Doar o corpo para o ensino e investigação, após a morte, é uma decisão que muitos portugueses já tomaram em vida. A opção é individual, mas carece de uma consulta a familiares e amigos, que um dia hão de gerir o processo de perda.
© Pixabay
Quando morrer, quer dar uma utilidade ao
corpo. Raquel Clemente está entre os milhares de portugueses que pretendem que
o seu corpo seja entregue a escolas médicas para fins de ensino e investigação.
Doar o corpo à
ciência é um gesto altruísta e generoso. Qualquer português pode, à partida,
fazê-lo, celebrando o compromisso com uma das faculdades de medicina espalhadas
pelo país.
A Nova Medical
School é uma das instituições nacionais que aceita doações de corpos para
“formar melhores médicos”. Atualmente, tem 50 corpos nas suas infraestruturas,
conservados em câmaras de alta congelação, que aguardam para serem dissecados
por (futuros) profissionais de saúde.
Quem doa o corpo fá-lo sem
qualquer lucro e mediante o preenchimento de uma declaração. Atualmente, temos expressas 2.500 intenções de doação. Aquando da
morte, a Faculdade de Ciências Médicas encarrega-se do transporte do corpo para
a instituição”, explica ao Notícias ao Minuto o coordenador do gabinete
de doações.
Diogo Pais
presta esclarecimentos a quem quer dar um fim útil ao corpo. Por razões
financeiras, a Nova Medical School só aceita doações de quem resida a menos de
120 quilómetros de distância da capital, mas pelo país estão espalhadas escolas
de portas abertas a novas doações.
Na
Universidade da Beira Interior (UBI) houve quem já o fizesse, ainda que em
menor número. O mesmo aconteceu no Instituto de Ciências Biomédicas Abel
Salazar, no Porto, e na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
A expressão de uma imortalidade
simbólica
Doar o corpo
não é, segundo os especialistas, uma decisão que se possa tomar de ânimo leve.
Influenciada pela forma como cada um encara a morte e o corpo, deve ser
resultado de uma “reflexão serena e ponderada que, ainda que individual,
deve ser partilhada com algumas pessoas próximas”.
“Quem doa o
corpo à ciência encara-o como apenas isso, um conjunto de órgãos e membros, e
diferencia claramente a pessoa do corpo, pelo que não sente que doá-lo
constitua uma ofensa à sua memória”, explica a psicóloga clínica Filipa Jardim
da Silva.
É uma questão
de convicção, entende também André Viegas, psicoterapeuta do luto, que
distingue, neste processo, a perspetiva do próprio da perspetiva dos outros. “Doar
o corpo é um ato máximo de altruísmo e generosidade. É uma forma de a pessoa se
imortalizar simbolicamente”, faz sobressair.
Contudo,
realça, “a família tem de ser incluída neste processo”. Até porque, se o ato do
dador pode ser admirado pelos que lhe são mais queridos, pode também dificultar
o processo de perda.
“O corpo
continua a existir, pelo que não se dá um encerramento na memória dos
familiares”, alerta o especialista, salientando a importância da realização de
cerimónias fúnebres.
Cerimónias fúnebres ajudam a
lidar com a perda
Na Nova
Medical School, também os técnicos são sensíveis a esta realidade. Doar o corpo
não é impeditivo da realização de exéquias fúnebres e até da realização de uma
missa de corpo presente, para quem é religioso.
Não é o caso
de Raquel. Além de querer dar uma utilidade ao corpo, olha com reprovação para
as cerimónias que diz serem de “sofrimento”. “Não gosto do processo que leva as
pessoas a juntarem-se para sofrer”, confessa, embora respeite quem o faça.
"Sempre
tivemos o culto da morte”, justifica, por sua vez, um padre que conversou
com o Notícias ao Minuto. “Precisamos deste adeus”, afirma, apelando à
dignidade dos técnicos que recebem o corpo e à reflexão profunda de quem o doa.
“As cerimónias
fúnebres enquadram-se nos rituais da morte e, geralmente, tendem a apoiar na
perda e a permitir um melhor processo de luto. Ainda assim, cada vez mais as
famílias estão a viver à sua maneira as suas perdas, pelo que muitos rituais de
morte estão a sofrer alterações”, concretiza Filipa Jardim da Silva.
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