Complementando o post de ontem, aqui reproduzimos um artigo de Plinio Corrêa de Oliveira [foto], redigido no longínquo 1951, no qual ele prevê uma III Guerra Mundial e anuncia os malefícios incalculáveis que ela causará com um “choque de civilizações”, de culturas e de ideologias.
NUMA GUERRA, QUAL É A POSIÇÃO CATÓLICA?
“Seria de pasmar se as pessoas que amam verdadeira e seriamente a Religião Católica não indagassem quais os efeitos de uma possível guerra sobre as atividades e as próprias condições de vida da Igreja em nosso século”
- Plinio Corrêa de Oliveira
Catolicismo, abril de 1951
Inútil seria enumerar os muitos motivos que tornam iminente uma nova guerra mundial. São eles tantos, tão graves, tão evidentes, que já passaram do conhecimento das chancelarias para os parlamentos, dos parlamentos para a imprensa, e daí para a rua, de tal forma que todos hoje, homens, instituições, governos, vivem em função da guerra.
Não há pessoa de critério e responsabilidade que, fazendo planos para o futuro, não tome em consideração as modificações que uma possível guerra imporia à marcha regular de suas previsões.
Seria, pois, de pasmar que as pessoas que amam verdadeira e seriamente a Religião Católica, também não indagassem quais os efeitos de uma possível guerra sobre as atividades e as próprias condições de vida da Igreja em nosso século. Para tratar deste assunto que tortura tantas almas zelosas é que deliberamos publicar em Catolicismo este estudo. É óbvio que não poderemos considerar senão os aspectos mais gerais do complexíssimo problema. As questões de pormenor alongariam desmedidamente os quadros, de per se já tão vastos de nosso trabalho.
Esta provável guerra terá algumas notas preponderantes, que influirão em todos os seus outros aspectos.
Primeiramente, será “mundial” num sentido muito mais real e profundo do que o conflito de 14-18 [Primeira Guerra Mundial], ou mesmo o de 39-45 [Segunda Guerra]. De um lado, os campos de operações militares serão muito mais numerosos.
Todas estas circunstâncias exigirão uma participação militar e econômica muito mais efetiva, das próprias nações que não forem diretamente atacadas em seus cidadãos e seus territórios. O esforço de guerra mobilizará pois, de um modo ou de outro, os recursos do mundo inteiro.
Em segundo lugar, esta guerra em que todas as nações talvez tomem parte, será principalmente uma guerra entre duas nações. Os russos e americanos de tal maneira se avantajam em força e poder sobre os respectivos aliados que a vitória de qualquer dos dois blocos não será senão o triunfo da nação-líder do bloco vencedor.
Em terceiro lugar, a guerra será ideológica. Se a nação vencedora for a Rússia, imporá ela ao mundo seu modo de pensar, de sentir e de viver. Contra esta perspectiva se armam as nações que não estão dispostas a renunciar às suas tradições, seus costumes e sua própria alma nacional. Em outros termos, há duas civilizações, duas culturas, dois mundos ideológicos inteiramente distintos e antagônicos, em presença um do outro. E a sobrevivência da hegemonia mundial da cultura ocidental será impossível se a vitória couber ao bloco liderado pelos bolchevistas.
Em quarto lugar, vem uma decorrência do que acabamos de dizer. Se a guerra for ideológica e se a questão ideológica que estiver na raiz da luta for a questão social, é bem de ver com que facilidade em vários países se manifestará a tendência de complicar com uma guerra de classes intestina, a guerra mundial. É, pois, possível que a guerra mundial seja agravada por uma revolução social que, se não for mundial, por certo poderá ser internacional.
Em quinto lugar, tudo leva a crer que a guerra será científica e trará consigo possibilidades de destruição ainda não bem conhecidas pelo público, mas por certo muito amplas. A técnica será mobilizada contra o homem, e poderá determinar convulsões, destruições e hecatombes inimagináveis. Há quem pense que a própria civilização humana poderá desaparecer da Terra. Sem responder pela afirmativa nem pela negativa, aceitamos a hipótese muito menos improvável de que, simplesmente, as destruições acarretem para civilização um retrocesso que ainda é prematuro tentar medir.
Este o quadro das perspectivas sombrias que a guerra abre diante de nós.
A Igreja e o comunismo
Cumpre-nos examinar agora que influências estas perspectivas podem ter sobre a segurança, esplendor e dilatação da Cristandade. Para isto, analisemos a posição da URSS e dos EUA perante a Igreja. Comecemos pela URSS. As relações entre o comunismo e a Igreja são tema já mil vezes versado. Parece-nos, entretanto, que muito raramente se tem posto nos seus verdadeiros termos o problema.
Segundo a doutrina católica, Deus pôs os homens neste mundo para O amar e servir, e assim conquistar a visão beatífica e a vida eterna. Mas Deus não deixou a nosso critério servi-Lo como bem entendêssemos. Ele promulgou uma Lei que não revogou e jamais revogará, a mesma para todos os homens, em todos os lugares e todos os tempos até a consumação dos séculos. Esta Lei nos manda professar a verdadeira Religião, guardar a pureza segundo nosso estado, respeitar a propriedade alheia, e acatar com amor toda a superioridade legítima, como é arquetipicamente a do intelectual sobre o trabalhador manual.
Assim, não nos é lícito constituir um estado de coisas baseado sobre a impiedade, o adultério, o latrocínio e a revolta, e esperar que a Igreja acabe se acomodando com isto. Para que tal acomodação fosse possível, seria mister, ou que a Igreja abandonasse a Lei de Deus, ou que Deus reformasse sua própria Lei. Ora, quem admite qualquer destas duas hipóteses, cai em heresia. A Igreja condena como herética a simples suposição de que algum dia a Lei no todo ou em parte seja modificada por Deus ou abandonada por Ele.
Como se vê, a oposição entre o Comunismo de um lado o Catolicismo de outro é a maior que se possa imaginar. Ora, os soviéticos não se limitam a viver segundo estes princípios. Desejam reformar ao sabor deles toda a face da Terra. Prova-o a existência, em todos os países, de partidos comunistas mantidos e dirigidos por Moscou; e principalmente a bolchevização brutal de todas as regiões que, deste ou daquele modo, caíram sob o jugo russo, como aconteceu temporariamente com a Espanha e o México, e aconteceu com a Romênia, a Bulgária, a Hungria, a Tchecoslováquia, a Polônia e a China.
Em outros termos, a guerra de conquista da URSS contra o mundo ocidental é estritamente uma guerra ideológica, uma espécie de cruzada cuja vitória significará o fim da civilização atual e a revogação do edito de Milão com o qual, em 313, Constantino reconheceu à Igreja o direito de existir.
Em consequência, os católicos têm de lutar em nosso século contra os comunistas, como lutaram do século XI ao século XVII contra os sarracenos. Somos obrigados a levar a cabo contra a foice e o martelo uma verdadeira cruzada. Isto é perfeitamente claro. Significa isto que todos os inimigos da URSS são cruzados, e que podemos ver em Truman, por exemplo, um Godofredo de Bouillon?
A Igreja e os EUA
Eis outra grave questão. A primeira coisa que se deve dizer sobre ela é que não é nova. De fato, ela já se pôs aos cruzados medievais. Tinham estes no Império Romano do Oriente, um aliado natural. Com efeito, os maometanos haviam feito da monarquia bizantina sua bigorna preferida.
Contra ela eram seus melhores golpes. O desejo de a destruir era sua mais alta ambição, que iam satisfazendo com método implacável, e que chegaram a realizar no século XV quando as tropas de Constantino XIII, os Dracosès, foram dizimadas sob os muros e pelas ruas de Constantinopla pelos soldados vitoriosos de Maomé II.
Dada a orientação implacável e ferozmente antibizantina da política muçulmana, tudo levaria a crer que os cruzados da Europa Ocidental obtivessem o apoio do Império do Oriente para a reconquista dos Lugares Santos, tanto mais que os bizantinos, como cristãos, tinham os mesmos motivos religiosos do que os cruzados para se interessar pela libertação do Santo Sepulcro.
É bem verdade que os cruzados eram católicos, e os bizantinos greco-cismáticos. Mas não seria o caso de fazer calar os motivos de dissensão entre cristãos, à vista do adversário comum, formidável, e sanhudamente anticristão? A resposta só poderia ser pela afirmativa. Fez-se o acordo.
E a colaboração entre cismáticos e cruzados funcionou tão mal que não haveria talvez nenhum exagero em se afirmar que melhor teria sido para estes enfrentar os muçulmanos sem qualquer auxílio bizantino. É que, em mais de uma ocasião decisiva, o Império do Oriente, receoso de um excessivo poderio dos ocidentais, se mancomunou com os muçulmanos, deixando inopinadamente os cruzados — falhos do auxílio prometido — frente a frente com o inimigo.
O que nos ensina este fato histórico? Que jamais deve haver alianças entre católicos e acatólicos? Seria levar longe demais a tese. Pio XI, segundo se conta, afirmava que, se devesse colaborar com o próprio demônio para o bem da Igreja, aceitaria a colaboração. Mas… e entra aí o pormenor que os cruzados não tomaram na devida consideração, o demônio é sempre demônio, mesmo quando acidentalmente nos serve de instrumento.
Os pactos de aliança temporária que façamos com ele não o transformarão em Anjo de luz. E toda a cooperação com ele só não será absolutamente ruinosa se nos lembrarmos sempre das reticências muito consideráveis com que se deve agir em relação a tal colaborador!
Não queremos forçar a nota. O exemplo não pode ser aplicado ao problema de uma cooperação mundial de todas as forças anticomunistas senão com uma imensidade de nuances que seria gravemente injusto não explicitar cuidadosamente. Mas, de qualquer forma através deste exemplo, temos sempre os dois princípios de qualquer colaboração com os adversários da Igreja:
a) em tese, é possível;
b) nunca deve ser feita sem cautelas e reservas muito importantes, à falta das quais a cooperação pode ser quase tão onerosa como a própria derrota.
No caso presente, a cooperação não é apenas possível, mas necessária. Quando nos falam na eventualidade de grupos se constituírem como uma terceira força na hipótese de uma luta soviético-americana, temos vontade de sorrir. Com efeito, dir-se-ia que não estamos vitalmente interessados no êxito da luta. Se os soviéticos vencerem, as potências do grupo neutro serão conquistadas num abrir e fechar de olhos. Lutando para esmagar a URSS, os norte-americanos lutarão pelo destino de todas as nações livres do mundo. Seria, pois, inconcebível que estas presenciassem a luta de braços cruzados.
Entretanto, não se segue daí que a cooperação com os americanos deva ser aceita pelo mundo católico sem cautelas, nem condições, nem apreensões. Lembremos, antes de tudo, que o anticomunismo americano é muito heterogêneo em sua composição. Há anticomunistas que o são por um sincero horror ao bolchevismo. Mas há os que o são num espírito pagão, de mera preservação de situações pessoais vantajosas.
Há ainda os que são anticomunistas pelo desejo de acrescer a prosperidade das grandes empresas americanas. Como há também os que veem na URSS não tanto uma potência ideologicamente hostil, mas um agressor que põe em risco a estabilidade da pátria. Entre os anticomunistas americanos, há sindicalistas ferrenhos, que desejam para sua pátria uma organização econômica e social. Há políticos que não têm o menor desejo de extirpar o comunismo de qualquer canto da Europa desde que daí não se irradie para a América. E há até os que veem de muito bom grado os comunistas como aliados, desde que sejam anti-stalinistas.
Bem se vê que os católicos, aceitando lealmente a cooperação americana, e sobretudo prestando aos americanos apoio decidido face ao adversário comum, não podem viver esta cooperação com chefes e soldados americanos como os cruzados — irmanados na mesma Fé e combatendo todos por um mesmo ideal — podiam colaborar entre si sob a direção de um católico da envergadura de Godofredo de Bouillon. Muito pelo contrário!
Não basta ganhar a guerra, é preciso ganhar a vitória
E concluamos estas considerações lembrando que o espírito com que se combate é o espírito com que se vence; o espírito com que se vence é o espírito com que se organiza a vitória.
Se, na refrega iminente, as nações católicas e latinas não conservarem a consciência muito viva de sua missão providencial, do imenso futuro histórico que representam, das tradições de civilização e cultura inestimáveis que possuem; se as nações católicas e especialmente as nações latinas não se lembrarem de que, pobres ou ricas, armadas ou desarmadas, têm direito a ocupar pelo próprio fato destas tradições e desta missão um lugar de primeiríssimo realce na direção do mundo, de sorte que toda a ordem internacional que se construa sem elas seja considerada fundamentalmente injusta e inaceitável; se, pois, estas nações não se munirem das melhores garantias de que tal será sua situação depois da vitória, terão transgredido, por ingenuidade, por moleza, por imprevidência, o mais sagrado de seus deveres.
Imaginemos por um instante o que seria uma vitória americana conquistada sem a participação de nós católicos, ou sem a garantia de que na mesa da paz nossa participação nos traria um justo lugar de honra e de poder. O que viria a ser esta paz? Algo de imensamente melhor do que a vitória de Moscou, isto é certo.
Assim, pois, a verdadeira fórmula da colaboração deve ser esta: fervorosa, porém não ingênua ou incondicional.
Isto mais claro se tornará se considerarmos outra característica do conflito que se aproxima. A guerra será mundial, dizíamos, e será sobretudo a vitória de uma nação, URSS ou EUA. Equivale isto a dizer que, se vencerem os EUA, praticamente serão eles os únicos vencedores, e seu poder será imensamente maior do que o de César ou de Carlos V. Não haverá outros grupos que possam atender esta soberania mundial, se antes e durante a colaboração com o adversário comum não forem tomadas as necessárias precauções.
Este, pois, é o momento em que as nações latinas — o grande bloco ibero-americano sobretudo — jogarão as cartas para saber se podem, ou não, ganhar a vitória. Porque, começado o conflito, a hora da diplomacia terá passado, e será preciso lutar ou morrer.
ABIM
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