sexta-feira, 23 de junho de 2017

Macroscópio – Tempo de não fugir mais à discussão. Em nome dos que morreram.


15394f37-d15a-4db8-9900-7c4008f236fe.jpg

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
 
A temperatura baixou, o fogo extinguiu-se, nas fotografias de satélite pintou-se uma enorme mancha negra que ocupa boa parte dos concelhos de Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos, entrando também por Góis e por Castanheira de Pera. Mais do que a dimensão dessa cicatriz, oque esta tragédia nos retirou foram 64 vidas, uma tragédia humana sem paralelo. Por isso o silêncio que ainda era dominante nos primeiros dias foi sendo substituído pela discussão aberta. Este Macroscópio centrar-se-á por isso mais nessa discussão, incluindo apenas algumas referências a trabalhos jornalísticos que procuram responder a algumas das questões que têm vindo a ser debatidas e deixando de lado as muitas (e boas) reportagens publicadas pela generalidade dos órgãos de informação, retratos pungentes do que se viveu naquelas terrar que, mesmo não sendo assim tão distantes, estão esquecidas e há muito abandonadas.
 
Começo pelos trabalhos jornalísticos, e entre estes pelas 29 perguntas que já têm (algumas) respostas, um levantamento em permanente actualização do Observador. Sobre o que se passou com o SIRESP, hoje e no passado, remeto para o trabalho de Paulo Pena no Público – A história de uma parceria público-privada que custou mais do que parece merecer – e para o Explicador do Observador, Como funciona este sistema de emergência que falha nas catástrofes?
 
No que diz respeito a entrevistas, destaco mais uma, a do Público/Renascença a António Salgueiro, antigo dirigente do Grupo de Análise e Uso do Fogo e um dos maiores especialistas nacionais em fogos florestais. O nosso sistema está manipulado para “promover corporativismos”, diz especialista em fogos florestais é um testemunho forte onde se considera que em Pedrógão Grande houve uma enorme descoordenação da protecção civil. Mais: o que ali aconteceu revela bem como temos um sistema de defesa contra incêndios mal desenhado, que resiete a mudanças e se baseia numa protecção civil corporativista, algo que intimida até os políticos.
 

Passemos agora a um conjunto de textos que procuram debater o que se passou e as políticas de protecção (ou desprotecção) da floresta.
  • Como passámos a ter estradas onde corremos o risco de ser incinerados, de Jorge Paiva no Público é especialmente interessante por este biólogo nos contar como evoluiu o coberto vegetal em Portugal e como hoje estamos na situação em que estamos. De resto insiste nalguns dos pontos mais falados por estes dias: “Apesar de andar a alertar para as causas dos piroverões anuais que acontecem há cerca de quatro dezenas de anos e como se pode resolver o problema, os governos sucessivos que temos tido, não só nada fizeram, como também têm sido colaboracionistas na florestação mono-específica, contínua e contígua, sem o mínimo de ordenamento e regras.
  • 99% de sucesso. 64 mortos. É isto que queremos?, um texto meu no Observador que parte da entrevista do primeiro-ministro à TVI para contestar a prioridade que tem sido dada à chamada “primeira intervenção”, com a ilusão de que assim se evitam as catástrofes maiores. Contudo basta um falha para um fogo escapar ao controlo e tudo correr mal, como se viu em Pedrógão mas já se tinha visto antes, no terrível Verão de 2003, “o pior ano de incêndios em Portugal, quando arderam 440 mil hectares. Nesse ano houve sensivelmente 20 mil “ignições”, sendo que em 19.800 (ou seja, em 99% delas) arderam menos de 100 hectares. O problema esteve no 1% que escapou ao controle: nesses 200 fogos desapareceram 400 mil hectares.” Também no sábado o sistema dominou com facilidade 154 dos 156 fogos detectados, mas sabemos o que aconteceu nos outros dois.
  • Sobre a morte do país rural, de Pedro Ferros no jornal i, é um dos vários textos que chamam a atenção para como mudámos de país sem termos sabido encontrar as necessárias novas políticas: “O país mudou a sua demografia, e enquanto não se perceber que o País mudado precisa de uma nova lógica coerente e efectiva para o mundo rural que foi abandonado e desertificado, só nos restará ir ardendo… e desejar paz eterna à alma das vítimas deste país adiado.”
  • Mudar a narrativa sobre os bombeiros, de Henrique Raposo no Expresso Diário (paywall), trata de abordar um dos temas tabu nestes debates, e tema tabu pois ninguém se atreve a contestar a contestar a prioridade dada aos bombeiros voluntários no sistema de protecção civil em dias onde estes arriscam as suas vidas (e por vezes até as sacrificam). Contudo “Não podemos continuar nesta glorificação dos mártires que são os bombeiros voluntários. Queremos milhares de bombeiros amadores, romantizados, martirizados e que perdem a guerra todos os anos ou queremos centenas de bombeiros profissionais e vencedores da tal guerra dos verões?”
  • Desculpa, Pedrógão Grande, de Helena Garrido no Observador, uma crónica sentida sobre o mesmo tema: “Portugal está desagregado e desorganizado. Temos dois países, um deles cada vez mais abandonado porque não dá votos, porque há uns que são mais iguais que outros.
  • Um problema de segurança nacional, de Viriato Soromenho Marques no Diário de Notícias, onde se evocam algumas figuras grandes da conservação da natureza em Portugal para sublinhar que “Tanto em 1815 como em 1971, os nossos melhores sabiam que a gestão da natureza e o ordenamento do território - fundamentais para uma nação que não queira desaguar num deserto - implicam fortes políticas públicas, intensivas em conhecimento, trabalho e capital.” Já hoje “Os interesses mesquinhos paralisam a capacidade de decisão.” 
  • No meu país, em 2017, não devia acontecer, de António Galamba de novo no jornal i, onde este recorda que “O próprio Estado é laxista na preservação das suas propriedades, não dá o exemplo, mas isso é fraca desculpa para que cada um não faça o mínimo que lhe é acometido como obrigação para com a comunidade: não ampliar os riscos existentes.”
  • Quatro dilemas pós Pedrógão, de Luis Rochartre Álvares no Observador, uma reflexão de um engenheiro florestal que, depois de dar algumas sugestões sobre como é importante actuar de forma ponderada e avisada na legislação que se viera produzir, se conclui que “O momento que vivemos é um dos momentos definidores em que capítulo da história vão constar os actuais protagonistas políticos e técnicos do nosso País. Vão conscientemente assumir a importância histórica e a necessidade de se transformarem as políticas vigentes até à data ou vão reagir a uma agenda imediata deixando passar ao lado a suas responsabilidades de pensarem um País melhor no futuro e não uma agenda político-mediática tranquila nas próximas semanas.”
  • Ainda há o direito a ser da aldeia?, de Henrique Monteiro no Expresso Diário, um outra regresso ao tema do mundo rural onde se defende que não podemos pura e simplesmente tirar de lá as pessoas para depois elas não morrerem. Temos é de nos lembrar que “Quem é lesto a ceder a reivindicações várias (e refiro-me a muitas décadas), que grita contra as injustiças flagrantes, raramente – qual raramente, posso dizer nunca! – se recorda destes cidadãos que persistem no interior do país, amanhando a horta, o gado ou a resina.”
 
Passando a uma frente mais política – porque começa a existir discussão política e os partidos também quebraram o seu silencia inicial – eis alguns textos mais acutilantes:
  • Peçam desculpa!, de Rui Ramos, onde se exige ao Presidente e ao primeiro-ministro que, ao menos, coloquem os olhos no exemplo da primeira-ministra britânica, que já pediu desculpa pelo que sucedeu no terrível fogo numa torre de habitação social de Londres: “O Estado fracassou em Portugal nas suas funções mais básicas. Agora, não podemos passar da tragédia à farsa. Todos sabemos que os inquéritos, como todos os inquéritos, não vão apurar nada. (...) O reconhecimento da responsabilidade constituiria talvez, dados os precedentes, a única mudança possível (...) Sr. Presidente? Sr. Primeiro-Ministro? Vão ter coragem de pedir desculpa, em nome do Estado, pelas vidas perdidas, pelas famílias destruídas, pelas comunidades atormentadas enquanto os senhores ocupavam os primeiros lugares do Estado?
  • A conta, onde Helena Matos, também no Observador, discute o silêncio dos parceiros da geringonça, o Bloco e o PCP. E defende que é um silêncio que terá um preço: “Nos próximos tempos assistiremos a um reajustamento das forças: PCP e BE quererão ser ressarcidos dos danos de imagem que sofreram em Pedrogão e António Costa precisa de retornar urgentemente a narrativa do sucesso porque só ela o legitima e porque só ela lhe permite controlar a agenda, as perguntas e os factos com que é confrontado. Quando perde esse controlo, quando deixa de estar entre jornalismo amigo, Costa revela-se um político frágil e mal preparado.”
  • Um escândalo chamado SIRESP, de João Miguel Tavares no Público, é um texto onde se recordam todos os fracassos associados a esse sistema e se conclui, sem papas na língua: “Em 2005, o ministro da Administração Interna Daniel Sanches – que trabalhava para a SLN antes de integrar o governo – e o ministro das Finanças Bagão Félix adjudicaram o negócio por mais de 500 milhões de euros, três dias depois de Pedro Santana Lopes perder as eleições para José Sócrates. Num primeiro momento, António Costa, ministro da Administração Interna de Sócrates, travou a adjudicação, mas acabou por fechar o negócio por 458 milhões. (...) Acham mesmo que esta tragédia não tem implicações políticas? Claro que tem. E não são poucas.”
  • Uma culpa com muitos maridos, de Daniel Oliveira no Expresso Diário (paywall), é um texto relativamente defensivo, depois de outros textos onde o cronista já escrevera que todos somos culpados e até fazia a sua autocrítica por também ele não ter dado a importância que devia ter dado aos problemas da floresta, Contudo, defende, “Uma coisa é não querer que a culpa morra solteira outra é casá-la com quem teve o azar de estar de turno no dia do incêndio. Não vejo como é que alguém, com os poucos dados existentes, se sente à vontade para identificar responsáveis políticos e demiti-los.”
  • O resto é paisagem... e cinza, de Rafael Barbosa no Jornal de Notícias, é uma crónica que não se desvia muito desta orientação: “No escasso tempo ocupado a discutir esta realidade, houve um deputado do PSD (Jorge Paulo Oliveira) que fez uma boa síntese do país que temos e de quem são os culpados. "Digo e repito, falhámos todos. Falharam os partidos que passaram pelo Governo, falharam os partidos na Oposição. É um falhanço de todo o país." É uma explicação longínqua. Não se vislumbra um culpado. Mas, se não nos consola perante a tragédia de Pedrógão Grande, devia pelo menos pôr-nos a pensar.” 

Para além do debate mais político está também a iniciar-se um debate económico, sendo que os economistas, sem serem especialistas em florestas, sabem que a economia florestal tem de ter sustentabilidade económica para que os nossos motes não fiquem ao abandono. A questão é saber como. É curioso ver como mesmo economistas liberais falam de falhas de mercado e da eventual necessidade de subsídios:
  • Falhas do Estado nos incêndios, de Pedro Braz Teixeira no jornal Eco, onde se vai directo ao assunto: “Das duas, uma: ou se criam condições de rentabilização dos terrenos actualmente abandonados ou tem que ser o Estado a fazer a sua limpeza.”
  • Sem palavras, de Luís Aguiar-Conraria no Observador, é ainda mais directo: “Se a sociedade valoriza as florestas, mas o mercado não remunera os serviços florestais, estamos perante uma falha de mercado que deve ser paga com os nossos subsídios. Alternativamente, se, enquanto sociedade, não estamos dispostos a pagar o que for necessário para manter a floresta, mais vale reduzir a área florestal portuguesa. Poupam-se vidas e dinheiro a combater incêndios.”
  • Os mortos são um pormenor, de Maria João Marques também no Observador, é uma crónica que, depois de uma incursão muito interessante pelo passado onde nos recorda como em catástrofes anteriores os regimes tentaram apresentar como “fatalidades” desastres que poderiam ter evitados ou pelo menos mitigados, prefere criticar os que já estão a pedir mais e mais Estado: “Já houve quem aventasse outra culpada aceitável: a propriedade privada da floresta. Bem como a necessidade de nacionalização das terras para as manter, em propriedade pública, limpas. Já estão a gargalhar, certo? O Estado – que tem estradas e ruas com buracos, hospitais e escolas decrépitas, património histórico em degradação, e por aí adiante – não se vê cristalinamente que vai manter florestas limpas?
 
Estou a chegar ao fim de mais um longo Macroscópio mas não posso terminar sem duas notas mais jornalísticas, a primeira das quais para a curiosa discussão (gostava de usar outra expressão, mas coibo-me) sobre se os jornalistas devem ou não fazer perguntas. O director do Diário de Notícias, Paulo Baldaia, acha que ainda não: em Para que servem as perguntas? defende que “Há momentos em que é preciso saber esperar para ter as respostas para as perguntas que fazemos”. O director do Público, David Dinis, pensa naturalmente o contrário, como escreve em A diferença que faz fazer perguntas: “Quero tanto as respostas para estes porquês que ficaria feliz se fosse a concorrência a chegar a elas. Porque isto não é sobre nós. É sobre eles.” Curiosamente foi no DN que, na coluna de opinião de um outro jornalista, saiu uma listagens mais exaustivas das perguntas a fazer. Falo da crónica As perguntas matam como o fogo?, de Pedro Tadeu, para quem “Não, não podemos parar de fazer perguntas, muitas perguntas.” Entretanto o debate fervilha nas redes sociais, mas isso são coisas mais da nossa intendência como jornalistas que se conhecem demasiado bem uns aos outros.
 
Assim, e como nota final mais clara de como pode ser apaixonante a nossa profissão, volto a citar uma crónica, um relato na primeira pessoa, de um jornalista que tem vivido estes dias naquele inferno. Não disse à minha mãe que estou sempre quase a chorar é um belo texto de José Miguel Gaspar, do Jornal de Notícias, notável sobretudo pela sua sinceridade: “O telefonema foi curtinho, isso é anormal, muitas vezes falamos meias horas, é sempre à noite, quando eu chego tarde para jantar, quando chego cedo ela espanta--se, mas ontem não, não conseguia, não lhe disse mais nada, não lhe disse, claro que não, que ando aqui sempre quase a chorar, mas não é por mim, mãe, eu estou bem, é por eles, mãe, ninguém merece morrer assim, mãe, tantas pessoas que morreram a arder.”
 
E pronto. É tarde, estendi-me demais, mas o tema exigia-o. Até amanhã.
 
 
7c12c9e4-c229-46e4-8a2d-bdf8107e82b5.png
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2017 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário