terça-feira, 4 de julho de 2017

Macroscópio – Costa está de férias, as crises nem por isso: o caso do assalto ao paiol de Tancos

15394f37-d15a-4db8-9900-7c4008f236fe.jpg

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Pode ser falha de memória, mas não me recordo de um primeiro-ministro justificar em comunicado o facto de estar de férias – mas a verdade é que, duas semanas passadas sobre a tragédia de Pedrógão Grande e numa altura em que outra tempestade se levanta (as condições do roubo de armas de guerra do paiol de Tancos), as férias de António Costa tornaram-se um tema político. O primeiro-ministro “está sempre contactável e disponível em caso de necessidade”, diz o comunicado, sabendo-se contudo que Costa não foi a banhos para qualquer recanto do território nacional, mas sim para Palma de Maiorca. Assunção Cristas pediu entretanto a demissão dos ministros da Defesa e Administração Interna – “Sr. primeiro-ministro, volte e demita-os”, disse a líder do CDS/PP depois de ser recebida pelo Presidente da República – e um raro movimento de oficiais das Forças Armadas está a organizar um protesto que deverá culminar com a deposição simbólica das espadas junto do Palácio de Belém.
 
Antes de vos referir alguns textos de opinião e análise sobre este novo episódio, referência para alguns textos que ajudam a enquadrar o que se está a passar:
 
Essencial para perceber a tensão e o mal estar existente no Exército, assim como a subida de tom da contestação política, é conhecer as declarações públicas quer do chefe de Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte, quer do ministro da Defesa, Azeredo Lopes. David Dinis registou-as numa crónica no Público, O plano para Tancos:
  • Disse o general: "Estes roubos podem acontecer em qualquer Exército, em qualquer país, desde que haja intenções, vontades e capacidades.". "Não me compete avaliar por que é que a videovigilância estava avariada há cerca de dois anos e não foi corrigida". "Tínhamos um plano elaborado, passava pelo melhoramento das vedações e pela implementação de um sistema de vigilância". "Estes paióis tinham material mais sensível. Foram escolhidos a dedo". 
  • Explicou-se o ministro: “Há quebras e falhas de segurança muito superiores a esta"; “Por muito estranho que possa parecer o ministro da Defesa Nacional não sabe se há falta de vigilância em Tancos”; "Está prevista uma verba de 95 mil euros na Lei de Programação Militar (LPM), um plano que tem um sistema integrado de videovigilância do Exército, que vai estar concluído em 2018 e que visa reparar as deficiências que foram detectadas neste domínio”.
 

As análises do que se passou em Tancos e do que as autoridades fizeram desde que o assalto foi detectado sublinham quer a gravidade da ocorrência, quer a surpresa pela reacção das autoridades, quer a estupefação pelas declarações do general e do ministro. Vejamos algumas delas:
  • Desconfiar das instituições, de Alexandre Homem Cristo no Observador: “O [ministro da Defesa Nacional] sugere que, enquanto ministro, não sabe “se há falta de segurança em Tancos”. Ora, se não sabe devia saber – era o que faltava se cada ministro lavasse as mãos do que se passa sob a sua tutela. E, de resto, tudo indica que o ministro sabia mesmo, porque assinou um despacho no início de Junho para autorizar o reforço da vedação que havia sido cortada. E espera-se que a sua decisão tenha sido fundamentada no conhecimento da situação.”
  • Os paióis de Tancos e uma história muito portuguesa, de Paulo Tavares no Diário de Notícias: “Como é que estava o tempo na quarta-feira em Tancos? É só mesmo o que falta. Ouvir o ministro da Defesa invocar um conjunto de variáveis únicas, inesperadas e absolutamente fora do controlo humano para justificar o roubo de material de guerra num paiol ao lado de uma base militar onde está instalada uma brigada NATO. Até agora, o ministro da Defesa manteve uma linha de argumentação pouco aceitável.”
  • O caos deu à Costa, de Henrique Raposo no Expresso Diário (paywall): “Os partidos de esquerda construíram os orçamentos com os índices de investimento público mais baixos de sempre. Nem a troika cortou tanto nesta alínea. A austeridade, ao contrário do que Costa dizia, não tinha desaparecido, tinha apenas mudado de fórmula. Costa não cortou apenas na ideia de que o estado é o motor da economia. Foi mais longe. Foi longe demais. (...) As cativações de Centeno estavam a tornar o estado inoperacional, mas Costa lá ia passando nos intervalos da boa imprensa.”
  • Breve dicionário para perceber os dias que correm e os que vão correr, de Helena Matos no Observador: “Entrevistado na RTP o Chefe de Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte, declarou que não lhe passa minimamente pela cabeça apresentar a demissão por causa dos acontecimentos de Tancos. Não deixa de ser curiosa esta afirmação vinda de um Chefe de Estado-Maior do Exército que chegou ao cargo após o seu antecessor, general Carlos Jerónimo, ter sido forçado a demitir-se porque o subdirector do Colégio Militar fizera uma declaração que podia ser interpretada como discriminatória para os alunos homossexuais.
  • O verão horribilis de António Costa, de Ana Sá Lopes no jornal i: “Ver a ministra da Administração Interna a fazer confissões de desgosto torna-se pungente, não menos pungente do que ver o ministro da Defesa a anunciar que retira a responsabilidade política do que aconteceu em Tancos... mantendo-se no posto! Infelizmente, isto já não é um governo. É um monte de ovelhas pastoreadas por António Costa, o homem a quem Deus proporcionou uma enorme autoconfiança, ao ponto de se dar ao luxo de manter as suas férias (mesmo que as interrompa a meio da semana) com o país no meio do caos.”
  • Forças Desarmadas, de Francisco Moita Flores no Correio da Manhã: “O potencial bélico roubado tem um poder destrutivo que vai muito para além dos materiais usados em Manchester ou no Bataclã, em Paris. (...) Daí que não se compreenda a ligeireza, quase cínica, com que o episódio foi relativizado pelo ministro da tutela. (...) Fala-se da falta de videovigilância há mais de dois anos com o à vontade com que se palita um dente e, como não podia deixar de ser, foi tudo um problema de azar.
  • Quando o Estado não cuida, de João Taborda da Gama, no Diário de Notícias: “Falta, entre os afetos e os relatórios técnicos, um Estado que peça desculpa por não ter protegido, por não ter evitado. Não são comissões independentes nem grupos de sábios, apenas um Estado que tem força para saber o que se passou, por mais excecional que tenha sido. (...)É estranho em tão pouco tempo ver estas fissuras no nosso Estado. Porque nestes momentos em que um Estado não cuida de nós, ou não cuida de si, não é Estado. E são também momentos para agradecer os outros dias todos em que corre tudo bem.”
  • O que separa (e junta) Pedrógão Grande e Tancos, de António Costa no jornal online Eco: “Como nos anunciaram que a austeridade acabou em janeiro de 2016, agora é difícil explicar que o que se gastou num lado teve de ser compensado com cortes no outro. (...) Chega a ser penoso ver o ministro da Defesa anunciar que já estava previsto um investimento de 95 mil euros, leram bem, 95 mil euros para equipar Tancos com videovigilância, uma ferramenta óbvia num sítio de alta segurança e que, se existisse, já teria acelerado as investigações a este roubo.”
  • Tancos: um ataque de implicações profundas, de Alexandre Krauss no Observador: “Portugal não pode ser comparado à Bósnia, Macedónia ou Albânia. Nestes países, os paióis de armas são atacados permanentemente e alguns mais parecem verdadeiros “supermercados” de armamento. Ainda o ano passado foi apanhado um veículo no meio da Alemanha com armas de um paiol Bósnio! Aqui a corrupção é transversal ao Estado e Forças Armadas. Por isso reafirmo que Portugal não pode de maneira alguma ser comparado a estes exemplos.”
  • Não há vergonha, de João Gonçalves no Jornal de Notícias: “Duas áreas cruciais de soberania - a Administração Interna e a Defesa - foram seriamente abaladas na sua credibilidade. Mas continua a não haver pedidos de desculpas por parte das "elites" que tomaram conta do Estado. Não há vergonha.”
  • A guerra do Solnado, de Celso Filipe no Jornal de Negócios: “No incêndio de Pedrógão ocorreram factores impossíveis de controlar (a temperatura, o vento), enquanto em Tancos todas as variáveis eram susceptíveis de serem monitorizadas e/ou alteradas por decisão humana. Em vez disso, procedeu-se com um espantosa incúria e reage-se com uma desfaçatez ainda maior.”
  • Pechisbeque, de Luciano Amaral no Correio da Manhã: “Em Tancos, foi tudo bastante mais simples: bastou um alicate, para cortar a rede que ‘protege’ o paiol, e fazer uma carreirinha até cá fora, porque a videovigilância não funciona. Que mais descobriremos? Que as bazucas do Exército vieram da loja do chinês? Que os aviões da Força Aérea são de pechisbeque?
 
Julgo não errar se disser que, nesta nova crise, o tom crítico dos comentários e análises é mais duro, e mais unânime, do que aconteceu aquando da tragédia de Pedrógão Grande. E as reacções políticas também. A temperatura deste Verão de 2017 continua elevada, a temperatura política ameaça subir. Mas por hoje é tudo, tenham boas leituras e bom descanso.
 
PS1. Acabo de receber a notícia da morte de Henrique Medina Carreira, um dos homens mais frontais e determinados que conheci. Vai fazer-nos falta, vamos ter saudades do seu desassombro.  
PS2. Já recomendei noutras ocasiões as conversas que o Observador organiza em colaboração com o Banco Popular e que decorrem na sua sede de Lisboa. A próxima é já dia 6 e nela Helena Garrido vai conversar sobre o tema Mais Perto com Cristina Velozo, presidente da Associação Boa Vizinhança, Rita Gomes, co-fundadora da Offline House, em Aljezur, e a psicóloga Catarina Mexia. A partir das 18H00, no Espaço Conversas Soltas Popular e com transmissão direta no Observador.

 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2017 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário