Foi o tema da semana passada, continua a ser o desta semana. A crise no Sporting ocupa de forma quase monopolista o espaço mediático mas isso não seria motivo suficiente para dela falarmos no Macroscópio. Há no entanto pelo menos um ponto em que ela tem uma dimensão que o justifica – e esse ponto é o de como foi possível alguém como Bruno de Carvalho ter chegado a presidente de um dos grandes clubes portugueses e ter acumulado o poder que lhe permitiu fazer o que fez. O que já fez.
Primeiro problema: até que ponto o mundo do futebol é um mundo à parte? Decerta forma é, mas não tanto como se possa pensar. Rui Ramos explorou caminhos possíveis nesta análise em O futebol já não é deste mundo, um texto onde recorda uma reflexão curiosa do capitão Jorge Botelho Moniz – que tinha a tese segundo a qual “se em 1910 já houvesse um campeonato de futebol, como havia nos anos 40, nunca teria acontecido a revolução republicana em Lisboa. O seu raciocínio era este: em 1910, o republicanismo na capital arrastava para comícios, discussões e zaragatas o tipo de pessoas – caixeiros do comércio, trabalhadores das oficinas e serviços urbanos, empregados de escritório, etc. – que, trinta anos depois, iam aos estádios e discutiam e brigavam, não por causa da monarquia e da república, mas por causa do Benfica e do Sporting” – e lembra como não é por acaso que as paixões geradas pelo clubismo têm sido usadas por políticos, a começar por Salazar. Só que hoje “A mania de ver no futebol uma espécie de nova religião não ajuda, porque manifestamente inibe as autoridades. Todos receiam mexer no novo ópio do povo. Assume-se, por isso, que nada pode acontecer a um clube de futebol, aos seus dirigentes e adeptos. É essa impunidade que explica como, de repente, temos demagogos a presidir a clubes, mafias a organizar jogos, e adeptos que são terroristas”.
Sendo que o problema está longe de ser apenas português. Num longo ensaio editado no Público, Como o jogo mais bonito ficou tão feio, Miguel Poiares Maduro defende que, infelizmente “a violência é apenas a manifestação mais extrema de uma doença profunda que ocupa o “corpo” do futebol há bastante tempo. Os sintomas têm-se multiplicado. Campeonatos do mundo atribuídos através de votos comprados; jogos viciados através da compra de jogadores ou árbitros; doping organizado e, nalguns casos, promovido por Estados; evasão fiscal; lavagem de dinheiro; e até funcionários judiciais corrompidos por agentes desportivos. Estes são alguns exemplos de processos judiciais que envolvem atualmente o futebol. Dos EUA à França, passando por Portugal, organismos de investigação criminal e magistrados têm tornado público uma pequena parcela do lado sujo daquele que durante tantos anos pensámos ser o jogo mais bonito. Mas a expressão criminal é apenas o estado mais avançado da doença ética e moral que domina a cultura do futebol”.
Nesse texto defende a uma intervenção externa sobre o mundo do futebol coordenada pelo menos ao nível da União Europeia, sendo que toca num ponto que me parece central: “O conceito de separação de poderes é estranho ao mundo do desporto. O presidente, uma vez assumido o poder, concentra, de forma direta ou indireta, praticamente todas as funções. É assim na FIFA como é assim no Benfica, Porto ou Sporting.” Isto significa que organismos cujos dirigentes são eleitos democraticamente podem facilmente transforma-se em ditadores virtualmente inamovíveis, algo que sucede tanto nos clubes como nas federações desportivas.
Essa é uma ideia que Henrique Raposo explorou na sua coluna no Expresso deste sábado, República ou democracia?, um texto onde recorda que “A democracia direta e popular é sempre a antecâmara da ditadura. É por isso que os liberais-conservadores que criaram a nossa civilização (de Montesquieu a Tocqueville, de Hamilton a Lincoln, de Burke a Adams) separaram os conceitos, democracia e república. Separaram e hierarquizaram: a democracia é apenas um braço da república. A par da democracia, existe o resto, que, aliás, é o essencial: a liberdade e as garantias que não dependem de qualquer direito positivo gerado numa câmara democrática; dependem apenas da sacralidade do direito natural. Se queremos mesmo sobreviver à barbárie democrática e virtual, temos de recuperar estes conceitos: direito natural e república.”
Henrique Raposo recorda estes princípios porque levanta antes um problema bem perturbador: o de entender onde falharam as instituições para Bruno Carvalho ter acumulado o poder que acumulou. E aí estabelece paralelos: “Como é que Sócrates dominou uma instituição como o PS através da agressividade e da conivência de gente dita responsável? Como é que Bruno de Carvalho tomou uma instituição como o Sporting através das redes sociais e da conivência de gente dita séria? E, já agora, como é que Trump tomou a Casa Branca com a convivência dos republicanos?”
No mesmo Expresso Miguel Sousa Tavares também é sombrio quando, numa texto que gerou muita controvérsia – Como nascem os Brunos de Carvalho. E porque devem ser mortos à nascença– defende que “os Brunos de Carvalho do futebol antecipam o que poderá ser um dia o aparecimento dos Brunos de Carvalho da política. E, a avaliar pelo que vimos no Sporting, o povo está maduro para lhes abrir os braços. O povo e as pretensas elites, que se julgava educadas para defender a democracia contra a demagogia. Talvez tenham complexos de enfrentar os demagogos quando eles se reclamam do povo e se dizem seus defensores. Mas é assim mesmo que morrem as democracias: às mãos dos demagogos e pela deserção das elites.”
Outro colunista a estabelecer paralelos com a política, e com a nossa experiência política recente, foi João Miguel Tavares, no Público, em Também ninguém viu quem Bruno de Carvalho era?Escreve ele: “Mas será que há um ano era mesmo impossível prever que um dia um presidente com a personalidade de Bruno de Carvalho iria instalar o caos no Sporting? Não, não era. Era até bastante provável que isso viesse acontecer — tal como era muito provável que um dia se viesse a descobrir o dark sidede José Sócrates. Por uma razão simples: os seus lados negros não estavam escondidos numa cave húmida e sombria. Eram exibidos diariamente em prime-time. Por que é que ninguém os via? Toda a gente os via. Só que aqueles que os admiravam fingiam não ver. Aquilo que Sócrates dava aos socialistas, tal como aquilo que Bruno de Carvalho dava aos sportinguistas, era tão valioso, que os impulsos autoritários, a obsessão com o “eu” ou a sede absurda de poder eram desvalorizados como idiossincrasias mansas ou meros traços de “carisma”.”
Daí que um dos pontos discutíveis é a ideia de que Bruno foi um bom presidente, mas isso não importa, algo que Alexandre Homem Cristo aborda num texto onde recorda o que Bruno de Carvalho mudou no Sporting mas onde conclui que, mesmo existindo esse legado, a verdade é que “se deixou derrotar pelo seu estilo de presidente-adepto quezilento e rude – que foi tolerado pelos sócios em nome de um bem-maior, até que se tornou intolerável por visar aliados e equipa de futebol.”
Um momento crítico nessa relação do presidente com o clube, os seus sócios e a opinião pública foi a recente Assembleia Geral onde fez aprovar uma alteração estatutária que reforçou os seus poderes, um momento que David Dinis agora recordou no Público em Sporting Clube de Pyongyang. Já acredita?. O seu diagnóstico é muito claro: “Bruno é o presidente que interfere em tudo, que comenta no Facebook, que manda calar comentadores, que “proíbe” a leitura de outros jornais, que insulta os jogadores, que põe uma equipa inteira na rua, que humilha adversários e jornalistas, que comanda a claque — pondo fogo num ambiente já por si explosivo. Só não dava para adivinhar as suspeitas de compra de resultados. Com tudo isto, não pode surpreender o que aconteceu esta semana na Academia do Sporting, ou antes dentro do Estádio. O presidente pode não ser autor do crime, mas é o seu inspirador.”
Neste quadro vale a pena regressar ao tema de Rui Ramos com que abrimos esta newsletter, o da relação do futebol e dos seus dirigentes com a política e os políticos, tema abordado por Filomena Martins no Observador em Ferro Rodrigues, a política e Bruno de Carvalho, onde critica o que considera ter sido o descaramento do Presidente da Assembleia da República – “Criticar Bruno de Carvalho é apropriar-se do nobre posto e do nobre local para sacudir responsabilidades e portar-se como o adepto que costuma ir a Alvalade. Que não tenha aplicado a si próprio a máxima que defendeu durante anos, ‘à política o que é da política… à gestão do Sporting o que é da gestão do Sporting’. E que contribuísse ainda mais para a promiscuidade entre futebol e política.” Também João Gonçalves o fez no Jornal de Notícias, em Bruno e uma homenagem: “O decurso do tempo transformou Bruno de Carvalho na coqueluche do clube de Alvalade, a quem não faltaram apoios para a reeleição albanesa de há escassos meses. A bola é muito parecida com a política. Não é por acaso que não há figura do regime, seja de que partido ou corporação for, que não faça uma "perninha" num clube desportivo. (...) Bruno foi olhado inicialmente com desconfiança pelos chamados "notáveis" que acabaram a arrastar-se a seus pés. Hoje, com a lamentável segunda figura do Estado à cabeça, estão todos "envergonhados", escrevem manifestos em mau português contra o homem e permitem que um tipo insuportável e soberbo como o sr. Marta Soares seja o rosto "sério" de um clube em polvorosa. A sério? A sério.”
E se quisermos ser sérios talvez devamos começar pela nossa casa, o que no caso dos jornalistas nos deve levar a interrogar sobre o que nós próprios fazemos. Ana Sá Lopes tocou nesse ponto sensível no jornal i, em Bruno de Carvalho, o primeiro dos jagunços: “O futebol é a coisa mais parecida com uma paixão cega e basta assistir, por dez minutos que seja, aos intragáveis programas de comentário desportivo para se entender isto. No passado, o “Domingo Desportivo” era um clássico de referência, um programa onde o jornalismo procurava introduzir alguma racionalidade na paixão. Agora, o jornalismo, ou espécie de, alimenta-se da irracionalidade. Um espetáculo televisivo em que casais desavindos lavassem a roupa suja em público seria mais ou menos igual aos programas que ocupam em permanência os três canais de informação.”
Às vezes há problemas que vemos crescer sem dar por eles, até porventura colaborando na forma como medram. O futebol é o mundo à parte que, ao mesmo tempo, pode ser uma montra do que aí vem. Até porque muitas vezes tudo se mistura, como sucedeu na Itália de Berlusconi-presidente-do-Milão-dono-de-televisões-e-primeiro-ministro, essa mesma Itália onde agora chega ao poder uma estranha coligação de partidos populistas. Tema, prometo, para outro Macroscópio, mas sinal de que estes diferentes mundos estão mais próximos do que muitas vezes imaginamos.
Por hoje é tudo, despeço-me com votos de boas leituras e um descanso reparador.
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