do Douro. Estávamos em 2011, e a história é contada por Sandra Esteves, a mãe deste menino. “Ninguém sabia o que ele tinha. Começou a inchar”, explica Sandra ao BPS. Uma rotura na traqueia estava a levar o ar inspirado para o órgão errado. Foi acionada a equipa do Heli 3, que percebeu onde estava o problema. Não pôde voar, devido aos riscos que a pressão causada pela altitude poderia acarretar, mas foi acompanhado por um médico e um enfermeiro até Vila Real. De lá foi transferido para o Hospital Pediátrico de Coimbra. Tudo acabou em bem.
Este salvamento, em que o helicóptero permitiu a chegada rápida de ajuda diferenciada, foi replicada inúmeras vezes no ano seguinte na comunicação social, em 2012, quando o Governo, liderado por Pedro Passos Coelho, começou a equacionar o reposicionamento do meio aéreo em Vila Real. A família de Sandra foi fotografada e entrevistada em manifestações contra a intenção, organizadas em Macedo de Cavaleiros, em que o pequeno Gonçalo segurava nas mãos um mini-helicóptero. “Achámos que este meio faz falta onde está”, começa por responder Sandra Esteves quando lhe perguntámos por que é que se juntou a estas movimentações populares – “O caso do Gonçalo era raro. Foi determinante, quer pela rapidez, quer pelo diagnóstico. Até porque pensavam que se tratava de uma alergia”. E Sandra diz mais: “Estamos pobres a nível da saúde, faz-nos falta”.
Davide Costa é bombeiro em Macedo de Cavaleiros. No mês em que a equipa do Heli 3 se instalou no concelho, Davide, com 28 anos em 2010, sofreu um grave acidente de mota. “Um carro atravessou-se à frente”, e o resultado foi um hemopneumotórax. Foi a VMER que acompanha o Heli 3 que acorreu ao local, dada a proximidade. Foi evacuado para Bragança, de onde saiu de helicóptero para a unidade hospitalar de Vila Real. Esteve em coma induzido vinte dias. Sobreviveu às dez costelas partidas, uma delas espetada num pulmão, o que lhe causou a hemorragia interna. Não ficam dúvidas: “Não estava aqui hoje, se não fossem eles”. Por vezes, o trabalho dos bombeiros cruza-se com o do pessoal do INEM, e o sentimento para Davide é especial: “ Fiquei sempre ligado a eles. Ajudo-os no que puder, porque eles fizeram o mesmo por mim”.
Outro episódio de urgência que ficou mediático foi a de Otelinda Ramos, agora com 84 anos. Mora em Vila Nova de Foz Côa, distrito da Guarda, desde os 16. “Sempre fui muito saudável, mas naquele dia não me senti bem”, recorda, evocando o acontecido há quatro anos – “Não me lembro, mas a minha filha conta que lhe liguei a dizer que ia morrer”. Otelinda caiu inanimada. Nunca se soube com certeza o porquê. Foi evacuada pelo helicóptero, primeiro para a Guarda, a seguir para Coimbra. “Já toda a gente me dava como morta. Chegaram a vir as flores para o meu funeral”, partilha Otelinda, que pagou mais do que uma vez vinte contos na moeda antiga em fretes de táxi para marcar presença nas manifestações pela permanência da equipa do Heli 3.
Ao fim de quatro anos, com justas judiciais à mistura, em maio do ano passado foi assinado pelo atual ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, um protocolo que marca de forma “irrevogável” a continuidade em Macedo do meio de socorro aéreo e do grupo que o acompanhada.
“Só cá está quem gosta”















Raro dia em que o helicóptero não descolou em 2016. Foram mais precisamente 322 ativações, ainda sem contar dezembro, numa média de um voo por dia. É o que mais vezes é chamado em todo o país. Évora vem em segundo lugar, com quase 230 missões. O heli da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) de Santa Comba Dão é terceiro, com cerca de 180 voos. Depois, o heli da ANPC de Loulé, e a fechar o lote de cinco, o heli do INEM de Lisboa. Todos são usados mais para missões secundárias do que que para primárias.

Segundo estatísticas disponibilizadas pelo INEM, 80,2% das ocorrências do Heli 3 são pedidos de apoio diferenciado, 7,9% acidentes, 5,2% doença súbita, 4% quedas, 2,4% queimaduras e uma percentagem residual são agressões. A certeza é chegar rapidamente a um hospital de referência, que na maioria estão concentrados no Grande Porto.
Quanto aos transportes secundários, a maior fatia (36,9%) parte do Hospital de Bragança, seguido de Vila Real, depois vem Macedo. Em 32,2% dos casos, o destino é o Hospital de Santo António, no Porto. 30,8% dos doentes são transferidos para o Hospital de Vila Real. Em terceiro nos números do INEM figura o Hospital de Bragança, com 9,1%. O São João, o Hospital Geral da Universidade de Coimbra ou o Hospital da Guarda também aparecem na lista, ainda que com menor frequência.
Muitas situações, boas e más, passam pelas mãos destes profissionais do pré-hospitalar, e é necessário que aprendam a lidar com elas. “Não se trata de passar inerte do ponto de vista sentimental, é simplesmente ser profissional e competente”, esclarece António Barbosa, médico do INEM.
Há missões, contudo, que “a equipa toda teme e por vezes marcam”: as que envolvem crianças. “Todos temos pais ou pessoas idosas na família. Mas, missões com crianças são sempre mais difíceis de digerir, porque, por vezes, ficamos mais sensibilizados”, confessa o enfermeiro Domingos Lopes. O médico Manuel Gomes clarifica: “Sendo uma criança, cada um adquire as suas defesas e capacita-se para lidar com isso”, ainda assim, “muitas vezes tem que se olhar para todo o contexto em volta da criança, sobretudo o familiar”. É que, explica Manuel Gomes, “às vezes é possível fazer a diferença, em situações de emergência; noutras as crianças estão num limite, no caso, por exemplo, de patologia crónica”, onde pouco já há a fazer. Nesse caso, o apoio da equipa foca-se na família. Salientam que estas saídas “são raras”.
No Heli 3, não se medem sucessos ou insucessos com os quadros clínicos das vítimas. “Se fizermos o que nos compete de forma eficaz, isso traduz internamente num sucesso e um bem-estar, que nos permite lidar com as ocorrências”, também quando correm menos bem, considera António Barbosa.
A estabilidade emocional é valorizada no seio desta base. Para poder trabalhar nesta área tão exigente é preciso estar saudável “física e mentalmente”, na opinião de Domingos Lopes, por isso criam um ambiente familiar com os colegas, onde entra o “diálogo, contar histórias, as brincadeiras ou a partilha de refeições”. Uma cumplicidade que gera laços. E fica uma certeza, termina António Barbosa:” É preciso gostar. Só cá está quem gosta”.
O ambiente criado por todos é palpável. “Há quase 60 pessoas” nesta base, nem todas a região, lança o enfermeiro Rui Rocha, que não tem dúvidas: “É nesta base que se sentem bem”. Facilmente se entende: “Desde o primeiro dia em que o helicóptero iniciou funções em Macedo de Cavaleiros que nos sentimos acarinhados e parte da terra”. Alguns “acabaram por casar e ficar”. Rui Rocha garante que o Heli 3 mexe, até, com setor do turismo: “Há muita gente que está a vir do litoral passar fins de semana e férias aqui, porque os profissionais passam a mensagem de que é bom, diferente e que dá para descansar”.
Quem fica em terra é a âncora da missão
“A nossa responsabilidade tem a ver com o helicóptero enquanto ele estiver no chão” – de uma maneira descomplicada, João Arnault, técnico de manutenção, introduz este capítulo dos afazeres diários na base.




















No último dia que passámos com o pessoal do Heli 3, a conversa desenrola-se com João Arnault, João Chaínho, os dois técnicos de manutenção, e Diogo Pina, piloto. Em comum têm o facto de, durante as missões, trabalharem de forma próxima. Outro elo de ligação é representarem a empresa Babcock Internacional, a quem o INEM contrata estes serviços.
Muito há a fazer antes de uma missão, como “a reparação e a inspeção antes do voo”. Durante 
o período em que a equipa está no ar, “vamos falando com eles, para sabermos como tudo está a correr, e vamos dando algumas dicas da meteorologia do local onde estão, para que possam saber como programar a missão”, esclarece ainda João Arnault.

É que “são obrigados a informar-nos quando aterram, e que está tudo bem com eles”, dá João Chaínho a achega. “Muitas vezes não há comunicações para outros postos, e somos por isso aqueles indivíduos que podem dar o alerta se um voo exceder o tempo normal, e não soubermos nada deles”.
Diogo Pina reconhece que “às vezes o trabalho dos técnicos de manutenção é um pouco esquecido, mas é muito importante” e reforça que “em mais de 50% dos voos em Trás-os-Montes, não há contacto com mais ninguém, nem com controladores nem nada”. São “uma segurança”. Diogo Pina defende igualmente que as equipas de terra “são uma grande ajuda”, mas “deveria existir mais formação”.
A maioria das reparações necessárias é feita no Heliporto Municipal de Macedo de Cavaleiros. O Heli 3 dificilmente não está apto a voar. A quem fica no chão, à espera, só preocupa um possível agravamento das condições atmosféricas. “Nem me passa pela cabeça que possam ter uma avaria”, transmite João Chaínho. “Hoje em dia, a aeronáutica está tão evoluída que o erro humano é responsável por 97% dos problemas”.

Jornalista Tânia Rei para o BPS (Associação Bombeiros Para Sempre)