- Péricles Capanema
PRIVATIZADO. Numa tardinha quente, passeava distraído o olhar pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, caderno de Economia. Chamou-me a atenção um título em verde e em maiúsculas: PRIVATIZADO. Mudei de postura, fiquei interessado, ávido até, fui verificar esperançado o que estava sendo privatizado. Algo novo? Sabia nada. O fato poderia indicar rumo de maior eficiência econômica, menor presença do Estado onde não deve estar, para que tenha mais recursos para agir onde deve atuar. Enfim, mais e mais amplas liberdades para o cidadão comum, autonomia em seus espaços, com congruente aumento de prosperidade, melhoria de emprego e renda, atendimento melhor aos mais necessitados. Lendo só o título, fiquei com vontade de ser otimista. No fundo, o primeiro impulso é ser otimista. E sou, via de regra, para tristeza minha, derrotado ou pela reflexão, ou pelos fatos. É sempre restaurador ver possibilidades sorridentes serem confirmadas. Era derrota ou vitória o que viria? No caso, os fatos, sobretudo eles, decidiriam o pleito.
Uma grande refinaria deixa de pertencer à Petrobrás. Dentro do programa de privatização (ou desestatização, tanto faz), são oito grandes refinarias de propriedade da Petrobrás que devem ser vendidas à iniciativa particular. Uma já foi. Aqui vai, com todas as letras, o que li no mencionado jornal de 28 de novembro: “Por falar em Petrobrás, a estatal deve assinar o contrato final com o fundo Mubadala para a transferência do controle da primeira refinaria de grande porte para a iniciativa privada, a Mataripe (ex Landulpho Alves Rlam), na Bahia. O novo dono pretende fazer investimentos para atingir o potencial pleno da unidade. Hoje, ela está limitada entre 60% e 70%. Com isso, a produção sairá de 190 mil para 323 mil barris diários”.
A Petrobrás sai do refino. Vamos aos fatos e à análise. Tecnicamente a Petrobrás é sociedade de economia mista. Estatal, em linguagem corrente, aceitável e precisa, pois o governo federal (a União) tem o controle. Aempresa divulga no site dela informações atualizadas sobre as porcentagens detidas pela União (50,3% das ações ordinárias), investidores nacionais e investidores estrangeiros, tanto de ações ordinárias (com direito a voto) quanto de ações preferenciais (sem direito a voto). No total, o capital privado é francamente majoritário, embora o controle seja do governo. Enfim, sociedade de economia mista, ações negociadas em Bolsa, maioria em mãos particulares.
A privatização que estatiza. O fundo Mubadala é um fundo soberano gigantesco, mais de 230 bilhões de dólares em ativos. Fundo soberano é expressão para indicar fundo estatal. O Mubadala é por inteiro propriedade dos Emirados Árabes. A refinaria Landulpho Alves, na novilíngua brasileira, mas só na novilíngua, embora no caso de emprego a bem dizer obrigatório e amplamente generalizado, foi privatizada. Ponto final. Antes, era propriedade de uma sociedade de economia mista, com maioria de capital privado. Passou a ser propriedade de fundo totalmente estatal. Mas é privatização à brasileira, segundo a verborragia utilizada por toda a imprensa. A realidade não importa.
Impostura especialmente danosa. À vera, privatização enganosa, impostura gritante e preocupante. No título, o artigo traz um 3. É pelo menos a terceira vez que trato do tema, e sempre digo o mesmo; inócuo, parece. Situações assim vão continuar qualificadas de privatização por toda a imprensa. Pelo visto, nunca vai mudar. E a preocupação tem nota especialmente grave. Quando estatais chinesas, propriedades do Estado chinês, dirigidas pelo Partido Comunista Chinês, por meio do governo chinês, compram ativos no Brasil o processo também é chamado de privatização de nossas estatais. É o já bem enraizado estilo “me engana que eu gosto”. Parece, vivemos anestesiados num regime de enganação constante. O fato existe até em empresas há muito privatizadas. O exemplo que me ocorre é a Vale, privatizada em 6 de maio de 1997. Em 10 de fevereiro de 2019 (quase três anos atrás) postei artigo, está na rede, intitulado “Vale, privatização de mentirinha”. Transcrevi, e repito aqui, trecho da delação de Joesley Batista [o megaempresário queria escolher o presidente da Vale]: “Aí ele [Aécio] falou, ‘não pode porque eu já nomeei’. Parece que a Vale tem uma governança pra ter uma independência pra escolher presidente, mas parece que eles têm algum jeito de fraudar esse troço e virar presidente alguém com nomeação política. Ele [Aécio] me explicou isso, disse ‘nós fizemos um treco lá que em tese é independente, mas na prática o candidato da gente acaba ganhando’. Ele disse que eu poderia escolher qualquer uma das quatro diretorias, que eu escolhesse e que ele botava quem eu quisesse, se fosse o Dida, ele botava o Dida”.
Notícia agridoce. Termino com mais um fato. Tem um lado doce, outro amargo. Em 19 de novembro, a Petrobrás divulgou em tom alvissareiro, encontrou indícios de petróleo em poço pioneiro do bloco Aram [o poço 1 – BRSA – 1381 – SPS (Curaçao)]. Está a 240 quilômetros de Santos. Pode ser descoberta gigantesca, que, aumentando a produção brasileira de petróleo, valorizará a estatal. O bloco Aram foi arrematado pela Petrobrás em março de 2020, 6ª rodada de licitações da ANP. Não foi só a Petrobrás a arrematante. 80% do bloco pertence à Petrobrás, 20% à estatal chinesa CNODC (China National Oil and Gas Exploration and Development Company Ltd). Muita gente inclui atividades assim também dentro do programa de privatização (ou desestatização) levado a cabo pelo governo federal desde o governo Temer. Faz parte do engodo.
Derrota e possível vitória. Infelizmente, uma vez mais, não tinha razões para deixar o otimismo aflorar. Mais uma derrota do impulso primeiro, desinflado por um pouquinho de reflexão e fatos incontrastáveis. Reclamo, contudo, para concluir, uma providência e peço apoio. Será uma vitória consoladora, embora não minha. Diante da impostura e da enganação, geradoras de atraso e retrocesso, um pedido simples. Que finalmente se exponha a verdade, mesmo a dolorida, com simplicidade, transparência e objetividade. Sairá fortalecido o bem comum.
ABIM
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