sábado, 2 de abril de 2016

Doar o corpo à ciência: Entre o altruísmo e o adeus que não se terá

Doar o corpo para o ensino e investigação, após a morte, é uma decisão que muitos portugueses já tomaram em vida. A opção é individual, mas carece de uma consulta a familiares e amigos, que um dia hão de gerir o processo de perda.

© Pixabay






Quando morrer, quer dar uma utilidade ao corpo. Raquel Clemente está entre os milhares de portugueses que pretendem que o seu corpo seja entregue a escolas médicas para fins de ensino e investigação.

Doar o corpo à ciência é um gesto altruísta e generoso. Qualquer português pode, à partida, fazê-lo, celebrando o compromisso com uma das faculdades de medicina espalhadas pelo país.

A Nova Medical School é uma das instituições nacionais que aceita doações de corpos para “formar melhores médicos”. Atualmente, tem 50 corpos nas suas infraestruturas, conservados em câmaras de alta congelação, que aguardam para serem dissecados por (futuros) profissionais de saúde.

Quem doa o corpo fá-lo sem qualquer lucro e mediante o preenchimento de uma declaração. Atualmente, temos expressas 2.500 intenções de doação. Aquando da morte, a Faculdade de Ciências Médicas encarrega-se do transporte do corpo para a instituição”, explica ao Notícias ao Minuto o coordenador do gabinete de doações.

Diogo Pais presta esclarecimentos a quem quer dar um fim útil ao corpo. Por razões financeiras, a Nova Medical School só aceita doações de quem resida a menos de 120 quilómetros de distância da capital, mas pelo país estão espalhadas escolas de portas abertas a novas doações.

Na Universidade da Beira Interior (UBI) houve quem já o fizesse, ainda que em menor número. O mesmo aconteceu no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto, e na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

A expressão de uma imortalidade simbólica

Doar o corpo não é, segundo os especialistas, uma decisão que se possa tomar de ânimo leve. Influenciada pela forma como cada um encara a morte e o corpo, deve ser resultado de uma “reflexão serena e ponderada que, ainda que individual, deve ser partilhada com algumas pessoas próximas”.

“Quem doa o corpo à ciência encara-o como apenas isso, um conjunto de órgãos e membros, e diferencia claramente a pessoa do corpo, pelo que não sente que doá-lo constitua uma ofensa à sua memória”, explica a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva.

É uma questão de convicção, entende também André Viegas, psicoterapeuta do luto, que distingue, neste processo, a perspetiva do próprio da perspetiva dos outros. “Doar o corpo é um ato máximo de altruísmo e generosidade. É uma forma de a pessoa se imortalizar simbolicamente”, faz sobressair.

Contudo, realça, “a família tem de ser incluída neste processo”. Até porque, se o ato do dador pode ser admirado pelos que lhe são mais queridos, pode também dificultar o processo de perda.

“O corpo continua a existir, pelo que não se dá um encerramento na memória dos familiares”, alerta o especialista, salientando a importância da realização de cerimónias fúnebres.

Cerimónias fúnebres ajudam a lidar com a perda

Na Nova Medical School, também os técnicos são sensíveis a esta realidade. Doar o corpo não é impeditivo da realização de exéquias fúnebres e até da realização de uma missa de corpo presente, para quem é religioso.

Não é o caso de Raquel. Além de querer dar uma utilidade ao corpo, olha com reprovação para as cerimónias que diz serem de “sofrimento”. “Não gosto do processo que leva as pessoas a juntarem-se para sofrer”, confessa, embora respeite quem o faça.

"Sempre tivemos o culto da morte”, justifica, por sua vez, um padre que conversou com o Notícias ao Minuto. “Precisamos deste adeus”, afirma, apelando à dignidade dos técnicos que recebem o corpo e à reflexão profunda de quem o doa.


“As cerimónias fúnebres enquadram-se nos rituais da morte e, geralmente, tendem a apoiar na perda e a permitir um melhor processo de luto. Ainda assim, cada vez mais as famílias estão a viver à sua maneira as suas perdas, pelo que muitos rituais de morte estão a sofrer alterações”, concretiza Filipa Jardim da Silva.

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