O
gabinete com vista sobre Nova Iorque pertence agora a António
Guterres, na sede da ONU. No dia em que foi feita esta entrevista
exclusiva para o JN e o DN, ocupava uma sala de estores fechados por
razões de segurança, num edifício secundário. Com uma agenda
infernal, não deu sinais de cansaço nem de impaciência, como se
não enfrentasse "o trabalho mais difícil do mundo", nas
palavras do antecessor, Ban Ki moon.
É
o nono homem a ser escolhido para este cargo desde que as Nações
Unidas foram criadas em 1945, e apesar de já não podermos senti-lo
como o "nosso" António Guterres, português de raízes
rurais e cosmopolita por escolha, continua a ser o homem que dias
depois de se demitir do cargo de primeiro-ministro foi dar
explicações de Matemática a alunos de bairros degradados. Não
perde esse sentido do serviço, do dever, do olhar para o outro. O
poder, nele, serve para mudar o mundo para melhor.
Depois
de tantas intervenções suas sobre as linhas programáticas para o
cargo de secretário-geral, foi surpreendente o seu discurso na
receção que o presidente da República deu nas Nações Unidas, no
dia 12. Agradeceu a Portugal tudo o que lhe deu, sublinhando a
"solidariedade", a "tolerância" e o "diálogo",
tão sensíveis neste momento, em particular nos EUA. O
que disse não tem nada que ver com os Estados Unidos, tem tudo que
ver com Portugal. A tolerância e a compreensão da diversidade como
riqueza e não como ameaça, o facto de as sociedades hoje serem, ou
tenderem a ser, multiétnicas, multirreligiosas e multiculturais,
isso é um bem que requer um investimento para que as coisas corram
bem, para que haja coesão social, sem confrontos. Infelizmente esse
investimento nem sempre foi feito. Muitas situações, na Europa, são
a prova disso. As políticas de acolhimento e integração dos
imigrantes nos anos 1960/70 foram muito deficientes em vários países
europeus que estão hoje a pagar um preço. É necessário um
investimento político, económico, social e cultural para garantir
que todos sintam que as suas
identidades são respeitadas e que
fazem parte da comunidade, que há um cimento mais forte do que as
identidades de origem.
E
pensa que Portugal teve uma atitude diferente? Portugal
não tem os recursos de outros, temos muitas imperfeições e foi
tardia a atenção à integração das comunidades imigrantes. Mas é
um país onde o populismo não dá votos, sobretudo o xenófobo, e
nenhuma força política relevante utilizou aí as questões da
imigração. No quadro europeu, isso tem um significado extremamente
importante. Isso dá-me um grande orgulho como português, até
porque vivi, durante dez anos, a causa dos refugiados. Praticamente
na totalidade do período em que estive como alto-comissário vi as
fronteiras abertas, o regime de proteção de refugiados respeitado.
Houve poucos casos de reffoulement - é o termo técnico para o
envio de um refugiado para onde ele possa outra vez sofrer
perseguição. E depois de ter saído do ACNUR, em 2016, assisti a um
número crescente de fronteiras fechadas, casos de rejeição de
refugiados, maior relutância em relação às políticas de
integração, um pouco por toda a parte.
E
também a utilização disso em termos eleitorais a calar fundo no
eleitorado? Exato.
A Europa foi incapaz de gerir a crise dos refugiados. Um milhão de
pessoas chegaram a um continente que, na União Europeia, tem mais de
500 milhões. Seriam dois para cada mil, quando no Líbano há um
refugiado para cada três libaneses. Com adequada receção, triagem,
registo, notificações de segurança e uma distribuição
proporcional por avião pelos países europeus, teriam chegado a
Portugal 20 a 30 mil pessoas e seria manejável. Se a Europa se
tivesse assumido como Europa e não estivesse cada país por si, não
teria havido dramas de maior. Mas o que aconteceu foi caótico,
descontrolado, uma multidão cruzando fronteira em fronteira em
condições extremamente precárias. Olhando para as televisões, as
pessoas ficavam com a ideia de «vamos ser invadidos». Ficou fácil
o trabalho dos que exploraram os medos e as ansiedades, em termos de
populismo político.
E
agradeceu também a Portugal o apoio à sua candidatura, nesse
discurso. O
mínimo que podia fazer era exprimir o agradecimento ao meu país e
aos órgãos de soberania, ao governo que me propôs, ao presidente
da República que foi entusiástico, aos partidos - quer apoiantes do
governo quer da oposição -, ao Parlamento, à sociedade civil e a
tantos anónimos que se entusiasmaram com a candidatura e com o
resultado. Tinha obrigação de dizer quanto me orgulha pertencer a
um país capaz de dar este exemplo de união. Nem todos os candidatos
tiveram essa sorte, alguns eram de países divididos e até houve um
com duas candidatas. E ao mesmo tempo falar do meu orgulho por
Portugal ter continuado a encarnar os valores que foram fundamentais
no meu trabalho no ACNUR.
Valores
esses que contrastam com o ambiente que rodeia o presidente dos EUA
eleito e toda a sua campanha. Não
faz muito sentido isolar os Estados Unidos, é um clima geral. A
globalização e o progresso tecnológico tiveram resultados
extraordinários no crescimento económico global, até na redução
da pobreza. A pobreza absoluta no mundo foi reduzida, com um
contributo decisivo da China. Os indicadores sociais, como a
mortalidade infantil, melhoraram globalmente. Ao mesmo tempo,
aumentaram as desigualdades, o que torna mais insuportável a
exclusão. A globalização teve os seus perdedores. Nos países
desenvolvidos, na América do Norte e na Europa, há zonas
industriais que perderam imensos postos de trabalho e há gerações
que ficaram desprotegidas, com dificuldade em adaptar-se aos
empregos criados pelas novas tecnologias. Essas pessoas desenvolveram
uma progressiva rejeição de sistemas políticos que acham que não
se preocuparam com elas, que os políticos apenas querem o poder e
manter-se no poder. Daí que tendam a votar contra o "status
quo". Os governos europeus estão a perder os referendos, o que
é um reflexo não tanto das perguntas que são feitas mas de um
mal-estar em relação à forma como têm sido governados. O que se
passou nos EUA tem muito que ver com isso: as pessoas estavam
cansadas do mesmo e queriam algo de diferente.
Fonte: JN
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