quinta-feira, 14 de julho de 2016

A NOVA POLÍTICA ESTRANGEIRA BRITÂNICA

Thierry Meyssan*


A imprensa ocidental não cessa de o repetir: ao deixar a União Europeia, os Britânicos isolaram-se do resto do mundo e deverão enfrentar terríveis consequências económicas. Ora, a baixa do valor da Libra poderá ser uma vantagem no seio da Commonwealth, uma família mais vasta que a União e presente nos seis continentes. Pragmática, a City poderá rapidamente tornar-se o centro mundial do yuan e implantar a moeda chinesa no próprio seio da União.

 Estados Unidos continuam preocupados quanto à sua capacidade para convencer a União Europeia a participar activamente na OTAN, e quanto à vontade do Reino Unido de prosseguir a aliança militar, que eles construíram desde 1941 para dominar o mundo. Porque, contrariamente às alegações dos dirigentes europeus, o Brexit não isola o Reino Unido mas, sim, permite-lhe voltar à Commonwealth e desenvolver contactos com a China e a Rússia.

O alinhamento dos Europeus na OTAN

Os Estados Unidos e o Reino Unido tinham previsto empurrar os membros da União a anunciar o aumento do seu orçamento militar, em 2% do PIB, durante a Cimeira da Aliança em Varsóvia (8 e 9 de julho). Além disso, um plano de colocação de forças na fronteira russa devia ser adoptado, incluindo a criação de uma unidade de logística conjunta da OTAN e da UE, permitindo compartilhar helicópteros, navios, drones e satélites.

O Reino Unido era, até ao momento, o mais importante contribuinte para a União em matéria de defesa, com cerca de 15% do orçamento de defesa desta. Além disso, dirigia a operação Atlante para proteger os transportes marítimos ao largo do corno de África e tinha posto à disposição navios no Mediterrâneo. Por fim, estava previsto que forneceria tropas para a constituição do grupo de combate da UE. Com o Brexit, todos estes compromissos serão revogados.

Para Washington, a questão é saber se Londres aceitará ou não aumentar o seu investimento directo na OTAN —da qual já é o segundo contribuinte— para compensar o que fazia no seio da UE, mas sem daí tirar proveito particular. Muito embora Michael Fallon, o actual ministro da Defesa britânico, tenha prometido não minar os esforços conjuntos da OTAN e da UE, ninguém consegue ver porquê Londres aceitaria colocar novas tropas sob um comando estrangeiro.

Por conseguinte, e acima de tudo, Washington interroga-se sobre a vontade de Londres em continuar a aliança militar que construiu com a Coroa desde 1941. É claro, não deve excluir-se que o Brexit possa ser uma encenação dos Britânicos para renegociar, com vantagem, a sua «relação especial» com os «Americanos». No entanto, é muito mais provável que Londres pretenda estender as suas relações a Pequim e a Moscovo sem, no entanto, largar os benefícios do seu entendimento com Washington.

As agências secretas anglo-saxónicas

Durante a Segunda Guerra mundial e antes mesmo da sua entrada na guerra, os Estados Unidos concluíram um pacto com o Reino Unido explicitado na Carta do Atlântico [1]. Tratava-se para os dois países de se unirem afim de garantir a livre circulação marítima e de expandir o livre comércio.

Esta aliança concretizou-se com o Acordo dos «Cinco olhos», que serve actualmente de base à cooperação entre 17 Agências de Inteligência (Serviços Secretos- ndT) de 5 Estados diferentes (os Estados Unidos e o Reino Unido, assim como três outros membros da Commonwealth : a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia).

Os documentos revelados por Edward Snowden atestam que a rede Echelon, na sua forma actual, constitui «uma agência de inteligência supranacional que não responde perante as leis dos seus próprios Estados-membros». Assim, os «Cinco olhos» tanto poderiam espiar personalidades, como o Secretário-geral da ONU ou o Chancelerina alemã, como praticar uma vigilância em massa sobre os seus próprios cidadãos.

Identicamente, em 1948, os Estados Unidos e o Reino Unido fundaram uma segunda Agência supranacional, o Gabinete de projetos especiais (Office of special Projects) que comanda as redes stay-behind (redes de retaguarda- ndT) da OTAN, conhecidas sob o nome de Gládio.

O Professor Daniele Ganser demonstrou que este Gabinete tinha organizado uma quantidade de golpes de Estado e de operações terroristas na Europa [2]. Se numa primeira fase se verificava que a «estratégia de tensão» visava prevenir a chegada ao poder, por via democrática, de governos comunistas na Europa, viu-se que visava, sobretudo, alimentar a fobia do comunismo e justificar a proteção militar anglo-saxónica. Novos documentos desclassificados mostraram que este dispositivo existe fora da Europa organizado para o mundo Árabe [3].

Finalmente, em 1982, os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália criaram uma terceira agência supranacional, que incluía pseudo-ONG.s —a NED e as suas quatro filiais : a ACILS, o CIPE, o NDI e o IRI— formando a parte visível [4]. Ela especializou-se na organização de golpes de Estado camuflados em «revoluções»

Muito embora haja uma impressionante literatura sobre estes três programas, ignora-se tudo sobre as agências supranacionais que os tutelam.

A «relação especial»

Os Estados Unidos, que se proclamaram independentes separando-se para isso da Coroa, só se reconciliaram com o Reino Unido no fim do século XIX (a «Grande reconciliação»). Os dois Estados aliaram-se durante a guerra contra os Espanhóis em Cuba, depois para a exploração dos seus balcões coloniais na China. Quer dizer no momento em que Washington descobriu uma vocação imperialista. Em 1902, um clube transatlântico foi formado para selar a amizade reencontrada, a Associação dos Peregrinos (The Pilgrims Society). Ela é tradicionalmente presidida pelo monarca inglês.

A Reconciliação foi selada em 1917 com o projecto conjunto de criação de um Estado judeu na Palestina [5]. E, os Estados Unidos entraram na guerra ao lado do Reino Unido. Desde então, os dois Estados partilham diversos meios militares, neles incluído, de seguida, a bomba atómica. No entanto, aquando da criação da Commonwealth, Washington recusou fazer parte dela, considerando-se no mesmo pé de igualdade com Londres.

Apesar de alguns confrontos, aquando dos ataques britânicos contra o Egipto (canal de Suez), ou contra a Argentina (a guerra das Malvinas-«Falklands»), ou ainda aquando do ataque norte-americano contra a Granada, as duas potências sempre se apoiaram intimamente.

Em 2008, a Coroa assegurou o financiamento do início da campanha eleitoral de Barack Obama, fazendo correr generosas contribuições através do negociante de armas iraquiano-britânico Francisco Auchi. Aquando do seu primeiro mandato, um grande número de colaboradores directos do novo Presidente eram, secretamente, membros da Associação dos Peregrinos, cuja secção norte-americana era, então, presidida por Timothy Geithner. Mas, o Presidente Obama foi-se gradualmente afastando, dando a impressão à Coroa que ela não era retribuída em troca. As coisas pioraram com as suas acerbas declarações contra David Cameron na Atlantic [6], e a visita do casal Obama à rainha Isabel II, pelo seu aniversário, não recolou os cacos.

A Commonwealth

Ao separar-se da União e ao afastar-se dos Estados Unidos, o Reino Unido não fica nada isolado, pode, aliás, voltar de novo a jogar o seu grande trunfo: a Commonwealth.

Esquecem por completo que, em 1936, Winston Churchill lançou a ideia de incorporar os actuais Estados da União Europeia no seio da Commonwealth. A sua proposta colidiu com a ascensão dos perigos e a Guerra mundial. Só após a Vitória é que o mesmo Churchill lançou a ideia dos «Estados Unidos da Europa» [7] e convocou a Conferência do Movimento Europeu em Haia [8].

A Commonwealth é uma organização de 53 Estados-Membros que têm uma política comum apenas em matéria de valores ingleses de base: igualdade racial, estado de direito, direitos do homem face à «Razão de Estado». No entanto, ela propõe aos seus membros desenvolver os negócios e o desporto (esporte-br). Além disso, ela providencia peritos em todos os domínios.

A Rainha Isabel II, que é a soberana de 16 Estados-Membros, é o chefe da Commonwealth (título electivo não hereditário).

O que querem os Britânicos ?

Visto de Londres, foram os Estados Unidos quem quebrou a «relação especial», cedendo à desmesura (arrogância) do mundo unipolar e ao conduzir a sós as suas políticas financeira e externa. E, isto, numa altura onde deixaram de ser a principal potência económica do mundo e a primeira potência militar convencional.

Desde logo o interesse do Reino Unido é o de não colocar mais «todos os ovos na mesma cesta»; de conservar os instrumentos comuns que possui com Washington ao mesmo tempo que se apoia na Commonwealth, e ao estabelecer novas relações com Pequim e Moscovo, seja directamente, seja via Organização de Cooperação de Shanghai (OCS).

Precisamente no dia do Brexit a OCS aceitava, no seu seio, dois membros da Commonwealth, a Índia e o Paquistão, ela que até ali não incluía nenhum [9].

Se ignoramos tudo sobre os contactos que o Reino Unido já teve que estabelecer com a Rússia, podemos constatar a sua aproximação com a China.

Em Março último, a Bolsa de Londres, que gere as Bolsas de valores da City e de Milão, revelou o seu projecto de fusão com a Deutsche Börse (Bolsa Alemã), que gere a Bolsa de Frankfurt, a Câmara de Compensação Clearstream e o Eurex. Estava previsto que as duas sociedades concretizavam a operação logo após o referendo sobre o Brexit. Este anúncio foi tanto mais surpreendente quando os regulamentos Europeus interditavam formalmente esta operação, que equivaleria a criar uma «posição dominante». Ele pressupunha, pois, que as duas sociedades antecipavam a saída do Reino Unido da União Europeia.

Além disso, a Bolsa de Londres anunciava um acordo com oChina Foreign Exchange Trade sistema (CFETS) e tornava-se, em Junho, a primeira Bolsa no mundo a cotar os Títulos do Tesouro chinês. Todos os elementos estavam prontos para fazer da City o cavalo de Tróia chinês na União Europeia, em detrimento da supremacia norte-americana.

Thierry Meyssan* - Voltaire.net - Tradução Alva

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).

Notas 
[1] “The Atlantic Charter”, by Franklin Delano Roosevelt, Winston Churchill, Voltaire Network, 14 August 1941.
[2] Nato’s Secret Armies: Operation Gladio and Terrorism in Western Europe, Daniele Ganser, Cass, London, 2004.
[3] America’s Great Game: The CIA’s Secret Arabists and the Shaping of the Modern Middle East, Hugh Wilford, Basic Books, 2013.
[4] « La NED, nébuleuse de l’ingérence "démocratique" », et « La NED, vitrine légale de la CIA », par Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 22 janvier 2004 et 6 octobre 2010.
[5] “Quem é o inimigo?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 4 de Agosto de 2014.
[6] “The Obama Doctrine”, by Jeffrey Goldberg, The Atlantic (USA) ,Voltaire Network, 10 March 2016.
[7] “Winston Churchill speaking in Zurich on the United States of Europe”, by Winston Churchill, Voltaire Network, 19 September 1946.
[8] « Histoire secrète de l’Union européenne », par Thierry Meyssan,Réseau Voltaire, 28 juin 2004.
[9] «La India y Pakistán entraron en la OCS el día del Brexit», por Alfredo Jalife-Rahme, La Jornada (México) , Red Voltaire , 1ro de julio de 2016.


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