terça-feira, 18 de abril de 2017

Macroscópio – Lá do outro lado da Europa, mais um dia triste para a liberdade

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Será que em liberdade se pode por fim à liberdade? À primeira vista parece que sim, ou pelo menos essa pode ser uma das conclusões a extrair do referendo turco que aprovou profundas alterações constitucionais que a generalidade dos observadores consideram levarem o país em direcção a uma autocracia. É lá longe, é do outro lado da Europa, a Turquia até é um país que só tem um pé na Europa, podemos ser tentados a encolher os ombros. Acontece porém que o que se passou na Turquia, onde o “sim” venceu o “não” por um margem estreitíssima, revelando um país dividido ao meio (mesmo sabendo-se que o referendo não foi verdadeiramente democrático) é mais um sinal que a autocracia pode fazer recuar, pelo voto, o mundo aberto e liberal que tínhamos como um bem seguro. Daí que neste Macroscópio tenha reunido alguns textos para ajudar a perceber o que se passou e o pode vir a passar-se.
 
 
A britânica The Economist também editou um explicador mais pequeno,
What is at stake in Turkey’s referendum, do qual seleccionei a seguinte passagem, bem reveladora do alcance das mudanças constitucionais: “At the moment, the president appoints four of the 22 members of the country’s most influential judicial body, the high council of judges and prosecutors. The rest are elected by their peers. The new constitution would decrease the number of members and allow Mr Erdogan and his allies in parliament to appoint all of them. None of the appointments would be subject to hearings.
 
Na mesma edição da revista escrevia-se por isso que Turkey is sliding into dictatorship. Mais: “The new constitution embodies the “illiberal democracy” of nationalists such as Viktor Orban of Hungary and Vladimir Putin of Russia, to whom Mr Erdogan is increasingly compared. On this view, election winners take all, constraints are obstacles to strong government and the ruling party has a right to subvert institutions, such as the judiciary and the press.”
 
Para se ter uma ideia mais precisa de como a Turquia já é hoje um Estado onde a liberdade se encontra fortemente coartada vale a pena olhar para o pequeno levantamento de alguns números feito por Ryan Heath no seu Brussels Playbook, a importante newsletter diária do Político:
15 — Number of out of Turkey’s 191 universities closed by government decree.
178 — Number of media outlets shut down or taken under government control. (Source: Committee to Protect Journalists)
141 — Number of journalists behind bars.
4,811 — Number of academics dismissed from 112 universities during the state of emergency.
47,155 — Number of detainees kept in pretrial detention. “Out of 47,155 arrestees, 10,732 are police officers, 7,631 military officers, 2,575 judges and prosecutors, 26,177 civilians and 208 local administrative officials,” Interior Minister Süleyman Soylu said in late March.
125,485 — Number of civil servants suspended or fired. A ministry statement said the breakdown was 30,618 persons suspended and 94,867 persons dismissed.
113,260 — Number of people detained as part of investigations into the Gülen movement since the 2016 coup attempt, according to Soylu in a statement April 3.
 
Tudo isto em nome de quê? Para onde quer ir Erdogan? Esse é um dos pontos da análise (pré-referendo) de Jorge Almeida Fernandes no Público, Como despertará a Turquia amanhã?: “Que Turquia quer Erdogan? A “nova Turquia” de que fala é um projecto brumoso. A moda do neo-otomanismo (...) nunca teve coerência em termos de política externa. No plano ideológico, significa a exaltação do passado e da tradição histórica otomana, no discurso político e em séries televisivas, como meio de reforçar a identidade islâmica do país e o conservadorismo social. Apenas é claro o sonho pessoal de Erdogan: substituir Atatürk (“pai dos turcos”), o fundador da Turquia moderna, no imaginário da nação. Por isso os inimigos o designam por “novo sultão”.”

 
Já em Turquia: democracia (constitucional)?, uma análise hoje publicada no Observador por Catarina Santos Botelho, professora de Direito Constitucional da Universidade Católica, apenas se deixa uma leve esperança de que tudo não acabe muito mal: “Resta-nos esperar que não se confirme o pior dos cenários: que esta revisão constitucional seja uma encenação, uma máscara diáfana que visa a perpetuação no poder de uma ideologia político-partidária.”
 
Algo em que não acredita o analista da Foreign Policy Steven A. Cook, que em RIP Turkey, 1921 – 2017 defende que nos podemos despedir já da república turca tal como a conhecemos: “The Turkish Republic has always been flawed, but it always contained the aspiration that — against the backdrop of the principles to which successive constitutions claimed fidelity — it could become a democracy. Erdogan’s new Turkey closes off that prospect.”
 
De facto a democracia turca nunca foi perfeita, longe disso, mesmo sendo verdade que no país refundado por Ataturk se olhava mais para Ocidente do que para Oriente. Mesmo assim, em O rapto do serralho, Manuel Villaverde Cabral não se mostra surpreendido por estarmos a assistir a mais um recuo da democracia num país islâmico, recordando que no nosso mundo ocidental e cristão a democracia também não se construiu de uma década para a outra: “No caso preciso da Turquia, só por ironia se pode perguntar (...) se alguma vez, em lugar algum, o islamismo foi compatível com a democracia? Nem na Turquia nem, infelizmente, em nenhum outro país islâmico, por motivos que não são, afinal, tão difíceis de entender. Só na nossa área geocultural, basta pensar no tempo que a democracia levou a implantar-se, em geral fragilmente, nos países católicos e ortodoxos, por óbvio contraste com os países protestantes.
 
Henrique Monteiro também não se desvia muito desta linha em Turquia, quem esperava diferente? Na sua crónica no Expresso Diário de hoje (paywall) escreve que “Foi um referendo, mas se não fosse assim seria de outra maneira. Na Turquia não estava, não está e não estará em jogo uma opção, mas sim um desígnio. Esse desígnio passa por recusar um estilo de vida e uma mundividência - a ocidental europeia - e impor outra - a oriental, própria de um sultanato. Quem não viu isto, desde o tempo em que os americanos, por ingenuidade ou perversidade, tiveram a ideia de integrar a Turquia na União Europeia, não conhecia a História.”
 
Já na véspera, no Público, Teresa de Sousa constatara que o país estava a ficar Cada vez mais longe da Europa, sendo que as reacções ao resultado do referendo, quer na própria Turquia – onde Erdogan reafirmou a sua intenção de reintroduzir a pena de morte –, quer na Europa, foram no sentido de confirmar a ideia de que Turkey’s Vote Could Mean the End of a Courtship to Join the E.U., como se escrevia no Politico. Num texto onde se citavam muitas fontes e as análises de alguns grandes jornais europeus, para concluir que “Commentators across Europe voiced the expected concern over Turkey’s future but, like their governments, seemed to lack solutions to problems that have long plagued Turkey’s off-again-on-again courtship with Europe.”
 
Antes de terminar apenas mais duas notas, ambas para reforçar a ideia de que o resultado do referendo, mesmo tendo sido favorável ao homem forte de Ankara, por ter sido tão apertado e revelado um país tão dividido não vai deixar de lhe limitar a margem de manobra, algo que Serhun Al, professor de ciência política da Universidade de Esmirna destacava no The Guardian, em The Turkish referendum is a victory in name only for Erdoğan: “This suggests that the slim margin of victory for the yes camp is far from being a decisive win. Crucially, the major industrial, cosmopolitan cities such as Istanbul, Ankara, İzmir and Antalya voted no.”
 
Este também era, de resto, um dos pontos da análise dos resultados publicada na edição em inglês de um dos principais jornais de Istambul, o Hurriyet, que titulava Turkey’s divisive referendum: Anatolia vs the metropolis. Em concreto, “An initial analysis of the results displays that a good majority of western towns of the country, including the three big metropolises – Istanbul, Ankara and İzmir – as well as fourth and fifth biggest cities, Adana and Antalya, have voted against changing Turkey’s nearly century-old parliamentary system.” Este texto destacava mais alguns pontos relevantes, todos eles reforçando a ideia de que a vitória de Erdogan, sendo real, mostrou também sinais de erosão do apoio popular ao seu projecto político. Algo que o próprio, pelo que já disse, não parece querer reconhecer.
 
Mas por hoje e sobre a Turquia é tudo. Até porque as atenções também estão viradas para um lugar ainda mais distante onde se parece estar a desenvolver um jogo muito perigoso: a Coreia do Norte. Tema para um próximo Macroscópio, fica prometido. Até lá, tenham bom descanso e boas leituras.
 
PS. Regresso a uma chamada de atenção: é já amanhã, dia 18 de Abril, que o Observador lança uma série de Conversas em parceria com o Banco Popular, numa iniciativa a que chamámos OBSERVAMOS MAIS e onde vamos reunir convidados de várias áreas para conversar sobre temas como Mais Cooperação, Mais Tempo, Mais Cidadania, Mais Educação, Mais Solidariedade. Nesta primeira discussão sobre mais cooperação participarão, sob moderação de Helena GarridoSofia Tenreiro, diretora-geral da Cisco, Claudio Sunkel, investigador, professor catedrático e vice-diretor do I3S, Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto, Luísa Valle, diretora do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano e responsável pelo programa PARTIS – Práticas Artísticas para Inclusão Social, e André Valério, co-fundador da Kunoleco, projeto pioneiro de engenharia social. Haverá transmissão em directo aqui no site do Observador, mas a sessão é aberta a todos e decorrerá no Espaço Conversas Soltas Popular, Rua Ramalho Ortigão, 51, em Lisboa. Pode reservar o seu lugar aqui.
 
 
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