É seguramente um dos temas mais controversos dos dias que vivemos – um tema que o Macroscópio não podia ignorar agora que terminaram os Jogos Olímpicos e a atenção regressa a dilemas mais permanentes. Curiosamente, nos Jogos, utilizar vestidos que cobriam o corpo todo, como sucedeu com duas jogadoras de voleibol de praia egípcias e com uma praticante de esgrima norte-americana, foi de uma forma geral saudado como um sinal de tolerância e integração. Mas em França não se pensa assim – e tanto que não se pensa que a utilização do chamado burkini, um fato de banho que cobre todo o corpo, já foi proibida em algumas regiões (isto depois da proibição de uma “jornada burkini” em Marselha – aqui explicada em detalhe pelo Le Monde). Vale a pena seguir um pouco esta discussão, pois ela compreende alguns dos temas mais controversos quando se fala dos diferentes modelos de integração das comunidades muçulmanas. Por exemplo: deve prevalecer a “laicidade à francesa”, que tem como medida emblemática a proibição de uso de símbolos religiosos em público, uma lei em vigor há vários anos? Ou é mais eficaz o modelo dito multicultural, que tolera esses símbolos religiosos, como tem sido a regra em países como o Reino Unidos? Ou será que nem um nem outro são válidos, ou pelo menos são pouco eficazes considerando os resultados, tanto em França como em Inglaterra, ou na Alemanha, na Bélgica, na Suécia ou na Dinamarca?
Antes de entrar na discussão é importante ter claro que não existe uma só forma de as mulheres islâmicos cobrirem o seu rosto ou o seu cabelo, pelo contrário. Em Cómo identificar los velos islámicos, o El Pais explica-nos que, “Del hiyab al burka, la prenda que recubre el cuerpo femenino de muchas musulmanas varía según costumbres y países”. Aí se explica que “El término "hiyab", de origen árabe y por extensión utilizada en todo el mundo islámico, no se refiere a una prenda concreta. Hiyab quiere decir "cobertura" o "vestimenta que tape" y por esa razón los musulmanes hablan de "observar o respetar el hiyab" para referirse a la norma de cubrir el cuerpo de las mujeres. Lo básico es cubrir el pelo pero también el cuerpo femenino. Los musulmanes del subcontinente indio emplean la palabra purdah (literalmente, "cortina") para referirse al mismo concepto. Es decir, el hiyab no es un tipo de pañuelo o toca sino una norma que luego adopta formas diversas según el origen geográfico de la población que los viste, el credo religioso o el ambiente cultural.” A seguir mostram-se os diferentes tipos de véu (como na imagem), com uma pequena explicação e a indicação de onde são mais usados. Em síntese, são seis: Burka; Nekab o Niqab; Chador; Al-Amira; Hiyab e Shayla
Para entrar no debate comecemos por um texto de Delphine Strauss no Financial Times, Covering up divisions will not help French society to heal. Nela argumenta-se que não são este tipo de medidas que ajudarão a resolver os problemas de fundo: “The controversy may seem frivolous but it encapsulates the difficulties French society is grappling with as it confronts the threat of jihadism. In a country that bans the veil from schools and the full-face version from public spaces, there is a widespread discomfort with visible expressions of faith. But this should not lead people to conflate strong religious conviction with violent extremism.”
Nesta controvérsia encontramos, de um lado e do outro, pessoas muito variadas e, também, os próprios muçulmanos. Vejamos algumas dessas tomadas de posição, começando pela de Sofia Amaro, uma portuguesa actualmente a viver no epicentro da controvérsia, isto é, em Cannes, um dos locais onde o burkini foi proibido. Num artigo que escreveu para o Observador, Ângulo de visão, ou o que está em causa no burkini, defendeu que o uso daquela peça de vestuário não é inocente, antes carrega uma forte carga simbólica associada à promoção do salafismo, o qual é “amplamente promovido pelo wahhabismo da Arábia Saudita”, uma das variantes mais radicais do Islão. Por isso defende que “a voz tem de ser dada aos muçulmanos moderados. Se defender a proliferação do comunitarismo, da sharia como baliza penal intracomunitária, e defender o relativismo cultural é defender os direitos humanos, a sociedade ocidental adoeceu, e o plano da Arábia Saudita está a resultar.”
Posição semelhante defende o editor egípcio Aalam Wassef num artigo publicado no Libèration, Ne soyons pas naïfs sur le symbole de cette étoffe. Aí critica os que acusam a decisão de proibir o burkini como sendo um acto de islamofobia, defendendo que, sendo certo que nem todas as mulheres que o usam são emissárias do wahhabismo, “Il n’y a aucune honte à condamner l’extrémisme islamiste et à lui barrer la route par tous les moyens légaux possibles. Il n’y a là rien de politiquement incorrect ou de comparable au discours raciste et antimusulman du Front National. Cela ne revient pas non plus à ignorer que des actes antimusulmans sont perpétrés en France. (…) David Lisnard, le maire de Cannes, a fait dans sa ville ce qu’il fallait faire. Interdire les burkinis dont le nom s’amuse jusqu’à la nausée de la burqa des talibans n’est pas un acte islamophobe. C’est plutôt le signe que nous n’avons pas peur de dire qu’Islam et wahhabisme sont deux choses radicalement distinctes, et que le second menace le premier depuis plus de deux sècles.”
Uma posição oposta é a da escritora argelina Ikram Ben Aissa que, no Huffington Post (edição Magreb), defendeu que The Cannes Burkini Ban Undermines Freedom Of Muslim Women. Na sua opinião, mais sanguínea, “It is unacceptable that we have decrees based on the idea that wearing a headscarf implies a link to fanaticism. Citizens should be free to wear what they choose! When will Muslims in Europe be respected and treated as equal citizens? When will we stop marginalizing millions of European Muslim citizens, especially women?”
A escritora criticava em especial o presidente da câmara de Cannes que, em declarações ao Nice-Matin, afirmou que “Je n’ai ni le temps ni l’envie de polémiquer. J’ai pris cet arrêté parmi tant d’autres pour assurer la sécurité de ma ville dans un contexte d’état d’urgence. (...) On n’interdit pas le voile, ni la kippa, ni les croix, j’interdis simplement un uniforme qui est le symbole de l’extrémisme islamiste. Il faut arrêter de vouloir caricaturer cet arrêté. Nous vivons dans un espace public commun, il y a des règles à respecter.”
Menerva Hammad, uma jornalista austríaca de origem egípcia desenvolveu um argumento semelhante em Women Should Be Able To Wear What They Want To The Beach. That Includes Muslim Women, artigo publicado também pelo Huffington Post (originalmente da edição alemã). Aí defende que “It’s 2016: Can’t we allow women the freedom to choose what to wear? Wouldn’t that be the ultimate form of emancipation? Just because many female celebrities opt for revealing clothes and sing about feminism doesn’t mean that they’re free. Freedom starts inside your head, and not on top of it. Women shouldn’t be reduced to what they’re wearing; but it happens all the time! I’m sick of reading that a woman is either a barbie doll in a miniskirt or a Taliban follower in a headscarf. Women are so much more than that.”
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Aquilo que muitas vezes não sabemos é até que ponto a escolha, pelas mulheres muçulmanas, desta forma de se vestirem corresponde às suas convicções religiosas ou deriva antes de uma relação ainda extremamente desigual com o sexo oposto. É por isso muito interessante ler um texto já antigo de Nilufer Gole, uma socióloga turca conhecida pelas suas posições desassombradas e que foi publicado na New Perspectives Quarterly. Deixo-vos só um bocadinho desse texto – que merece uma leitura atenta, até porque recorda a forma como a república laica de Kemal Ataturk tentou lidar com o problema da Turquia – e se chama, significativamente, The Freedom of Seduction:
Islamist politics seeks to curb the free public space by limiting women's visibility through veiling, which is essentially an effort to control women's sexuality by regulating the social encounter between the sexes. (…) Hence, in a Muslim context, the existence of a democratic public space depends on the social encounter between the sexes and on the eroticization of the public sphere. In short, while in Western societies it is the issue of abortion and freedom of reproduction that provokes collective passions, in the non-Western Islamic context the issue is the freedom of seduction.
Vivendo em Portugal, aparentemente longe destes problemas, não os podemos evitar – sobretudo não podemos evitar este debate, pois por ele passa muito do que seremos no futuro, de que forma manteremos os valores que tornaram o Ocidente num local de progresso e inclusão, sobretudo num local de liberdade. Daí a dificuldade do debate: defende-se melhor a liberdade permitindo ou proibindo o burkini? Espero ter deixado algumas pistas que ajudem os leitores a pensar.
Tenham um bom descanso e melhores leituras.
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