domingo, 5 de fevereiro de 2017

Portugal. A INSPEÇÃO DO TRABALHO

Manuel Carvalho da Silva* - Jornal de Notícias, opinião
A instituição Inspeção do Trabalho em Portugal já tem 100 anos. Ela surgiu na sequência da criação do Ministério do Trabalho, em 1916. Nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, forças progressistas - socialistas, sociais-democratas, anarquistas, republicanos e outros - reclamavam políticas e práticas laborais que travassem a exploração desenfreada, ao mesmo tempo que se batiam pelo reconhecimento e ampliação das organizações do movimento operário que, com lutas heroicas, protegiam os trabalhadores e afirmavam os seus direitos. Não é por acaso que a Carta Encíclica "Rerum Novarum", de 1891, afirma: "Os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada".

Hoje, como há cem anos, por certo de formas diferentes, é imprescindível que os estados e as instituições internacionais intervenham com instrumentos eficazes para que seja reconhecida e efetivada a dignidade do Homem no trabalho: a saúde dos trabalhadores, as suas capacidades físicas, intelectuais e morais serem garantidas, também em função da idade e do género; afirmadas condições dignas de prestação do trabalho; assegurados os direitos ao repouso e a usufruir do tempo do não trabalho, tão necessário para organizar a família e concretizar participação social, cultural e política.

O Estado social de direito democrático assenta em "trabalho digno", só possível com leis adequadas e justas e sua plena aplicação, utilizando para o efeito, nomeadamente, a ação de organismos especializados, como é o caso da Inspeção do Trabalho, atualmente organizada na Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT). A este organismo público está atribuída uma ampla ação "no âmbito das relações laborais privadas, bem como a promoção de políticas de prevenção de riscos profissionais e, ainda, o controlo do cumprimento da legislação relativa à segurança e saúde no trabalho, em todos os setores de atividade, e nos serviços e organismos da administração pública central, direta e indireta, e local, incluindo os institutos públicos".

Num país com muitas centenas de milhares de empresas e serviços, como é possível haver apenas 308 inspetores do Trabalho? É preciso reforçar este quadro de efetivos, a sua formação geral e as suas especializações. O Governo, outros órgãos de soberania e instituições devem valorizar estes trabalhadores e as suas funções, conceder-lhes autoridade reforçada que se consegue também pela sua dignificação.

Entretanto, Portugal necessita: i) de uma cultura de efetividade do Direito do Trabalho que convoca uma melhoria da ética da legalidade e um reforço da contratação coletiva que tem (e bem) força de lei; ii) que as leis do Trabalho - em particular na sua interpretação pelos tribunais - sejam equilibradas na subordinação jurídica, mas muito mais atentas à dependência e vulnerabilidade económica dos trabalhadores e até, em muitos casos, de umas empresas perante as outras; iii) de tribunais mais acessíveis, com melhor conhecimento da estrutura e organização das empresas e das relações de poder aí existentes; iv) de aperfeiçoar o rendimento da Inspeção do Trabalho e da ACT no seu todo, ultrapassando-se os défices atrás referidos e reforçando-se a sua ação preventiva em várias áreas; v) de reforço da liberdade efetiva de organização dos trabalhadores - sindicatos, comissões de trabalhadores e comissões para a saúde e segurança no trabalho - que possibilite o exercício pleno dos direitos consagrados na Lei.

Refiro apenas três situações que, no âmbito da ação inspetiva e fiscalizadora, obrigam hoje a intenso trabalho para travar a lei da selva: a) o combate à informalidade, ao trabalho oculto e a formas gritantes de precariedade; b) a identificação e denúncia do falso trabalho autónomo; c) uma observação atenta a serviços considerados mais qualificados no setor financeiro, em grandes escritórios de advogados e consultoras, em serviços de saúde e outros em que se desrespeitam horários de trabalho e proliferam ilegalidades.

A democracia precisa de instituições fortes de trabalho digno e de cidadania.

*Investigador e professor universitário

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