Nuno Garoupa | Diário de Notícias | opinião
Falar de corrupção em Portugal tornou-se um tema bastante complicado. Qualquer cidadão minimamente razoável aceitará como bom o argumento que não é saudável um ambiente justicialista, onde os visados são condenados com base em boatos ou notícias maldosas. Devemos, em nome das conquistas do Estado de direito que permitiram a sociedade moderna, respeitar as decisões da justiça. Consequentemente, devemos falar de corrupção quando ela é provada em tribunal, sujeita a julgamento e objeto de condenação na base do império da lei. Diria até que o cidadão razoável compreende que os tempos da justiça não são os tempos mediáticos e, tendo um grau de paciência e uma tolerância generosa, aguarda o veredicto antes de precipitadamente condenar. Penso que apenas quem confunde julgamentos moralistas com base em preconceitos ideológicos ou idolatrias personalistas com uma decisão judicial discordará da razoabilidade do Estado de direito.
Ora, o problema começa aqui. Estamos em 2017, não em 1974. Aplicando o princípio anterior, absolutamente razoável e louvável, há uma conclusão óbvia: em Portugal, nestes 43 anos, não houve corrupção. Nem gestão danosa. Nem tráfico de influências. Nem houve, mais genericamente, criminalidade de colarinho branco. Porque o número de condenações transitadas em julgado por estes crimes é completamente despiciente. Tão marginal que praticamente não existem estatísticas. Decorre desta observação, continuando a aplicar o princípio enunciado no parágrafo anterior, que Portugal é um oásis sem corrupção, sem gestão danosa, sem tráfico de influências e sem grande criminalidade de colarinho branco.
Qualquer um percebe que a aplicação de um honorável e saudável princípio do Estado de direito cria uma ficção absurda quando a justiça penal não funciona. Ora é o colapso da justiça penal que corrói o tal honorável e saudável princípio. Porque ninguém acredita que Portugal é um oásis sem corrupção, sem gestão danosa, sem tráfico de influências e sem grande criminalidade de colarinho branco. Aliás, por respeito aos portugueses e à nossa sanidade coletiva, ninguém pode fingir que Portugal é um oásis sem corrupção, sem gestão danosa, sem tráfico de influências e sem grande criminalidade de colarinho branco. Chegados aqui, falar de corrupção em Portugal torna-se intrinsecamente complicado. Por um lado, temos de falar, e muito, pois só assim podemos ter alguma esperança de algum dia a justiça penal exercer a sua função. Mas, por outro lado, a conversa vai ser inevitavelmente injusta, populista e justicialista. Porque, quando a justiça penal não cumpre cabalmente o seu papel, o que acontece são as condenações na opinião pública e na comunicação social. Curiosamente, a classe política diz-se vítima preferencial destas condenações. Mas foi a classe política que nada fez para que a justiça penal funcionasse, para que existissem condenações efetivas, para que o honorável e saudável princípio do Estado de direito pudesse ser o critério do cidadão razoável.
Continuar a insistir, no debate público, que só devemos falar de corrupção quando haja condenação transitada em julgado é fugir da realidade de uma justiça penal que não funciona, é ajudar à construção de uma ficção doentia (não há corrupção em Portugal), é alimentar o populismo e o justicialismo, assim como a despolitização do cidadão e o seu alheamento eleitoral, e é tolerar e perdoar a corrupção.
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