Joaquim Carlos * |
Balzac disse em uma ocasião que «na vida só podemos vir a ser o que, em realidade, formos». Se bem compreendemos, isto quer dizer que as nossas possibilidades e até o nosso destino estão inscritos em nós, não sob forma de irresistíveis decretos providenciais e fatais, mas nos dons, talentos, aptidões, capacidades virtuais que trazemos ao nascer e que nos compete desenvolver, manter, utilizar, para podermos desempenhar o nosso verdadeiro papel.
André Chamson, da Academia francesa, em mensagem por ele enviada ao Congresso Nacional contra o alcoolismo, retomava este pensamento e afirmava: «Não é coisa fácil vir a ser o que de facto somos porque todas as travessas de uma existência parecem ligar-se para nos afastar desta realização.»
O ser humano, que passa por formação lenta e difícil da sua pessoa profunda, começa por tomar consciência da existência de um mundo exterior com que estabelece contacto. Estes contactos determinam nele certas reacções que não são necessariamente manifestações da sua profunda personalidade. Por consequência, os seres humanos que nos rodeiam não são completamente eles próprios, porque são obrigados, de contínuo, a ter em conta exigências de tudo o que os cerca. Foi o que levou o Dr. Paulo Tournier a dizer: «Verifico, cada vez mais, que a personalidade absolutamente pura nos escapará sempre. Sem dúvida, só Deus a conhece.»
Ser verdadeiramente uma pessoa, a que devemos ser ou, pelo menos, aquela em que nos devemos tornar, consiste antes de tudo em atingir o ideal que nos propomos livremente ou que aceitámos livremente.
Durante uma conversa entre um professor e os alunos da sua classe em que se abordou o problema do ideal, um menino de dez anos deu dele a seguinte definição magnífica: «O ideal é uma grande força dentro de nós que nos faz ir sempre mais longe e sempre mais alto.» Na realidade, esta força que nos impele para o melhor não é mais do que a chamada consciência moral. Ora esta não é infalível nem tão pouco igualmente sensível em todos os seres humanos; é mais escrupulosa e delicada em uns do que em outros e, para atingir todo o seu valor e nobreza, tem necessidade de ser esclarecida por diversas maneiras. Pensamos, por exemplo, que as lições da natureza, da história, assim como os factos da nossa experiência pessoal fornecem-nos uma vasta colheita de dados capazes de nos fazer compreender em que caminho nos devemos dirigir para nos aproximarmos de um objectivo que jamais atingiremos porque sempre é cada vez mais elevado.
Os meios de educação postos em acção por nossos pais e professores desempenham igualmente papel preponderante na formação da nossa consciência moral. É inútil acrescentar que o cristianismo primitivo, desembaraçado da escória de comentários humanos que há vinte séculos o obscurecem, espalho no mundo uma noção do ideal que, até ao presente, nada alcançou igualar.
Uma das mais constantes preocupações do ser humano é saber o que lhe é possível fazer, quais sejam os pontos fortes com pode contar e os pontos fracos de que convém desconfiar com prudência. Se este conhecimento é necessário, escusado será dizer que só poderá ser útil e frutuoso se, longe de se limitar a ser descritivo, apresentar a distância que vai da realidade actual ao ideal.
Ninguém se conhece verdadeiramente, ninguém pode sonhar com o conhecimento próprio no seu aspecto verdadeiro nem com a exploração tão clara quanto possível não só do que é mas também do que deseja ser. Acabamos de nos servir de um termo cujo sentido se envolve geralmente de trevas e de contradições. Para uns, a alma é a própria pessoa, entravada no seu desenvolvimento pela presença do corpo material que a rodeia. Para outros, é apenas o conjunto de reacções do corpo perante os dados da vida. Ainda para os outros, entre os quais nos encontramos, a alma é apenas uma das faces de um conjunto em que tudo se mantém, em que cada um dos seus aspectos está sempre relacionado com todos os outros. Para nós a alma é o ser completo, sob a sua tripla forma: corpórea, psíquica e espiritual. Conhecer-se a si próprio ou, em outros termos, conhecer a sua alma, consiste em nada negligenciar do que se passa nestes três domínios, mas perfeita e profundamente unidos na realidade.
É indispensável lembrar que a nossa vida deve, antes de tudo, servir para bem dos outros. Podemos começar a conhecer-nos pelo meio que os psicólogos chamam a introspecção, isto é, observação voltada para o íntimo, para o que se passa dentro de nós. Sem dúvida, uma tal tomada de consciência fornece-nos muitas revelações, mas é preferível não se fiar apenas em tais dados porque não podemos observar-nos objectivamente e com toda a imparcialidade. Afirmava Augusto Comte, que introspectar-nos é simplesmente pretender que é possível pôr-se à janela para se ver passar na rua!
Conclusão: Os seres humanos não são completamente eles próprios.
*Director
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