São "objetos muito valiosos": notas, moedas, medalhas, selos, mapas, livros, jornais, revistas e outros documentos. É tudo parte da herança de António de Oliveira Salazar ou da memorabilia do período do Estado Novo que o seu sobrinho-neto, Rui Salazar de Lucena e Melo, foi colecionando ao longo de décadas. E está na génese de um complexo processo judicial que hoje chega ao Tribunal de Viseu: o familiar do antigo chefe de Estado exige que os bens, depositados na Câmara Municipal de Santa Comba Dão e que avalia em 345 mil euros, lhe sejam devolvidos pela autarquia beirã.
A história - com génese no Vimieiro, terra natal de Salazar e último bastião onde o seu controverso nome é reverenciado - estende-se desde meados da década passada, quando o município santacombadense planeava avançar com a criação de um centro interpretativo do Estado Novo na aldeia, vizinha da sede do concelho. No âmbito desse projeto, em maio de 2006, Rui - um dos herdeiros, junto com o irmão António - doou à autarquia a sua parte dos bens imóveis e uma parcela dos bens móveis que herdara do tio-avô. No entanto, o sobrinho-neto (pelo lado materno) alega que entre 9 de novembro de 2007 e 28 de janeiro de 2009 fez novos depósitos de objetos nas instalações da autarquia dos quais não foi oficializada a doação através de escritura.
"O presidente de câmara que estava na altura [João Lourenço] não fez escritura e o atual [Leonel Gouveia] nem sequer me chamou para discutir o assunto, o que me leva a depreender que não estão interessados. Se a câmara fosse honesta teria dito "isto [o projeto de museu/centro interpretativo] não pode andar, tome lá as suas coisas". Como não querem devolver, fomos para tribunal", resume Rui Salazar de Lucena e Melo. Essa batalha judicial iniciou-se em 2014. E, depois de uma audiência prévia, em maio (que não surtiu qualquer efeito), volta esta manhã ao Tribunal de Viseu. Contactados pelo DN, os responsáveis autárquicos de Santa Comba Dão preferiram, neste momento, não prestar declarações sobre o caso.
A transmissão não foi concluída devido a um desacordo entre as partes acerca do modelo de escritura, aponta Rui Salazar. "E ficámos assim: eles com os objetos, eu sem eles", sublinha o sobrinho-neto de Salazar, assegurando que fazer os depósitos nas instalações da autarquia antes das escrituras era a prática comum - já utilizada na doação oficializada em 2006.
O espólio da discórdia "tem objetos muito valiosos", insiste Rui, um dos últimos Salazar no Vimieiro, onde persiste a toponímia do Estado Novo - bem presente na Avenida Dr. António de Oliveira Salazar que cruza a aldeia. "Estão lá notas de Portugal de 1926, coleções das moedas do Ultramar com flor de cunho e umas peças com muito valor que estavam num cofre...", elenca, sem querer entrar mais em pormenores, mas avaliando tudo "em cerca de 345 mil euros".
Perante o impasse a que se chegou, o sobrinho-neto de Salazar só vê uma solução: "Que seja devolvido tudo aquilo de que não foi feita doação e que me paguem se lá faltar alguma coisa." No entanto, não esconde alguma mágoa pelo facto de o polémico museu/centro interpretativo nunca ter saído do papel. "As condições da doação que fiz em 2006 diziam que a sociedade devia iniciar atividade até finais de 2007 e que o Município de Santa Comba Dão devia garantir ao doador um lugar remunerado, a pagar um montante anual de 24 mil euros, em duodécimos de 2000 euros mensais, atualizáveis anualmente. Nada disso foi cumprido", denuncia Rui Salazar de Lucena e Melo. "Porquê 2000 euros? Porque eu tenho de ir para um lar e a minha reforma não chega a 500 euros...", justifica o familiar do antigo chefe de Estado, quase septuagenário.
Ali onde vive, paredes-meias com a antiga Escola-Cantina Salazar (erguida nos anos 40 para homenagear o então chefe de Estado), Rui lamenta o eterno adiamento do projeto também pelo impacto turístico que poderia ter no concelho. E apesar da fidelidade ao tempo político do tio-avô ("tenho muito boas recordações dele e más do que foi viver depois dele") garante que o objetivo nunca foi homenagear Salazar - os críticos temiam que se criasse "um espaço de culto ao ditador". "Para mim, o centro interpretativo deve servir para o estudo da evolução e da história do Estado Novo. Deve-se estudar a época, não a pessoa", conclui.
DN
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