sexta-feira, 13 de maio de 2016

Macroscópio – Essa coisa difícil que é a liberdade dos outros

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Numa altura em que o país continua empenhadamente a discutir os contratos de associação no serviço público de Educação era natural que estivesse também a debater “a liberdade de aprender e ensinar” consagrada no artigo 43º da nossa Constituição, mas está sobretudo a debater as decorrências do artigo 75º onde se escreve que “o Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”. De facto, como hoje notavaJoão Miguel Tavares no Público, “Ou seja, os direitos, liberdades e garantias dos indivíduos são proclamados no artigo 43 e logo encurralados pelos deveres culturais do Estado no artigo 75. Faz sentido? Não faz. Mas, a bem dizer, encurralar pessoas, cabeças e liberdades tem sido uma das melhores especialidades da nossa democracia.”

(Por lapso no Macroscópio de ontem citei uma versão antiga da nossa Constituição. A versão actual pode ser encontrada aqui. Entre as duas versões há uma diferença importante: a Lei Fundamental deixou de considerar, no artigo 75º, o ensino particular e cooperativo como sendo “supletivo”. Não é um detalhe e mostra como, nas sucessivas revisões, a Constituição se foi afastando da sua matriz inicial ainda mais estatista.)

O debate sobre os contratos de associação não será, não é mesmo, o melhor debate para se discutir “a liberdade de aprender e ensinar”, mas é significativo que nenhuma preocupação com a ideia de liberdade, de livre escolha dos cidadãos, tenha perpassado em grande parte deste debate. Por isso mesmo, mesmo desviando-me quilómetros da nossa discussão doméstica, dedico o Macroscópio de hoje a algumas formas mais insidiosas, e por isso mais perigosas, de limitação de liberdade.

O meu ponto de partida para a recolha de textos é uma reportagem do Guardian no campus da super-elitista Universidade de Harvard, reportagem essa em que o jornalista constata que os apoiantes de Hillary Clinton têm dificuldade em mostrar publicamente a sua opção tal a agressividade dos apoiantes de Bernie Sanders. Vale a pena ler 'I've been silent':Harvard's Clinton backers face life on a pro-Bernie campus pelo que aí se revela do ambiente de intolerância criado por quem se arroga o direito de proclamar quem é ou não de esquerda, e depois ostracizar (ou pior do que isso) todos os que não cabem no seu conceito de “esquerda”. Um dos estudantes pró-Clinton tinha, de resto escrito uns dias antes uma significativa carta para o New York Times - An Outlier at Harvard: ‘I’m a Hillary Supporter’. Aí se notava, por exemplo: “When defending Mrs. Clinton becomes as unacceptable as bigotry, when her supporters are called privileged, oppressive and stupid, we lose the central feature of our democracy — pluralism.”

Uma das manifestações que a reportagem do Guardian destacava como sendo mais reveladora do tom do debate era a forma como se ocupavam as redes sociais. De facto não são poucos os que já não se atrevem a ir “para as redes” – ou a frequentar as caixas de comentários dos órgãos de informação – por nelas reinar uma enorme intolerância. Foi isso mesmo que eu próprio notei num pequeno texto que escrevi para o novo blogue da Fundação Francisco Manuel dos Santos a propósito do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, que comemorámos no passado dia 5 de Maio. Nesse texto, intitulado Liberdade de informação no tempo das hordas ululantes, escrevi que “a limitação à liberdade de informação que hoje me preocupa é outra: é a progressiva destruição dos espaços comuns de debate pelos hooligans das caixas de comentários e das redes sociais. Na verdade de pouco nos serve ter a liberdade de falar se ninguém nos ouvir. Ou se apenas estivermos a falar para os que já concordam connosco. O importante é que essa liberdade possa ser exercida no espaço público, um espaço comum onde todos têm direito de cidadania e palavra, a ágora dos tempos modernos onde se devia poder debater todas as ideias, sem preconceitos nem barreiras.”

Ora não deixam, um pouco por todo o lado, de ser erguidas barreiras a essa liberdade de trocar ideias, sendo que muitas vezes essas barreiras são erguidas no seio de instituições que deviam ser os espaços de maior liberdade e maior abertura à discussão e à divergência, como é o caso das Universidades. Já aqui referi, em Macroscópios anteriores, alguns casos gritantes de censuras nos campus. Hoje trago-vos mais uma reflexão sobre essa situação, uma reflexão formulada na primeira pessoa no Wall Street Journal: I Was Disinvited on Campus - The anti-free speech takeover is so complete that now the fear of stirring a protest can determine what ideas students will hear. A história é contada por Jason L. Riley, senior fellow do Manhattan Institute de Nova Iorque e um intelectual negro. Eis uma passagem: “I’ve lost count of the times I’ve been approached by conservative students after a lecture to a mostly liberal audience and thanked, almost surreptitiously, for coming to speak. They often offer an explanation for their relative silence during question periods when liberal students and faculty are firing away. “Being too outspoken would just make it more difficult,” a Wellesley student once told me. “You get to leave when you’re done. We have to live with these people until we graduate.”

Mas não se pense que as limitações à liberdade de expressão são apenas uma coisa das universidades americanas. Há também situações preocupantes na nossa Europa, e as mais perigosas são as que são feitas em nome do direito a não ser ofendido. O Politico abordava recentemente a situação na Dinamarca – o país de que gostamos de falar por causa da série Borgen – e o título era forte: Denmark sacrifices free speech in the name of fighting terror. O autor, Flemming Rose, do Cato Institute, reflecte sobre o que se tem passado naquele país depois do caso das caricaturas do profeta, e conclui: “Most politicians believe we need to promote a diversity of opinions and beliefs, but manage that diversity with more tightly-controlled speech. That is wrong. A more diverse society needs more free speech, not less. This will be the key challenge for Denmark and Europe in the years ahead. The prospects do not look bright.”

Mas deixem-me agora deixar uma breve reflexão sobre um outro trabalho jornalístico, que me causou surpresa. Como todos sabemos, a Coreia do Norte é um país onde não existe a mais pequena liberdade – de expressão ou outra qualquer. Sendo assim, foi com surpresa que ouvi uma reportagem da TSF sobre aquele país intitulada "Diga ao mundo que somos felizes". Podia ser uma ironia, mas não era, algo que se comprovava num texto de opinião da autora, a jornalista Margarida Serra, publicado no Diário de Notícias, intitulado Uma semana na Coreia do Norte. Que começava assim: “A Coreia do Norte não é tão má como a pintam, nem tão boa como nos querem fazer crer. Esta é, para mim, a frase que melhor define a minha semana no país.”

Na mesma altura em que esta reportagem e esta opinião estavam a ser publicadas a Coreia do Norte expulsava um jornalista da BBC por este se ter atrevido a dizer que, no hospital que as autoridades norte-coreanas o levaram a visitar, as crianças não pareciam estar doentes nem se viam médicos por perto. Essa expulsão mereceu um editorial do Wall Street Journal, Potemkin Patients in Pyongyang onde se recorda, muito a propósito, que “This is hardly the first time North Korea has tried to fool foreign visitors into believing it is a modern and prosperous state. Generations of reporters and diplomats have marveled at the Kim regime’s Potemkin shops, where actors pretend to buy goods and later return them. Clearing a hospital of its patients and doctors to impress Nobel laureates shows a new level of chutzpah.”

Não me atrevo a dizer que foi isto que se passou com a repórter da TSF, apenas deixo uma pergunta e uma sugestão. A pergunta é sobre o lugar que atribuímos à liberdade, ou seja, saber se um país onde não existe a mínima das liberdades não é assim tão mau como o pintam.

A sugestão é, como não podia deixar de ser, de leitura: se tiverem a oportunidade e curiosidade, não deixem de lerPolitical Pilgrims, de Paul Hollander, um livro onde se conta a antiga União Soviética seduziu gerações de intelectuais, organizando visitas que chegavam ao ponto de proporcionar aos ilustres turistas viagens de comboio onde, descontraidamente, os “ferroviários” metiam conversa com os convidados para discutir com eles filosofia grega para mostrar até que ponto o comunismo promovia a cultura “das massas”. (A única obra de Paul Hollander disponível no mercado português é O Fim do Compromisso e relata como muitos desses intelectuais acabaram, mais tarde, por se afastar do comunismo, muitas vezes quando já não era mais possível manterem-se leais a Moscovo.)

Divagações à parte, é sempre bom recordarmos o valor da liberdade – sobretudo da liberdade dos outros, sem a nossa tutela, sobretudo sem a tutela do Estado, que tão apreciada é no nosso país.

Tenham bom descanso e melhores leituras.

 
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