quarta-feira, 24 de junho de 2020

Sagrado Coração de Jesus e pandemia


  • Plinio Maria Solimeo
Nos idos tempos em que ainda havia fé no mundo, recorria-se à Providência Divina em todas as vicissitudes da vida, principalmente por ocasião de calamidades. Operaram-se incontáveis milagres, registrados em fidedignos documentos de várias épocas.
Um desses milagres ocorreu durante uma terrível epidemia de peste bubônica em Marselha, na França, em 1720, que ceifou a vida de mais de 100 pessoas. Foi quando o Sagrado Coração de Jesus, aparecendo a uma alma santa, pediu que fosse instituída uma festa em seu louvor, para debelar a epidemia. O que realmente ocorreu, como veremos.
Antecedentes da devoção ao Sagrado Coração
Entre os anos de 1672 e 1686, Nosso Senhor Jesus Cristo, aparecendo a Santa Margarida Maria Alacoque [quadro acima], religiosa visitandina francesa, foi lhe revelado os mistérios da devoção ao seu Sagrado Coração. Como narra a vidente em sua Autobiografia, Ele lhe mostrou o ardente desejo que tinha de ser amado pelos homens e de retirá-los da via da perdição, onde Satanás os precipitava em multidões”Para isso, “havia estabelecidoo desígnio de manifestar seu Coração aos homens, com todos os tesouros de amor, misericórdia, graça, santificação e salvação que ele continha”para que lhe manifestassem seu amor.
Numa das várias revelações, Nosso Senhor disse a Santa Margarida Maria: “Por isso te peço que a primeira Sexta-feira depois da oitava do Santíssimo Sacramento seja dedicada a uma festa particular para honrar o meu Coração, reparando a sua honra por meio de um ato público de desagravo, e comungando nesse dia para reparar as injúrias que recebeu durante o tempo que esteve exposto nos altares. E Eu te prometo que o meu Coração se dilatará para derramar com abundância o influxo do seu divino amor sobre aqueles que Lhe renderem esta homenagem”.
Difundiuse desde então a devoção a esse adorável Coração, tendo como centro o convento da Visitação de Paray-le-Monial [foto ao lado], onde Santa Margarida Maria vivia. Essa Ordem religiosa, fundada por São Francisco de Sales e Santa Joana de Chantal, tornou-se desse modo apropagadora dessa devoção.

Ana-Madalena Remuzat e o Coração de Jesus
Seis anos após o falecimento de Santa Margarida Maria, ocorrido em outubro de 1690, Marselha veria nascer, no dia 29 de novembro de 1696, Madalena Remuzat [quadro ao lado], que se tornaria visitandina e seria a continuadora da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Madalena ingressara aos nove anos no convento das Visitandinas de Marselha como estudante, e depois nele professou como religiosa em 1713, acrescentando Ana ao seu nome.
Por ter sido muito favorecida desde pequena com aparições de Nosso Senhor, por sua prudência, retidão e avançado progresso espiritual, deram-lhe no convento o encargo de atender às pessoas que pediam aconselhamento espiritual. Depois de certo tempo, ela pediu para ser disso dispensada a fim de cuidar dos doentes.
A heresia jansenista
Nessa época o erro jansenista era generalizado na França, perturbando a vida da Igreja e da sociedade. De acordo com essa doutrina perniciosa, Cristo não derramou seu Preciosíssimo Sangue por todos os homens, mas apenas por uma pequena porção deles. Quanto aos outros, o acesso aos frutos da Redenção estaria fechado para sempre, não importando o que fizessem. Segundo essa seita, para se receber a Comunhão Eucarística era necessário não apenas o estado de graça, como é da doutrina católica, mas também um tão grande e puro amor a Deus, que excluísse qualquer falta, mesmo leve. Essa severidade afastou muitos fiéis da Sagrada Comunhão.
Em 8 de setembro de 1713 — mesmo ano em que Ana-Madalena fez a sua profissão religiosa —, o Papa Clemente XI condenou na bula Unigenitus Dei Filius os erros jansenistas. A condenação encontrou grande resistência na França, cuja situação política e religiosa se tornou extremamente tensa.
Valoroso bispo combate na luta contra o jansenismo
Ora, o bispo de Marselha era então Dom Henrique Francisco Xavier de Belsunce de Castelmoron [gravura ao lado], um lídimo e valente prelado, inimigo mortal do jansenismo. Em sua batalha contra essa heresia, ele encontrou a oposição de alguns padres e também do Parlamento de Aix-en-Provence, conquistados pela seita.
Consciente dos dons que a irmã Ana-Madalena recebera de Deus, ele pediu à Superiora que a fizesse retomar seu ministério junto aos que procuravam o convento em busca de orientação.
Confrontada com o orgulho que levou os jansenistas a se levantarem contra a Igreja e o Papa, Ana-Madalena aconselhava seus dirigidos a terem uma confiança sem limites em Deus Nosso Senhor e em sua misericórdia, colocando-se amorosamente nas mãos divinas. Graças a ela, muitas pessoas passaram de uma vida tíbia e indiferente, para outra segundo o Evangelho e os ensinamentos tradicionais da Igreja.
Associação em louvor ao Sagrado Coração de Jesus
A Irmã Ana-Madalena teve várias aparições do Sagrado Coração de Jesus, o que a levou a fundar uma associação dedicada ao Santíssimo Coração. Seu objetivo era, em primeiro lugar, agradecer a Nosso Senhor por seu amor por nós na Eucaristia; depois, reparar pelas indignidades e afrontas que Ele sofreu durante sua vida terrena, e que ainda hoje recebe nesse Sacramento de amor.
Em 1717 o Vaticano aprovou a associação. No ano seguinte, enquanto cerca 60 de seus membros adoravam o Santíssimo numa igreja, eles viram durante mais de meia hora o rosto de Jesus Cristo na Hóstia.
A Grande Praga de Marselha
Naquela época, Deus revelou à irmã Ana-Madalena que Marselha seria punidase não se arrependesse de sua imoralidade.
E realmente, em maio de 1720, um navio do Oriente Médio ancorou na cidade, levando a bordo a peste bubônica que deu início à Grande Praga de Marselha. Pouco depois, naquele verão, com mais e mais casos de praga sendo relatados, decretou-se uma quarentena em toda a cidade e região. Apesar de as igrejas terem sido fechadas, o mosteiro da irmã Ana-Madalena foi poupado e sua comunidade realizou muitos atos de caridade durante esse período.
Com as igrejas fechadas, o corajoso bispo Dom Henrique começou a fazer as celebrações ao ar livre e, acompanhado por vários sacerdotes, a percorrer as ruas para atender espiritual e materialmente os doentes [representação ao lado]. Muitos de seus padres morreram em consequência da peste, vítimas da caridade, a qual hoje falta tanta faz a muitos eclesiásticos.
Instituição da festa do Sagrado Coração
Ocorreu então que, por recomendação de sua Superiora, a Irmã Ana-Madalena pediu a Deus que lhe comunicasse como desejava que seu Sagrado Coração fosse honrado para se obter a extinção da praga. Nosso Senhor lhe respondeu que desejava o estabelecimento de uma festa solene para honrar seu Sagrado Coração.
Confiando na idoneidade da Irmã e atendendo ao pedido de Nosso Senhor, Dom Henrique instituiu então na Diocese de Marselha a festa em honra do Sagrado Coração de Jesus, com o plano de Lhe consagrar perpetuamente a diocese e a cidade em 1º de novembro de 1720.
Acontece que a impetuosidade do vento nesse dia tornava impossível realizar a procissão. Somente à noite todos os sinos da igreja puderam tocar, o vento foi amainando e o bispo pôde então fazer a almejada consagração ao Sagrado Coração de Jesus.
Essa foi provavelmente a primeira consagração e culto público ao Sagrado Coração. A partir desse momento, a doença começou a diminuir gradualmente.
Magistrados atestam o milagre
Entretanto, como não houve reforma dos costumes e o povo continuava a ofender a Deus, a praga reapareceu em 1722. Para debelá-la, Dom Henrique [ao lado foto de sua estátua em Marselha] ordenou procissões para o dia de Corpus Christi, e a realização de uma nova festa em honra do Sagrado Coração.
Os vereadores da cidade de Marselha — que não haviam participado da consagração e da Missa em 1720 — desta vez participaram. No mês de setembro desse mesmo ano a praga terminou completamente.
As autoridades de Marselha foram então levadas a afirmar, em declaração pública nesse ano de 1722, que: “Quando todo esforço humano fracassou irremediavelmente, orações e atos de religião seguraram a mão de Deus. Para todos houve uma visível demonstração de que a praga não apenas diminuiu, como que cessou desde o dia em que Dom Belsunce consagrou Marselha ao Sagrado Coração de Jesus”. Eles se comprometeram doravante a renovar anualmente a consagração pública e perpétua da cidade ao Sagrado Coração, tradição interrompida durante a diabólica Revolução Francesa, mas que foi depois — um tanto modificada — restaurada pelo município em 1877.
A venerável Ana-Madalena Remuzat faleceu em 1730 e seu processo de canonização está em curso.
ABIM
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Fontes:

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