quarta-feira, 18 de outubro de 2017

As desculpas que António Costa não pediu

André  Veríssimo
18 de outubro de 2017 às 11:43
O discurso de ontem foi o mais duro que se ouviu do Presidente desde que tomou posse. Um bom discurso, institucionalmente irrepreensível, certo no tom e nas prioridades. O discurso que o primeiro-ministro podia, pelo menos em parte, ter feito e não fez. Pediu as desculpas que gostaríamos de ter ouvido António Costa pedir. Teve a “humildade cívica” que o primeiro-ministro não demonstrou.

Que a ministra da administração interna não reunia já condições para se manter no cargo, era inquestionável. Já o era em Junho, depois de Pedrógão, como a própria Constança Urbano de Sousa assume na carta de demissão. Mais ainda depois dos incêndios e das vítimas de domingo e segunda-feira.


Esta era a crónica de uma demissão anunciada. Os relatórios de peritos confirmaram o falhanço do Estado em toda a linha, da prevenção, ao combate, até ao socorro. Ter acontecido uma vez foi um choque. Acontecer segunda é imperdoável. Perdeu-se a confiança no Estado para assegurar a segurança das populações, abandonadas à sua má sorte - a "fragilização" de que falou na terça-feira à noite o Presidente da República. Constança Urbano de Sousa era a personificação e o rosto dessa fragilidade. Ficar não era opção.

O que realmente surpreende é a teimosia de António Costa. "Para mim seria mais fácil, pessoalmente, ir-me embora e ter as férias que não tive", disse a ministra na segunda-feira. Era já Constança Urbano de Sousa a implorar para que a deixassem sair. Nem assim. O que leva o primeiro-ministro a levar uma ministra a terminar a carta de demissão num grito: "um pedido que tem de aceitar, até para preservar a minha dignidade pessoal".


A declaração de segunda-feira à noite foi politicamente o ponto mais baixo de António Costa desde que chegou ao Governo. A insensibilidade e arrogância, em contraste com o horror que nas horas antes o país vivera, criaram pasto para indignação. Nessa falta de senso, gerou-se aquele que foi talvez o maior consenso nacional na crítica ao primeiro-ministro.


Porquê a teimosia de António Costa? Não seria o primeiro ministro do Governo a sair: esse marco coube a João Soares, na Cultura, uma figura menor, é certo. Foi não dar parte fraca? Foi não querer reconhecer um falhanço clamoroso que é para todos evidente? Achou António Costa que a popularidade de que goza o escuda do desgaste?

O primeiro-ministro sabia que se não fosse ele a demitir Constança Urbano de Sousa seria o Presidente da República a fazê-lo. Assim quis e assim foi. Fê-lo por tacticismo político, provavelmente para que fosse Marcelo Rebelo de Sousa a ficar com o ónus da demissão.


A estratégia por certo agrada à esquerda. E pode ser mais um prenúncio de um novo tempo no relacionamento entre a Presidência e o Governo que a mudança de rosto na liderança da oposição promete inspirar. Passos Coelho nunca foi, para Marcelo, uma alternativa. Mas crê que quem lhe seguirá o poderá ser.


O discurso de ontem foi o mais duro que se ouviu do Presidente desde que tomou posse. Um bom discurso, institucionalmente irrepreensível, certo no tom e nas prioridades. O discurso que o primeiro-ministro podia, pelo menos em parte, ter feito e não fez. Pediu as desculpas que gostaríamos de ter ouvido António Costa pedir. Teve a "humildade cívica" que o primeiro-ministro não demonstrou.


Ficou o aviso ao Governo de que esta é a "última oportunidade" para fazer da floresta uma prioridade nacional. Mas também aos restantes partidos, porque é preciso um "consenso alargado" que lhe dê permanência.


A demissão de Costança Urbano de Sousa nada resolve, é certo. Mas tão pouco tinha a ministra condições para protagonizar as mudanças que urgem fazer. A sua saída ajudará a esvaziar a tensão. O Outono e o Inverno vão arrefecer a indignação. O tira-teimas chegará com o regresso do calor. 

Fonte: Jornal de Negócios


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