Na Alemanha as sondagens raramente se enganam – e desta vez voltaram a não se enganar: a CDU/CSU de Angela Markel ganhou, o SPD ficou a grande distância e a AfD (Alternativa para a Alemanha) entrou para o Bundestag ficou em terceiro lugar. Havia quem ainda não acreditasse que o partido que nasceu eurocéptico e foi progressivamente deslizando para a extrema-direita teria a preferência de muitos alemães, mas os resultados finais não deixam lugar a dúvidas. Merkel continuará como chanceler, mas terá de formar uma nova coligação e deverá ser obrigada ao trabalho de equilíbrio mais difícil neste seu quarto mandato, como João Almeida Dias explicou logo no domingo à noite no Observador (Depois de três mandatos e 12 anos no poder, Angela Merkel guardou o mais difícil para o fim).
Para muitos analistas estaremos perante o twilight de Merkel, e é isso precisamente que quer dizer o termo alemão Merkeldämmerung, significativamente o que o Wall Street Journal escolheu para o seu editorial de hoje (“German voters on Sunday returned Angela Merkel to her fourth and almost certainly final term as Chancellor. But they also handed the bronze medal—which was the only prize in real contention—to a protest party in a muted plea for more competition”.)
Esta ideia está presente em muitas outras análises e comentários da imprensa de hoje, sendo que Andreas Kluth, director da edição internacional do Handelsblatt, chamou-lhe “a sobering sort of victory” em A fourth term for Merkel in a very different Germany. É um texto onde também manifesta um desejo: “What looks like a difficult situation may not be bad for Germany. Polling has shown that although Germans did not want to change their chancellor, they do want change. Germany has enacted no major domestic reform for 12 years”. Se a isto acrescentarmos todas as crises internacionais, a verdade é que “Ms. Merkel has a lot of work to do”.
@The Economist
Não tenhamos porém dúvidas que o equilíbrio de forças se alterou, algo que é muito claramente sublinhado por algumas das análises publicadas em Portugal, como a de João Marques de Almeida, Ainda bem que Merkel não é como Costa. Ao discutir as consequências deste resultado para a União Europeia (e por arrastamento para nós, portugueses), considera que “O resultado das eleições alemãs foi uma derrota para Macron. A sua ambição para o futuro da zona Euro, sobretudo no lado da despesa comum europeia, não resistirá ao crescimento do AfD. Para ser forte na Europa, Macron precisava de uma Merkel forte. Uma Merkel mais enfraquecida fará de Macron um líder mais fraco. Para os próximos quatro anos, a tentação em Berlim será gerir a Europa de modo a impedir o aumento do eleitorado do AfD. Reformas ambiciosas na Europa ficarão para o futuro. Com o SPD fora do governo e com uma oposição forte à sua direita, Merkel terá o mandato mais difícil de todos.” Viriato Soromenho Marques foi mais apocalíptico no Diário de Notícias, em Uma temível normalidade, onde escreve que “Gauland [um dos líeres da AfD] é a versão extrema de uma aspiração pela "normalidade" do egoísmo nacional que foi manifestada pela primeira vez pelo chanceler G. Schröder (1998-2005). Schröder submeteu o seu país a uma brutal austeridade competitiva, preparando-se para o euro como para uma guerra.”
Gideon Rachman, o principal analista de assuntos internacionais do Financial Times também defende, em The end of German exceptionalism, que não se deve esperar da nova Alemanha mais solidariedade europeia, pelo contrário: “The rise of populism highlights the fact that many German workers feel that their living standards are being squeezed, which makes it harder to make the case for generosity towards southern Europe. The need to incorporate the Free Democrats into a new governing coalition will also make concessions to France difficult. The FDP, once champions of European integration, are now a strongly Eurosceptic party. A fourth term in office is a personal triumph for Ms Merkel. But she has paid a price for her policies on refugees and the euro. Germany now looks more like a “normal” western country. And that, ironically, is not something to be welcomed.”
E como é que a AfD chegou onde chegou? Cátia Bruno ajuda a perceber que partido é este, e como ele se foi transformando no artigo do Observador A AfD entrou de rompante no Bundestag. Que partido é este afinal?, mas há mais alguns artigos que vale a pena referir (para além de recordar que logo no dia da vitória se deu uma dissidência, com a anterior líder, Frauke Petry, arenunciar ao seu lugar no Bundestag):
- How the Far-Right AfD Changes German Politics, uma análise de Jefferson Chase na germânica Deutsche Welle, onde se cita a opinião de um académico reputado: “Germany's leading academic expert on political parties, Oskar Niedermayer, defined the AfD as follows: "The spectrum of positions represented in the AfD cannot be summed up by one word. I call them a nationalist-conservative party with increasing connections to right-wing extremism." That's the complicated bit. The simple one is the AfD's lone effective issue. (...) On election day, the party listed seven reasons to vote for the AfD on its website – the first four were about asylum seekers, immigration and Islam. (...) "The conglomerate of refugees, terrorism and Islamism is what the AfD has as a core brand right now,” Niedermayer said.”
- German voters shake up the elites, a análise de John Fund na americana National Review, onde se nota que “Everyone that voted for the Alternative knew wouldn’t enter government, but many wanted them to have a voice. Groups that have felt behind by economic and cultural change were especially attracted by its promise to upset the cozy political culture of the capital in Berlin.”
- Germany's AfD: how to understand the rise of the right-wing populists, um texto de Daniel Hough na britânica The New Statesman, onde também se reconhece a dificuldade de encaixar a AfD nas “gavetas” políticas tradicionais: “The AfD is, however, a rather more complicated beast than that. Although many of the Eurosceptics who founded the party have long since left, their influence has not vanished completely. One of the AfD’s two "leading candidates" for the 2017 election, Alice Weidel, for example, is a 38-year-old lesbian who used to work for Goldman Sachs. She speaks fluent Mandarin and spent six years in China writing a PhD on the Chinese pension system. She is certainly not the archetypal leader of a far-right party.”
Seja lá como for, todas as análises convergem na ideia de que o tema dos imigrantes foi central na campanha, e é precisamente sobre ele que Helena Matos reflecte, no Observador, em Os libertadores, os acolhedores e os medrosos. Para a cronista, “Com o socialismo a ser trocado pelo estatismo, os migrantes/refugiados substituíram os operários como motor da mudança: não se espera deles que façam a revolução mas sim que façam crescer o aparelho de Estado através da pressão que colocam nos programas de apoios, na mediação cultural, na habitação social, nas ONG’s…
Não perceber que os povos europeus, e dentro destes os sectores mais vulneráveis, vêem tudo isto como um factor de insegurança é um erro que vários políticos têm pago caro. Agora foi a vez de Angela Merkel. A chanceler merecia um melhor resultado.”
Relativamente ao futuro da própria Alemanha há visões mais optimistas e outras mais sombrias. Entre estas últimas penso poder indicar a de Teresa de Sousa, no Público, Uma meia vitória para a democracia alemã. Ou uma meia derrota?, de que destaco uma passagem mais centrada no funcionamento do sistema político alemão, que sofreu um profundo abalo nos seus equilíbrios: “O sistema funcionou bem enquanto incluía apenas três partidos, ou quatro, quando os Verdes ganharam força eleitoral. Agora, o Parlamento tem seis, dois dos quais se situam fora de todas as coligações possíveis: a AfD e o Die Linke. Verdes e Liberais também foram mudando a sua identidade. O velho FDP, que foi durante muitos anos o “fazedor de chanceleres”, o que o obrigava a estar no centro, está hoje à direita da CDU. Os Verdes, que Joschka Fischer levou para dentro do sistema, passaram a ser, desde 1998, a alternativa ao FDP de que os sociais-democratas precisavam para formar governo. Mas os bons velhos tempos passaram, mesmo que a sua liderança actual não veja com maus olhos um entendimento com a CDU.”
Já a britânica The Economist prefere apontar para o lado mais positivo destas mudanças num artigo significativamente intitulado Pessimism and optimism on Germany after its election, cuja tese é que “Its tumultuous vote might just do the country more good than harm”. Porquê? Porque acredita nas potencialidade da nova coligação que a chancelerdeverá ter de negociar com verdes e liberais: “the Jamaica coalition Mrs Merkel must now build could constructively shake up Germany’s sleepy consensus: the Greens pushing drastic and welcome progress towards electric cars and renewable energy and the FDP driving advances on long-neglected subjects like red-tape reduction and digitalisation. Many of the differences between the Greens and FDP were exaggerated for the election (the leading figures of the two parties, Cem Özdemir and Christian Lindner, address each other with "du", or the informal pronoun; they get on, in other words). And anyway, a bit of conflict in the next government may do the country more good than harm, blowing away the cobwebs.” Ou seja, trata-se de uma posição não muito diferente da já referida atrás e defendida por outra publicação com raízes económicas, o germânico Handelsblatt.
Continando a referir análises que merecem alguma atenção, chamo ainda a atenção para as seguinte:
- Germany’s election gives the country a reality check, de Anne Applebaum no Washington Post, onde se defende que o resultado da eleição é “Perhaps it’s a useful dose of realism: As it turns out, Germany is not so exceptional after all.” Considerando que “The impact will be felt most strongly in Germany itself, because several dozen brand-new, far-right politicians will be members of the Bundestag. This is a cohort with no particular devotion to the norms of the German political system, with its traditions of collegiality and compromise, so German politics might get less agreeable.”, a jornalista e historiadora também defende que este resultado “may make it more difficult for Germany to carry out the revolutionary reforms that are needed to make the European Union more cohesive, both in its economics and its foreign policy. The expected Merkel-Emmanuel Macron partnership just becomes a little wobblier.”
- Angela’s ashes: 5 takeaways from the German election, uma boa síntese de Matthew Karnitschnig no Politico – “1. Merkel’s twilight has begun; 2. Germany’s consensus-driven political model is shattered; 3. Forget about meaningful eurozone reforms; 4. Berlin will play hardball with Europe on refugees; e 5. This isn’t Weimar”. Vale a pena transcrever este último ponto: “For all the breathless historical comparisons, it’s worth taking a deep breath and remembering Germany is a stable democracy. The vast majority of Germans didn’t vote for the AfD and most of those who did, did so in protest. The coming years won’t be pretty, but Germany’s democratic foundations are robust enough to withstand the populist onslaught.”
- Merkel, el astro que desafía la ley de gravedad política, uma análise de Andrea Rizzi no El Pais onde se recordam, se necessário fosse, algumas das características que têm feito o sucesso da chanceler: “A diferencia de otros muchos grandes alemanes – desde Lutero a Hegel, Kant o Marx – Merkel, quizá vacunada por la historia de la Alemania del Este donde creció, no ha tenido nunca pretensiones sistémicas o rigidez ideológica. No es abanderada de un gran proyecto, sino una gestora que busca soluciones a los problemas. A veces con éxito, otras no, pero su proceso de toma de decisiones es un mecanismo que no provoca rechazos frontales. La desideologización como colágeno.”
A fechar mais este Macroscópio referência ainda ao ensaio de Fernando Martins no Observador, um texto de leitura demorada que recorda o legado do antigo chanceler Kohl (e que foi uma espécie de pai espiritual de Merkel): Da Alemanha de Kohl à Alemanha de Merkel: História, Vontade e Equilíbrio. Há um ponto neste ensaio para que chamo a atenção, pois é o que refere o fantasma sempre presente de uma Grande Alemanha, primeira da Alemanha unificada por Bismarck, depois da Alemanha reunificada por Kohl: “O problema alemão, ou a questão alemã, é fácil de enunciar e resume-se a alguns factos que podem ser descritos em poucas palavras. Aquele ou aquela decorrem do facto da Alemanha, no contexto europeu, ser demasiado grande, ter demasiada população, ser muito forte, ser muitíssimo organizada e encontrar-se “equipada” com recursos económicos (nomeadamente financeiros e industriais) de excepção. Foi, aliás, em termos muito semelhantes aqueles que acabo de usar que um historiador britânico, A. J. P. Taylor, se referiu à Alemanha e à “unidade” alemã pós-1848 num ensaio escrito na década de 1950 e desde então várias vezes publicado.”
Não houvesse um “problema alemão” e não estaríamos agora discutir as dificuldades da chanceler para formar o seu novo governo. Espero ter-vos ajudado a encontrarem mais pistas de reflexão, pelo que me despeço por hoje, com votos de bom descanso e boas leituras.
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