Eurídice Monteiro – Expresso das Ilhas, opinião
Passadas mais de quatro décadas da independência nacional e um quarto de século de vivência em democracia, são visíveis as clivagens partidárias em relação aos marcos fundacionais do Estado-Nação. Exemplo disso é o conjunto de discursos proferidos pelas representações dos diferentes partidos na primeira sessão solene de celebração do chamado Dia da Liberdade e da Democracia, com cada um puxando a brasa à sua sardinha: o PAICV aclamando o 5 de Julho de 1975, o MpD vangloriando o 13 de Janeiro de 1991 e a UCID enaltecendo o seu combate ao regime de partido único. Vendo de longe tal celeuma, até parece que as duas datas são politicamente excludentes. Curiosamente, a existência destas disputas discursivas partidárias mais não é do que um resultado da convivência em democracia, trazendo à tona a ideia de John Shotter da própria identidade política e nacional como a tradição de argumentação. Mas, verdade seja dita: não se pode pensar a política neste país sem se reconhecer, ao menos, tanto os ganhos da independência como os da democracia, mas também as falhas e fragilidades de ambas.
5 de Julho e 13 de Janeiro
A independência nacional constituiu-se como um marco na afirmação do Estado nacional. Porém, sabe-se que, entre 1975-1990, os limites da cidadania eram impostos pela natureza do regime de partido único, que consagrava o partido de então (PAIGC/CV), por normativo constitucional (art. 4º da CRCV de 1980), como «força política dirigente da sociedade e do Estado». Mesmo antes, a Lei sobre a Organização Política do Estado (LOPE), que vigorou de 1975-1980 (como uma espécie de «pré-constituição»), subscrevia a tal princípio logo no seu artigo primeiro.
Um tema que tem suscitado discussão é a origem do Partido-Estado em Cabo Verde e como teria surgido o discurso legitimador do regime de partido único. Uns apontam o sistema soviéticocomunista como o modelo de onde o regime de então teria encontrado a sua inspiração. Outros incluem a influência dos regimes de partido único em voga por quase toda a África, principalmente na Guiné-Conakry, onde alguns dirigentes do PAIGC residiram no tempo da luta armada. Uma outra corrente aponta ainda a importância do novo direito internacional que sustentou o direito à autodeterminação. Pressupunha-se que, se o povo colonizado era caraterizado como algo compacto e homogéneo (a homogeneidade garantida pela condição de colonizado), o resultado lógico seria que o povo tivesse uma voz única no processo político de luta anticolonial. A consequência disso foi o reconhecimento do PAIGC pela Organização da Unidade Africana (OUA) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) como «único e legítimo representante do povo da Guiné e das ilhas de Cabo Verde».
Pondo de lado as discussões sobre a origem e a natureza do antigo regime, importa não esquecer que o livre exercício da cidadania começaria a ser consagrado com a democratização na década de 1990. Com efeito, se o 5 de Julho de 1975 marcou, de forma singular, o processo histórico de afirmação do Estado nacional em Cabo Verde, é controverso que tenha sido de facto o marco do livre exercício da cidadania. Por causa disso, vozes se levantam aclamando o 13 de Janeiro de 1991 como um verdadeiro critical juncture e as eleições realizadas nesse dia como um evento de proporções revolucionárias que mudaria a maneira de ver e fazer política no país.
A questão das eleições e do multipartidarismo
As eleições e o multipartidarismo não são inovações dos anos noventa, mas ganharam outro sentido e uma dimensão institucional (com a consagração do pluralismo de expressão e a competição político-eleitoral) a partir dessa data.
Em relação às experiências eleitorais, é evidente que, desde o tempo antigo (dos portugueses), no quadro do império, já eram realizadas eleições e em alguns momentos até se pode falar de eleições concorrenciais, ou seja, da participação de diferentes candidatos e agremiações políticas competindo pelo voto (sufrágio restrito).
No processo da independência nacional houve, pela primeira vez, o reconhecimento do sufrágio universal. É sabido que foram realizadas eleições para a Assembleia Constituinte (30 de Junho de 1975). Todavia, nessas eleições foram autorizadas apenas as listas únicas de candidatos sancionados pelo PAIGC, silenciando o embrionário multipartidarismo que existia na época. Lembre-se que, para além do PAIGC, também existiam a União Democrática de Cabo Verde (UDC) e a União do Povo das Ilhas de Cabo Verde (UPICV).
Durante o período de partido único, sabe-se que se realizaram eleições legislativas periódicas (em listas únicas do PAIGC/CV), como uma forma de legitimação plebiscitária do poder. O PAICV começou a apresentar alguns sinais de flexibilidade a partir da segunda metade dos anos oitenta. Nos finais de 1985, os dirigentes desse partido começaram a introduzir pequenas mudanças no sistema, permitindo que, para as eleições legislativas desse ano, os candidatos fossem apresentados à população, que deveria discutir as suas qualidades para depois votar, e que três cidadãos independentes integrassem as listas únicas do referido partido.
Resultado da revisão constitucional de 1990 e como uma dimensão estruturante na mudança para o regime democrático, a diferença que o 13 de Janeiro de 1991 introduz é a concretização de um novo ordenamento jurídico que permite a ampliação das possibilidades de escolhas políticas e liberdades individuais, seguindo os princípios do Estado de direito democrático.
O período compreendido entre Janeiro e Dezembro de 1991 foi seguido com grande entusiasmo. Foi marcado pelas primeiras eleições multipartidárias da história política deste país: legislativas, 13 de Janeiro; presidenciais, 17 de Fevereiro (primeiras eleições diretas para a eleição do Presidente da República); autárquicas, 15 de Dezembro (assinalando o início da autonomização do poder local). Em onze meses, tanto a nível central como local, ocorreu a transmissão do poder, traduzindo-se numa primeira alternância política no país.
Nos dias de hoje, o que realmente mais importa indagar é se as elites dos partidos se acomodam ao status quo e lhes agrada que o exercício da cidadania seja limitado ao voto. Com isto, e para terminar, fica aqui o repto no sentido de se pensar na democracia não apenas como uma prática de base schumpeteriana, com fações da classe política a competir pelo voto popular e onde o povo é incitado a regressar para a casa no dia seguinte. É fundamental que se pense em diferentes formas de participação cívica e do importante papel da sociedade civil enquanto alicerces indispensáveis para o aprofundamento da democracia e consequente exercício da cidadania plena.
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