terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Entrevista: Guterres rejeita ideia de que horror de Alepo é um plano de Deus


O gabinete com vista sobre Nova Iorque pertence agora a António Guterres, na sede da ONU. No dia em que foi feita esta entrevista exclusiva para o JN e o DN, ocupava uma sala de estores fechados por razões de segurança, num edifício secundário. Com uma agenda infernal, não deu sinais de cansaço nem de impaciência, como se não enfrentasse "o trabalho mais difícil do mundo", nas palavras do antecessor, Ban Ki­ moon.

É o nono homem a ser escolhido para este cargo desde que as Nações Unidas foram criadas em 1945, e apesar de já não podermos senti­-lo como o "nosso" António Guterres, português de raízes rurais e cosmopolita por escolha, continua a ser o homem que dias depois de se demitir do cargo de primeiro­-ministro foi dar explicações de Matemática a alunos de bairros degradados. Não perde esse sentido do serviço, do dever, do olhar para o outro. O poder, nele, serve para mudar o mundo para melhor.

Depois de tantas intervenções suas sobre as linhas programáticas para o cargo de secretário-geral, foi surpreendente o seu discurso na receção que o presidente da República deu nas Nações Unidas, no dia 12. Agradeceu a Portugal tudo o que lhe deu, sublinhando a "solidariedade", a "tolerância" e o "diálogo", tão sensíveis neste momento, em particular nos EUA. O que disse não tem nada que ver com os Estados Unidos, tem tudo que ver com Portugal. A tolerância e a compreensão da diversidade como riqueza e não como ameaça, o facto de as sociedades hoje serem, ou tenderem a ser, multiétnicas, multirreligiosas e multiculturais, isso é um bem que requer um investimento para que as coisas corram bem, para que haja coesão social, sem confrontos. Infelizmente esse investimento nem sempre foi feito. Muitas situações, na Europa, são a prova disso. As políticas de acolhimento e integração dos imigrantes nos anos 1960/70 foram muito deficientes em vários países europeus que estão hoje a pagar um preço. É necessário um investimento político, económico, social e cultural para garantir que todos sintam que as suas
identidades são respeitadas e que fazem parte da comunidade, que há um cimento mais forte do que as identidades de origem.


E pensa que Portugal teve uma atitude diferente? Portugal não tem os recursos de outros, temos muitas imperfeições e foi tardia a atenção à integração das comunidades imigrantes. Mas é um país onde o populismo não dá votos, sobretudo o xenófobo, e nenhuma força política relevante utilizou aí as questões da imigração. No quadro europeu, isso tem um significado extremamente importante. Isso dá­-me um grande orgulho como português, até porque vivi, durante dez anos, a causa dos refugiados. Praticamente na totalidade do período em que estive como alto-comissário vi as fronteiras abertas, o regime de proteção de refugiados respeitado. Houve poucos casos de reffoulement ­- é o termo técnico para o envio de um refugiado para onde ele possa outra vez sofrer perseguição. E depois de ter saído do ACNUR, em 2016, assisti a um número crescente de fronteiras fechadas, casos de rejeição de refugiados, maior relutância em relação às políticas de integração, um pouco por toda a parte.

E também a utilização disso em termos eleitorais a calar fundo no eleitorado? Exato. A Europa foi incapaz de gerir a crise dos refugiados. Um milhão de pessoas chegaram a um continente que, na União Europeia, tem mais de 500 milhões. Seriam dois para cada mil, quando no Líbano há um refugiado para cada três libaneses. Com adequada receção, triagem, registo, notificações de segurança e uma distribuição proporcional por avião pelos países europeus, teriam chegado a Portugal 20 a 30 mil pessoas e seria manejável. Se a Europa se tivesse assumido como Europa e não estivesse cada país por si, não teria havido dramas de maior. Mas o que aconteceu foi caótico, descontrolado, uma multidão cruzando fronteira em fronteira em condições extremamente precárias. Olhando para as televisões, as pessoas ficavam com a ideia de «vamos ser invadidos». Ficou fácil o trabalho dos que exploraram os medos e as ansiedades, em termos de populismo político.

E agradeceu também a Portugal o apoio à sua candidatura, nesse discurso. O mínimo que podia fazer era exprimir o agradecimento ao meu país e aos órgãos de soberania, ao governo que me propôs, ao presidente da República que foi entusiástico, aos partidos - quer apoiantes do governo quer da oposição -, ao Parlamento, à sociedade civil e a tantos anónimos que se entusiasmaram com a candidatura e com o resultado. Tinha obrigação de dizer quanto me orgulha pertencer a um país capaz de dar este exemplo de união. Nem todos os candidatos tiveram essa sorte, alguns eram de países divididos e até houve um com duas candidatas. E ao mesmo tempo falar do meu orgulho por Portugal ter continuado a encarnar os valores que foram fundamentais no meu trabalho no ACNUR.


Valores esses que contrastam com o ambiente que rodeia o presidente dos EUA eleito e toda a sua campanha. Não faz muito sentido isolar os Estados Unidos, é um clima geral. A globalização e o progresso tecnológico tiveram resultados extraordinários no crescimento económico global, até na redução da pobreza. A pobreza absoluta no mundo foi reduzida, com um contributo decisivo da China. Os indicadores sociais, como a mortalidade infantil, melhoraram globalmente. Ao mesmo tempo, aumentaram as desigualdades, o que torna mais insuportável a exclusão. A globalização teve os seus perdedores. Nos paí­ses desenvolvidos, na América do Norte e na Europa, há zonas industriais que perderam imensos postos de trabalho e há gerações que ficaram desprotegidas, com dificuldade em adaptar­-se aos empregos criados pelas novas tecnologias. Essas pessoas desenvolveram uma progressiva rejeição de sistemas políticos que acham que não se preocuparam com elas, que os políticos apenas querem o poder e manter­-se no poder. Daí que tendam a votar contra o "status quo". Os governos europeus estão a perder os referendos, o que é um reflexo não tanto das perguntas que são feitas mas de um mal-estar em relação à forma como têm sido governados. O que se passou nos EUA tem muito que ver com isso: as pessoas estavam cansadas do mesmo e queriam algo de diferente.

Fonte: JN

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