Quando mentem na justificação das suas faltas, os deputados estão a fazer falsas declarações para delas tirarem uma vantagem. Há maior sinal de decadência ética que nada aconteça quando isso ocorre?
Paulo Ferreira |
Devem os deputados estar sujeitos a um regime de faltas aos trabalhos parlamentares? Idealmente, não. São eleitos directamente pelo povo para o representar, têm um trabalho público por natureza, assume-se que são servidores públicos responsáveis e honesto e têm o seu trabalho escrutinado de forma permanente.
De quatro em quatro anos – quando não antes – são sujeitos a uma avaliação do mandato por parte dos eleitores e deveria ser essa a altura de se fazerem as contas ao seu trabalho. Sujeitar os representantes do povo a “picar o ponto” diariamente no Parlamento seria, nesse mundo ideal, uma irrelevância para a aferição de eficácia e qualidade do trabalho de cada um.
Mas este mundo ideal não existe e, no sistema eleitoral português, ele acaba logo na forma como os eleitores são chamados a votar: em listas feitas pelos partidos que diluem, logo à partida, qualquer possibilidade de avaliação individual e que são feitas, como sabemos, seguindo lógicas e critérios de avaliação que só por mero acaso coincidem com os que os eleitores valorizam.
As críticas regulares à classe política, algum populismo editorial e o instinto corporativo de auto-defesa levaram, pois, os deputados a instituir para si mesmos um regime de faltas aos seus trabalhos parlamentares.
Quiseram, assim, dar se si uma ideia de transparência, de prestação de contas, de afinco à sua função e de responsabilização. E, mostrando que o rei vai nu, criaram um sistema à medida que parece aquilo tudo mas que, na prática, não é nada daquilo.
Os casos recentes de políticos que viajam a convite de empresas para eventos ou tarefas que nada têm a ver com a sua função levantaram, antes de mais nada, a questão ética primária relacionada com a aceitação desses presentes. Mas, ao mesmo tempo, destaparam a forma como alguns deputados manipulam e deturpam como bem entendem o regime de faltas em vigor. E este é um outro problema ético, autónomo daquele.
Quando o recém-eleito líder da bancada social-democrata, Hugo Soares, invocou “motivo de força maior” para justificar a falta que deu para ir ver um jogo de futebol, mentiu ao Parlamento. Do mesmo modo, Luís Montenegro, que o antecedeu no cargo, também mentiu ao Parlamento quando justificou com “trabalho político” a mesma viagem. E o mesmo fez Sérgio Azevedo, também do PSD, quando justificou uma viagem a título pessoal à China com motivo de “força maior”.
São três casos trazidos recentemente para a praça pública por terem na sua origem falhas éticas eventualmente mais graves. Provavelmente, outros haverá. Mas este não é um assunto menor.
Primeiro porque, na prática, quem o faz está a fazer uma falsa declaração ao Parlamento. Depois, está a usar essa mentira para dela tirar uma vantagem, que é a de não somar faltas que, no limite, podem levar à perda de mandato. E, por fim, por estar a transformar numa fraude um regime que é suposto tornar a actividade parlamentar mais transparente, causando danos a todos e à instituição.
Que não se valorizem estas práticas ao ponto de nem haver uma leve censura pública dos pares diz bem da decadência ética e moral em que estamos mergulhados. No caso recente do PSD, os deputados até elegeram para líder da bancada um deputado que já vinha com esta nódoa.
Assume-se como corrente, normal e isento de censura que um deputado possa mentir na justificação de uma falta, como faz um qualquer adolescente para “furar” uma aula sem criar problemas na escola e em casa.
É uma atitude pequenina e indigna, que devia envergonhar quem a pratica e que nos permite tirar ilações sobre a estatura ética e nível de responsabilidade pública dos autores. Além de ser sempre, claro está, um péssimo exemplo para o comum dos cidadãos. Pois se até os deputados o fazem, porque não pode cada um de nós “matar” pela quarta vez aquela tia distante que vive na província ou inventar uma dor de dentes para faltar às suas obrigações laborais?
O regime parlamentar de “Presenças e Faltas ao Plenário” até faz um esforço para tratar os deputados como adultos e pessoas de bem. No seu ponto 7, determina que “a palavra do Deputado faz fé, não carecendo por isso de comprovativos adicionais”. Em vão, como se vai vendo. A palavra de alguns deputados não faz fé e isso é triste.
Parece que, agora, se começa a perceber que isto é um problema. Não as faltas mal justificadas em si, que não são novas, mas sim o facto de se terem tornado públicas e notórias. Este é outro tique que não conseguimos largar: o problema nunca é a pequena ou grande trapaça mas sim o facto de ela se tornar pública. E então como resolver isto? Vai-se ao “Manual das reacções políticas para português ver” e recorre-se à solução nº 27: faz-se um código de conduta.
Foi isso que nos contou o “Diário de Notícias” de sábado e que estará a ser preparado na Comissão Parlamentar sobre a Transparência. A notícia esclarece que “não se trata de uma alteração legal – a generalidade dos partidos diz-se, aliás, contrária a mudanças na lei nesta matéria -, mas de uma explicitação do que cabe dentro daquelas justificações”.
Mas os deputados precisam de mais do que de um barato dicionário de língua portuguesa para saber o que quer dizer “motivo de força maior” – que, aliás, está definido na lei – ou “trabalho político”?
A ideia do código de conduta e do “manual de instruções” pode até ser bem-intencionada. Mas é bom alertar que não há “manual de instruções” eficaz a dar ética a quem a não tem e a transformar mentiras em verdades.
Só há uma coisa pior do que não haver regras: é defini-las para se simular rigor e, depois, deixar que sejam violadas e deturpadas. Que isso se passe impunemente no Parlamento diz muito do que somos.
Fonte: Economia Online
Nenhum comentário:
Postar um comentário