O
homem, quando se guia só pelos instintos e se deixa levar por seu
latente egoísmo, é, de todos os animais, o mais feroz e o mais
cruel. Não fosse assim, não haveria extremos, em termos de posses.
Não existiriam fortunas pessoais absurdas, de tão grandes que são,
maiores do que a de países inteiros e, no outro extremo, pessoas sem tecto, esfarrapadas, sujas e mendigando um reles prato de comida ou,
na pior das hipóteses, uma dose de bebida alcoólica para tapear uma
fome crónica e insaciável. Há, todavia, milhões destas criaturas,
mundo afora, encaradas com indiferença tanto pelas autoridades, às
quais compete lhes dar assistência e protecção, quanto pela
população.
Numericamente,
há muito mais carentes, que não têm sequer certeza de obter o
almoço de cada dia (por frugal que seja) do que os que não precisam
se preocupar com as incertezas da existência. E a cada dia, novos
contingentes vêm se juntar a essa multidão de zumbis, de indivíduos
sem esperanças e sem futuro, carentes de tudo e de todos, que buscam
a mera sobrevivência física, assim mesmo na base do puro instinto.
O homem é, pois, ou não é o mais feroz, o mais cruel e o mais
insensível dos animais?
Milhões, mundo afora, têm apenas as ruas das cidades como lar.
Milhões, mundo afora, têm apenas as ruas das cidades como lar.
Indigentes
não faltam, portanto, cada qual mais desvalido do que o outro numa
surreal competição pelo troféu de miserável dos miseráveis. E,
no entanto, essas pessoas são dotadas de inteligência, sentimentos,
sonhos e esperanças. Ou, pelo menos, um dia foram. São, como nós,
feitas “à imagem e semelhança de Deus”. Comete, pois,
sacrilégio quem, por acção ou omissão (não importa) permite que
alguém se degrade a esse ponto e permaneça em degradação.
Onde
estão os que apregoam por aí o desejável (ou meramente
hipotético?) “reino do céu”, mas que se omitem diante das
necessidades mínimas, porém inadiáveis e prementes, de tantos dos
seus semelhantes? Onde o senso, já não digo de justiça (pois deste
o homem não pode se vangloriar de ter, pois não tem), mas de
caridade e de fraternidade, pregado há mais de dois mil anos por
Jesus Cristo (traído e morto por aqueles a que pretendia despertar a
voz da razão)? O homem é, pois, ou não é o mais feroz, o mais
cruel e o mais insensível dos animais?
Qual
seria o maior dos miseráveis, o desprovido de absolutamente tudo,
principalmente da motivação para sobreviver? Conheci, anos atrás,
em Barão Geraldo, uma pessoa que se estivesse viva seria séria
candidata a esse deprimente título. Nunca a vi sóbria uma vez que
fosse. Perambulava, trôpega e anestesiada, pelos bares do distrito a
implorar por uma dose de cachaça e algum salgadinho para matar a
fome. Nunca deixava de conseguir. Sempre aparecia alguém que, para
se livrar do seu assédio, lhe pagava a tal bebida, se julgando,
certamente, por isso, o supra-sumo da generosidade.
Vários
moradores davam-lhe restos de comida, como se alimentassem algum cão
vadio, e assim nosso personagem ia sobrevivendo. Dormia onde suas
pernas o levassem. Às vezes, em casas em construção, outras, na
soleira dos estabelecimentos comerciais, de onde era,
invariavelmente, enxotado, como animal pestilento, pelo dono, quando,
de manhã, abria as portas para o público. Cheirava mal à
distância. Pudera! Há tempos que não sabia o que era um banho.
Não
sei que fim esse indigente levou. O facto é que, lá um belo dia,
ninguém mais o viu. Certamente, morreu à míngua e foi sepultado,
anonimamente, em alguma cova rasa sem identificação ou teve o corpo
doado à Faculdade de Medicina, quem sabe. Soube, depois, que esse
farrapo humano havia sido famoso jogador de futebol (reservo-me o
direito de não o identificar, para preservar, pelo menos, sua
memória). Ninguém jamais soube explicar as razões de uma queda tão
grande e abrupta, para que chegasse a esse ponto.
Onde
estavam os seus parentes? Onde os dirigentes dos clubes em que jogou?
Onde os que se confessavam seus “amigos” e os tantos que se
diziam seus admiradores? Por que deixaram esse ser humano, “à
imagem e semelhança de Deus”, chegar a tal ponto de degradação?
Onde as autoridades que não o recolheram a uma instituição do
Estado, para lhe assegurar um mínimo de dignidade? Onde os líderes
religiosos?
Escrevo
estas linhas rilhando os dentes, decepcionado e amargurado com a
minha, com a nossa condição humana. E a trajectória desse
indigente, infelizmente, não é nenhuma excepção, mas a regra. O
homem é, pois, ou não é o mais feroz, o mais cruel e o mais
insensível dos animais?
Volto
à pergunta: qual seria o maior dos miseráveis? É o poeta
Rabindranath Tagore que responde: “O homem que precisa mendigar
amor é o mais mísero de todos os mendigos”. Ocorre que todos nós
praticamos este acto de mendicância. “Compramos” afecto e
raramente o conquistamos. Reflicta sobre essa afirmação e responda:
Tagore tem, ou não, razão? Não seríamos todos nós, incapazes de
nos doar, minimamente, ao próximo, sem que essa auto-doação
envolva algum interesse, os mais míseros dos mendigos? Desconfio que
sim!
Por Pedro J. Bondaczuk
Comentário:
Concordo
integralmente com este artigo de opinião. É forte, como deve ser
ainda assim não desperta consciências.
J.
Carlos
Nenhum comentário:
Postar um comentário