quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Macroscópio – Mais pistas para entender o que se está a passar, e o que se pode passar, na Catalunha

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Devo confessar que a rápida sucessão de acontecimentos na Catalunha deixou o Macroscópio um pouco em contrapé, tanto que foi escrito e dito desde que, pela última vez, esta newsletter se dedicou à grave crise vivida no país vizinho. Só no Observador há muitas dezenas de artigos publicados – podem ser consultadosaqui – entre notícias, especiais, análises e opiniões, mas basta passar os olhos por qualquer jornal espanhol para verificar que se vive um daqueles momentos em que a História parece acelerar e os seus protagonistas perder o controle do processo. Ou seja, um daqueles momentos perigosos em que é difícil prever o que nos trará o dia seguinte. Tentemos pois não só ajudar a arrumar a informação (e a corrigir algumas ideias erradas difundidas por muitos órgãos de informação nos últimos dias) como a reflectir sobre o significado do que se está a passar.
Comecemos por uma actualização recente do que está em causa, um especial de João Almeida Dias no Observador com a pergunta que todos fazem: A Catalunha vai ser independente? Seis respostas para uma pergunta. Essas questões são: 1. A Catalunha vai fazer uma declaração unilateral de independência?; 2. E o parlamento regional catalão quer fazer uma declaração unilateral da independência?; 3. Carles Puigdemont pediu mediadores internacionais para falar com Mariano Rajoy. Porquê?; 4. O que diz a comunidade internacional sobre o referendo catalão?; 5. O que vai fazer Mariano Rajoy? e 6. O que diz a lei espanhola sobre tudo isto?. Desse trabalho destaco a chamada de atenção para um importante detalhe de que pouco se tem falado em Portugal: O parlamento regional tem uma maioria de partidos a favor do referendo à independência, mas não tem uma maioria de independentistas. Isto pode fazer toda a diferença na altura de passar (ou bloquear) uma declaração unilateral da independência da Catalunha.”
Relativamente ao balanço do 1 de Outubro, dia em que se realizou a irregularíssima votação na Catalunha e ocorreram os confrontos com a polícia nacional que acabaram por se tornar na grande notícia da jornada, julgo que Jorge Almeida Fernandes resumiu bem no Público um balanço que verifiquei ser quase unânime:Primeiro dia: Generalitat ganha, Rajoy perde. Notou ele que O que aconteceu não foi um referendo — que exige legalidade e outras regras — mas uma intensa jornada de mobilização e propaganda. O mais importante para os independentistas não são os votos. A sua estratégia era ocupar os locais de voto para mostrar imagens como as de Carles Puigdemont (presidente da Generalitat), Oriol Junqueras (vice-presidente) ou Ada Colau (presidente de Barcelona) a votarem tranquilamente. É aqui, nos símbolos, que reside a vitória independentista. Nas imagens de longas filas de pessoas à espera de votar, apesar da polícia e da proibição dos tribunais. E, sobretudo, nas imagens da “repressão”, dos confrontos entre polícias e pequenas multidões que defendiam as urnas.”
O site europeu de notícias Politico escreveu mais ou menos o mesmo em 5 takeaways from a manic Sunday in Catalonia (1. Rajoy’s bad day; 2. Separatist PR victory; 3. Iffy ballot won’t stop Catalan rush to declare victory; 4. Rajoy’s next steps; e 5. Stand by for more lobbying), sendo que Stephen Daisley chegou à mesma conclusão em Spain has turned an internal dispute into an international incident, um texto interessante por revelar bem o seu estado de espírito: “The nationalists of Catalonia are as belligerent, divisive, and grievance-mongering as nationalists the world over. It is to the shame of Rajoy’s government that they have been allowed to claim the moral high ground and more, the status of victims.”
Sem muita surpresa os editorais de grandes jornais de referência europeus, como o Financial Times e o Le Monde, mesmo condenando o que consideraram ser uma violência policial excessiva, consideraram que o caminho que está a ser seguido pela Generalitat é desastroso e fizeram apelos ao diálogo. Eis o ponto central dos editoriais que escreveram:
  • Os separatistas catalães devem se afastar da fronte(Financial Times): "O diálogo, não uma declaração de independência, é primordial ".
  • Catalunha da pior política (BBC): " Após o referendo de 1 de Outubro, Mariano Rajoy, primeiro-ministro espanhol, e Carles Puigdemont, o líder regional, deve mudar suas posições para que o país está afundando não em uma grande crise política ".


Mas aqui vale a pena fazer um pequeno parêntesis para referir que a leitura de que houve uma violência desproporcional não é consensual, havendo em Espanha, e não só, um enorme debate sobre a forma parcial como a imprensa catalã se tem comportado. Sendo certo que a imprensa do resto de Espanha não tem deixado de tomar partido (como constata o insuspeito The Guardian,Spanish PM will have lost votes – but maybe only in Catalonia: “Spain’s press largely supportive of Mariano Rajoy’s handling of Catalan referendum, blaming regional leaders for the chaos”), a verdade é que os Repórteres sem Fronteiras, uma organização conhecida pela forma como defende a liberdade de imprensa, sentiu necessidade de produzir um relatório sobre o clima de intimidação existente na Catalunha. Trata-se de um documento de 21 páginas – Reporteros Sin Fronteras pide respeto al libre ejercicio del periodismo en Cataluña –, cheio de denúncias: “Periodistas locales y corresponsales extranjeros denuncian campañas de ciberacoso en redes sociales y presiones propagandísticas de la Generalitat”.
Isabel Coixet, uma realizadora de cinema que vive na Catalunha, deu de resto no El Pais testemunho directo desse ambiente emTierra de nadie, escrevendo que “Nunca creí que el precio a pagar por decir con respeto y con honestidad lo que uno piensa iba a ser tan alto”. No mesmo diário madrileno (próximo do PSOE mas firmemente contra o independentismo catalão), Teodoro León Gross considerou mesmo que presenciámos umReferéndum sin periodismo: “En Cataluña, los medios, como la escuela, han funcionado como aparato de propaganda más allá de su lógica periodística”.
Por exemplo: quantos feridos houve realmente no 1 de Outubro? A Generalitat fala em cerca de nove centenas. Nos hospitais ingressaram quatro. Disso mesmo nos dá conta o mesmo jornal em ¿Cuántos heridos hubo en realidad el 1-O?, onde também se revela que, para a contabilidade oficial, entraram desmaios, quebras de tensão, ataques de ansiedade e casos de irritação com gás lacrimogénio, sendo que a quase totalidade dos casos em que as imagens mostravam pessoas a sangrar as escoriações puderam ser tratadas no local. Mais: soube-se entretanto que imagens falsas do dia do referendo circulam nas redes sociais, um fenómeno de fake news para que alertou o Le Monde.
Assim, ao mesmo tempo que fora da península a condenação da polícia é quase unânime (repare-se no texto do influente Gideon Rachman no Financial Times, Force is not the answer in Catalonia, que mesmo considerando que “the idea that Scottish or Catalan nationalism is inherently right or romantic”, propõe uma mudança constitucional que permita um referendo, mas com condições: “Allowing an independence referendum need not mean making separation easy. One conclusion from the Scottish vote is that breaking up a country should require more than a simple majority. Demanding a super-majority for constitutional change is common practice around the world. The Spanish government could offer an independence referendum with a threshold for success of, say, 60 per cent of votes cast.”), em Espanha, até no relativamente moderado El Pais, argumenta-se sobre a proporcionalidade do uso da força. Os argumentos foram desenvolvidos por Félix Ovejero, professor na Universidad de Barcelona, e Alejandro Molina, advogado, em ¿Dónde está la desproporción?, texto onde se alerta para que “La opinión pública debe asumir con madurez democrática cómo funciona el Estado, cualquier Estado, ante la desobediencia de las leyes”.



Passemos agora a um conjunto de textos, alguns deles anteriores ao referendo, mas onde se alinham argumentos que ajudam a pensar o problema catalão:

  • A venezualização da Catalunha, de Rui Ramos no Observador, onde se destaca que “A crise catalã começou com as habilidades à António Costa de políticos falhados. Foi assim que a extrema-esquerda se tornou no árbitro da política catalã, e o separatismo a agenda do governo local.
  • Mas será que perdemos todos a cabeça?, uma coluna que eu próprio escrevi também no Observador muito para argumentar sobre o respeita da lei ser inseparável da democracia: “antes de ser um regime em que se vota, a democracia é um regime que se distingue por ter regras do jogo que são respeitadas e não mudam ao sabor das conveniências do tempo. Quando isso deixa de suceder abre-se a porta à tirania – que até pode ser a tirania da maioria sem deixar por isso de ser uma tirania.” Já mais para o fim noto que “o que se vê no independentismo catalão é o egoísmo de quem é mais rico e não quer ser solidário – ou seja, nelas olha-se para a Catalunha como na Itália do Sul se olha para a Padânia ou como nós olharíamos para a Alemanha se esta pretendesse acabar com as suas contribuições para o orçamento europeu.”
  • A Catalunha e o fantasma da independência de 6 de Outubro de 1934, de José Pedro Teixeira Fernandes no Público, onde se recordam uma trágica experiência de há 80 anos: “Na Catalunha, o 6 de Outubro de 1934 deixou uma memória ambivalente: a da proclamação da ambicionada independência, mas também a da sua rápida perda, da violência e da suspensão do estatuto de autonomia”.
  • La ruptura nacional-populista, um texto muito bem argumentado do historiador Santos Juliá onde este recorda como os anarquistas da CUP tomaram conta do movimento independentista, notando que “La CUP ha accedido a la sabiduría de los viejos golpistas: dentro del Estado es desde donde mejor se destruye al Estado. La farsa que se está viviendo no hubiera sucedido si Junts pel sí no se hubiera sometido al chantaje ‘cupero’
  • Richelieu, Portugal e a Catalunha, de Joaquim Pedro Lampreia no Observador, defendendo que é altura de discutirmos o que interessa mais a Portugal: “Numa época em que tudo se discute na praça pública, não deixa de ser espantosa a quase total ausência de uma reflexão pública sobre a raison d’état portuguesa na questão da independência da Catalunha.”

Antes da sugestão final – a que dou especial carinho, como verão – mais algumas referências num registo mais informativo: As Spain falls apart, Europe is tongue-tied, uma análise do Politico sobre o comportamento não só da União Europeia, mas da generalidade das chancelarias; e dois especiais do Observador, um sobre o que se está a passar nas outras regiões/nações espanholas,Bascos, galegos e andaluzes: movimentos renascem?, e um retrato muito interessante do presidente da Generalitat, Puidgemont: da pastelaria à luta pelo referendo.
E agora a cereja no topo do bolo, sem falsas modéstias. Refiro-me a Catalunha: como chegámos aqui? E como saímos?, o último Conversas à Quinta que, a semana passada, só pode ser gravado sexta-feira. Já várias vezes referi a pertinência e profundidade das análises de Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, mas desta vez devo dizer que nos 45 minutos que durou a nossa conversa aprende-se muito, mas mesmo muito. Não percam, se é que ainda não ouviram (podcast aqui no iTunes, e aqui por RSS feed).
E por hoje é tudo. Muitas sugestões de leitura, bem sei, mas amanhã sempre é feriado e deverá estar mais um dia pouco outonal. Tenham bom descanso e o desejode que possam tirar o melhor proveito de mais este Macroscópio.
 
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