- Plinio Maria Solimeo
Nos idos tempos em que ainda havia fé no mundo, recorria-se à Providência Divina em todas as vicissitudes da vida, principalmente por ocasião de calamidades. Operaram-se incontáveis milagres, registrados em fidedignos documentos de várias épocas.
Um desses milagres ocorreu durante uma terrível epidemia de peste bubônica em Marselha, na França, em 1720, que ceifou a vida de mais de 100 pessoas. Foi quando o Sagrado Coração de Jesus, aparecendo a uma alma santa, pediu que fosse instituída uma festa em seu louvor, para debelar a epidemia. O que realmente ocorreu, como veremos.
Antecedentes da devoção ao Sagrado Coração
Entre os anos de 1672 e 1686, Nosso Senhor Jesus Cristo, aparecendo a Santa Margarida Maria Alacoque [quadro acima], religiosa visitandina francesa, foi lhe revelado os mistérios da devoção ao seu Sagrado Coração. Como narra a vidente em sua Autobiografia, Ele lhe mostrou “o ardente desejo que tinha de ser amado pelos homens e de retirá-los da via da perdição, onde Satanás os precipitava em multidões”. Para isso, “havia estabelecidoo desígnio de manifestar seu Coração aos homens, com todos os tesouros de amor, misericórdia, graça, santificação e salvação que ele continha”, para que lhe manifestassem seu amor.
Numa das várias revelações, Nosso Senhor disse a Santa Margarida Maria: “Por isso te peço que a primeira Sexta-feira depois da oitava do Santíssimo Sacramento seja dedicada a uma festa particular para honrar o meu Coração, reparando a sua honra por meio de um ato público de desagravo, e comungando nesse dia para reparar as injúrias que recebeu durante o tempo que esteve exposto nos altares. E Eu te prometo que o meu Coração se dilatará para derramar com abundância o influxo do seu divino amor sobre aqueles que Lhe renderem esta homenagem”.
Difundiu–se desde então a devoção a esse adorável Coração, tendo como centro o convento da Visitação de Paray-le-Monial [foto ao lado], onde Santa Margarida Maria vivia. Essa Ordem religiosa, fundada por São Francisco de Sales e Santa Joana de Chantal, tornou-se desse modo apropagadora dessa devoção.
Ana-Madalena Remuzat e o Coração de Jesus
Seis anos após o falecimento de Santa Margarida Maria, ocorrido em outubro de 1690, Marselha veria nascer, no dia 29 de novembro de 1696, Madalena Remuzat [quadro ao lado], que se tornaria visitandina e seria a continuadora da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Madalena ingressara aos nove anos no convento das Visitandinas de Marselha como estudante, e depois nele professou como religiosa em 1713, acrescentando Ana ao seu nome.
Por ter sido muito favorecida desde pequena com aparições de Nosso Senhor, por sua prudência, retidão e avançado progresso espiritual, deram-lhe no convento o encargo de atender às pessoas que pediam aconselhamento espiritual. Depois de certo tempo, ela pediu para ser disso dispensada a fim de cuidar dos doentes.
A heresia jansenista
Nessa época o erro jansenista era generalizado na França, perturbando a vida da Igreja e da sociedade. De acordo com essa doutrina perniciosa, Cristo não derramou seu Preciosíssimo Sangue por todos os homens, mas apenas por uma pequena porção deles. Quanto aos outros, o acesso aos frutos da Redenção estaria fechado para sempre, não importando o que fizessem. Segundo essa seita, para se receber a Comunhão Eucarística era necessário não apenas o estado de graça, como é da doutrina católica, mas também um tão grande e puro amor a Deus, que excluísse qualquer falta, mesmo leve. Essa severidade afastou muitos fiéis da Sagrada Comunhão.
Em 8 de setembro de 1713 — mesmo ano em que Ana-Madalena fez a sua profissão religiosa —, o Papa Clemente XI condenou na bula Unigenitus Dei Filius os erros jansenistas. A condenação encontrou grande resistência na França, cuja situação política e religiosa se tornou extremamente tensa.
Valoroso bispo combate na luta contra o jansenismo
Ora, o bispo de Marselha era então Dom Henrique Francisco Xavier de Belsunce de Castelmoron [gravura ao lado], um lídimo e valente prelado, inimigo mortal do jansenismo. Em sua batalha contra essa heresia, ele encontrou a oposição de alguns padres e também do Parlamento de Aix-en-Provence, conquistados pela seita.
Consciente dos dons que a irmã Ana-Madalena recebera de Deus, ele pediu à Superiora que a fizesse retomar seu ministério junto aos que procuravam o convento em busca de orientação.
Confrontada com o orgulho que levou os jansenistas a se levantarem contra a Igreja e o Papa, Ana-Madalena aconselhava seus dirigidos a terem uma confiança sem limites em Deus Nosso Senhor e em sua misericórdia, colocando-se amorosamente nas mãos divinas. Graças a ela, muitas pessoas passaram de uma vida tíbia e indiferente, para outra segundo o Evangelho e os ensinamentos tradicionais da Igreja.
Associação em louvor ao Sagrado Coração de Jesus
A Irmã Ana-Madalena teve várias aparições do Sagrado Coração de Jesus, o que a levou a fundar uma associação dedicada ao Santíssimo Coração. Seu objetivo era, em primeiro lugar, agradecer a Nosso Senhor por seu amor por nós na Eucaristia; depois, reparar pelas indignidades e afrontas que Ele sofreu durante sua vida terrena, e que ainda hoje recebe nesse Sacramento de amor.
Em 1717 o Vaticano aprovou a associação. No ano seguinte, enquanto cerca 60 de seus membros adoravam o Santíssimo numa igreja, eles viram durante mais de meia hora o rosto de Jesus Cristo na Hóstia.
A Grande Praga de Marselha
Naquela época, Deus revelou à irmã Ana-Madalena que Marselha seria punidase não se arrependesse de sua imoralidade.
E realmente, em maio de 1720, um navio do Oriente Médio ancorou na cidade, levando a bordo a peste bubônica que deu início à Grande Praga de Marselha. Pouco depois, naquele verão, com mais e mais casos de praga sendo relatados, decretou-se uma quarentena em toda a cidade e região. Apesar de as igrejas terem sido fechadas, o mosteiro da irmã Ana-Madalena foi poupado e sua comunidade realizou muitos atos de caridade durante esse período.
Com as igrejas fechadas, o corajoso bispo Dom Henrique começou a fazer as celebrações ao ar livre e, acompanhado por vários sacerdotes, a percorrer as ruas para atender espiritual e materialmente os doentes [representação ao lado]. Muitos de seus padres morreram em consequência da peste, vítimas da caridade, a qual hoje falta tanta faz a muitos eclesiásticos.
Instituição da festa do Sagrado Coração
Ocorreu então que, por recomendação de sua Superiora, a Irmã Ana-Madalena pediu a Deus que lhe comunicasse como desejava que seu Sagrado Coração fosse honrado para se obter a extinção da praga. Nosso Senhor lhe respondeu que desejava o estabelecimento de uma festa solene para honrar seu Sagrado Coração.
Confiando na idoneidade da Irmã e atendendo ao pedido de Nosso Senhor, Dom Henrique instituiu então na Diocese de Marselha a festa em honra do Sagrado Coração de Jesus, com o plano de Lhe consagrar perpetuamente a diocese e a cidade em 1º de novembro de 1720.
Acontece que a impetuosidade do vento nesse dia tornava impossível realizar a procissão. Somente à noite todos os sinos da igreja puderam tocar, o vento foi amainando e o bispo pôde então fazer a almejada consagração ao Sagrado Coração de Jesus.
Essa foi provavelmente a primeira consagração e culto público ao Sagrado Coração. A partir desse momento, a doença começou a diminuir gradualmente.
Magistrados atestam o milagre
Entretanto, como não houve reforma dos costumes e o povo continuava a ofender a Deus, a praga reapareceu em 1722. Para debelá-la, Dom Henrique [ao lado foto de sua estátua em Marselha] ordenou procissões para o dia de Corpus Christi, e a realização de uma nova festa em honra do Sagrado Coração.
Os vereadores da cidade de Marselha — que não haviam participado da consagração e da Missa em 1720 — desta vez participaram. No mês de setembro desse mesmo ano a praga terminou completamente.
As autoridades de Marselha foram então levadas a afirmar, em declaração pública nesse ano de 1722, que: “Quando todo esforço humano fracassou irremediavelmente, orações e atos de religião seguraram a mão de Deus. Para todos houve uma visível demonstração de que a praga não apenas diminuiu, como que cessou desde o dia em que Dom Belsunce consagrou Marselha ao Sagrado Coração de Jesus”. Eles se comprometeram doravante a renovar anualmente a consagração pública e perpétua da cidade ao Sagrado Coração, tradição interrompida durante a diabólica Revolução Francesa, mas que foi depois — um tanto modificada — restaurada pelo município em 1877.
A venerável Ana-Madalena Remuzat faleceu em 1730 e seu processo de canonização está em curso.
ABIM
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