Nenhum ato genuinamente humano está destituído de moralidade. Toda a ação de um ser humano consciente é suscetível de leitura moral. A leitura moral é aquela que incide sobre a bondade e a maldade das ações.
Desde sempre, porém, como bem demonstra a narrativa bíblica do paraíso, quisemos fazer de conta que não sabíamos que os atos são sempre ou bons ou maus. Preferimos pensá-los como belos ou feios ou, então, como lícitos ou ilícitos, bastando-nos, para isso, mudar as leis. Mas, de facto, não é assim. Há atos que realizam a humanidade que há em nós e há atos que a destroem ou não a respeitam. Não basta, para isso, que os atos tenham sido legitimados pelo nosso desejo ou pela nossa autonomia. Bem certo que a autonomia é a condição para que os atos bons ou maus nos sejam imputados e sejamos por eles responsabilizados. Mas a autonomia não é condição suficiente para a sua moralidade. E este parece-me ser o drama do nosso tempo. Absolutizámos a condição necessária que é a autonomia, tornando-a uma condição suficiente.
Torno mais claro o meu discurso.
Não basta que tenhamos querido fazer algo ou que determinado comportamento tenha sido consentido ou até pretendido para que se torne um comportamento bom. A sua bondade é-lhe inerente e resulta do seu grau de respeito pela dignidade que é anterior ao meu ou ao reconhecimento dos outros.
Vem isto a propósito da vertigem libertária que vem tomando, como um tsunami, a legislação portuguesa que legaliza tudo, desde que seja consentido ou pretendido. Assim aconteceu com o aborto e está prestes a acontecer com a prostituição, com a eutanásia, com as drogas e, se continuarmos esta vertigem, chegaremos ao que já se discute na Suécia, entre as juventudes partidárias, que pretendem legalizar o incesto, desde que realizado entre dois adultos. Na Alemanha, em 2001, ficou claro que um ato livre e autónomo só é legítimo se respeitar a dignidade da vida humana, quando os tribunais tiveram de decidir o que fazer com o canibal de Rotemburgo, num caso em que um adulto divulgou que pretendia ser morto e devorado por alguém, e tal veio a ocorrer. O canibal de Rotemburgo, apesar de tudo ter sido feito com documentos assinados e concretizado entre adultos, foi mesmo condenado por homicídio e por profanação de cadáver. Mas há muitos para quem tal seria legítimo, pois foi realizado entre adultos. Como é possível?
Assistimos, com efeito, a uma surdez e cegueira perante o que devia ser claro e evidente: o que atenta contra a dignidade da vida humana não pode ser aceite e tolerado e deve ser reconhecido como imoral. Não há que ter medo de reconhecer a imoralidade. De outro modo, continuaremos a condenar Cassandra à sua maldição. E qual é a maldição de Cassandra?
A história de Cassandra ilustra a dificuldade em dar ouvidos ao discurso moral. Resistimos a ele. Queremos que ele não tenha razão. Preferimos pensar que as coisas são belas (da ordem do estético) ou lícitas (da ordem do jurídico). Dizer que são boas ou más incomoda-nos. Isso não é de hoje. O mito de Cassandra, que tem mais de 2800 anos, ilustra-o, de forma cabal. Podemos encontrá-lo, quer na Ilíada, quer na Odisseia, epopeias de Homero.
E o que nos conta o mito de Cassandra?
Socorro-me da narrativa de Luc Ferry, no seu livro «A sabedoria dos mitos», da editora Temas e Debates (pp. 174-175): «[Cassandra] vive marcada por uma aflição nefasta que lhe vem de Apolo. O deus da Música apaixonou-se por ela e, para ganhar os seus favores, confere-lhe um maravilhoso dom: prever o futuro. Cassandra aceita, mas, no último momento, recusa ceder aos avanços do deus… que lho leva bastante a mal. Para se vingar, lança-lhe um terrível encanto: ela poderá sempre prever corretamente o futuro – o prometido é devido – mas nunca ninguém acreditará nela! É assim que Cassandra roga ao pai que não deixe entrar o cavalo de Troia na cidade. Em vão, pois ninguém a escuta.»
Como sabemos, o cavalo de Troia, que os troianos tomaram como um troféu pela sua vitória perante a retirada (simulada) dos gregos, afinal, escondia, no seu interior, o inimigo que veio a entrar, assim, no interior da cidade, acabando por vencê-la. Cassandra bem avisara, mas a sua voz não se ouviu.
Contrariamente ao preconceito que se foi avolumando, em especial nestes últimos dois séculos, a moral personalista, que reconhece a intocável dignidade da vida humana, o seu caráter sagrado e anterior a todo o reconhecimento, é o que de mais vanguardista poderemos encontrar, no momento de decidir. Ela não é a voz de um velho de Restelo, como, tantas vezes, afirmamos ou supomos. Ela é, como Cassandra, a voz antecipada do futuro que nos diz que, por este caminho, fácil e evidente diante dos olhos, chegaremos a terreno de escolhos e perigos desnecessários. Há que continuar, por isso, a refletir e a pensar para procurar um caminho melhor. Ela é o desafio de utilizar a inteligência em vez de ceder à imediatez.
Na verdade, a moral personalista assegura, na linha do que Kant consagrou, na sua «Fundamentação da Metafísica dos Costumes», que as pessoas têm sempre de ser tratadas como fins e nunca como meios, pois, como afirmava “no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.” (Fundamentação da Metafísica dos costumes, edições 70, p. 77)
E essa é a condição de cada ser humano. Não tem um preço porque não pode ser reduzido a meio.
Mas Cassandra continua a gritar sem que se lhe deem ouvidos.
…e o cavalo de Troia vai atravessando as muralhas, a pretexto de ser um troféu.
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