Quem segue esta newsletter recordar-se-á que não dediquei nenhuma edição ao grotesco acórdão de um juiz do Tribunal da Relação do Porto. Quando se estabelece a unanimidade e o tema da controvérsia não suscita real controvérsia julgo não valer muito a pena ocupar com ele um Macroscópio. O caso do acórdão do Porto, como se recordarão, era sobre violência doméstica. O tema que hoje nos ocupará é assédio sexual. Podemos dizer que, conhecidas as diferenças, um ponto os une: em ambas as situações é a mulher que, por regra, é o elo fraco; em ambas é quase sempre o homem que abusa de uma situação de poder (ou de força).
E trago aqui o tema do assédio não só por este ser um dos temas destas semanas depois da impressionante sequência de revelações sobre algumas grandes figuras de Hollywood, mas para levantar uma interrogação incómoda: que relação existe, se é que existe, entre a evidência destes abusos e a “libertação sexual” que se seguiu à revolução da contracultura da década de 1960?
O meu ponto de partida é um texto antigo, já com mais de duas décadas, de Irving Kristol que integra o seu famoso livro Neoconservatism: The Autobiography of an Idea (edição portuguesa da Quetzal). É um texto sobre a revolução sexual que faz um diagnóstico duro do homem, do macho, como sendo naturalmente um predator sexual: “Sexual liberation,” as it emerged in the 1950s, has turned out to be—as it was destined to be—a male scam. Easy, available sex is pleasing to men and debasing to women, who are used and abused in the process. Nevertheless, the agenda of a candid, casual attitude toward sex was vigorously sponsored by feminists who mistakenly perceived it as a step toward “equality.” Even today there are some laggard feminists who are firmly persuaded that mixed dormitories and mixed bathrooms on a university campus represent such a step. But true equality between men and women can only be achieved by a moral code that offers women some protection against male predators— and all men are, to one degree or another, natural predators when it comes to sex.”
Lembrei-me desta passagem ao ler dois textos diferentes, e de sentido também bem diverso. O primeiro saiu na americana The Atlantic e toca uma tecla sempre sensível: Bill Clinton: A Reckoning. Escrito por Caitlin Flanagan vai directo ao ponto: “Feminists saved the 42nd president of the United States in the 1990s. They were on the wrong side of history; is it finally time to make things right?” Este ensaio recorda como o então Presidente dos EUA foi defendido por muitas feministas (nomeadamente no New York Times, em 1998, como se pode ver na imagem acima) e como isso fez mal à denúncia deste tipo de crimes. Só que os tempos mudaram: “The widespread liberal response to the sex crime accusations against Bill Clinton found their natural consequence 20 years later in the behavior of Harvey Weinstein: stay loudly and publicly and extravagantly on the side of signal leftist causes, and you can do what you want in the privacy of your offices and hotel rooms. But the mood of the country has changed. We are in a time when old monuments are coming down and when men are losing their careers over things they did to women a long time ago.”
Este registo contrasta com o de Henrique Monteiro, no Expresso, em Assédio, hipocrisia e puritanismo, defende a ideia de “casos com três décadas [como são alguns dos de Hollywood] não podem ser vistos com os olhos de hoje”. Depois de procurar encontrar uma razão para tão grande demora em algumas denúncias, acaba a revelar a sua principal preocupação: “Mas o pior, do meu ponto de vista, é a sociedade que estamos a construir. Corremos o risco de a fazer uma sociedade puritana, calvinista, ou medievalmente tristonha; onde o riso, o sexo e o mais pequeno abuso são entregues não só às chamas do inferno, como às chamas das inquisições terrenas.”
Chego assim a Rui Ramos cujo raciocínio é muito mais próximo do de Kristol. Em O sexo politicamente incorrecto defendeu, no Observador, que “Os vigilantes dos costumes pareceram mais empenhados em condenar hierarquias, do que em condenar comportamentos. É como se o único problema fosse haver homens em posições de poder. Percebe-se porquê: não é politicamente correcto tocar na chamada “libertação sexual” da década de 1960. Mas foi essa “libertação” que impôs o actual regime em que o sexo é concebido, simultânea e paradoxalmente, como a expressão mais profunda da personalidade, e como um divertimento inconsequente. Qualquer ética, em relação ao sexo, passou a nunca poder ser mais do que uma racionalização de inibições ou uma impostura. A “libertação sexual” dissipou muitos escrúpulos e aliviou bastantes consciências – ainda hoje se fazem filmes sobre isso –, mas também “libertou” muitos dos predadores.”
Questões como estas, debates que assim envolvem feministas, e onde esperaríamos encontrar uma posição clara e alinhada, acabam por criar mal-estar e divisões. E não só nos Estados Unidos objecto do artigo da The Atlantic, também na muito igualitária Suécia, como se pode ler em Sweden’s Sexual Assault Crisis Presents a Feminist Paradox, um texto editado pela plataforma de debate Quillette. Aí um dos dilemas enfrentados pelas feministas é que o número de assaltos protagonizados por não-suecos – isto é, por imigrantes – é desproporcionalmente elevado, mas referi-lo é tão tema tabu que nem estatísticas fiáveis existem: “But open discussion of this subject is thwarted by taboos. Xenophobic movements in and outside Sweden use immigrant rapes as a political weapon to generalize about immigrants, which has made it an understandably sensitive topic. This has added to concerns that multiculturalism is tarnished and created a dilemma for Swedish politicians confronted with a choice between progressive orthodoxies about the benefits of multicultural diversity and the feminist duty to ensure female welfare and safety.”
Antes de vos deixar com uma reflexão mais geral sobre moralidade sexual nos dias que correm, quero ainda acrescentar mais duas referências mais jornalísticas:
- “Na Idade Média havia o direito de pernada, no assédio sexual é um bocadinho o mesmo espírito”, uma entrevista no Expresso Diário (paywall) a Vítor Amorim Rodrigues, psicólogo e professor universitário no ISPA – Instituto Universitário.
- "O corpo das mulheres é propriedade pública", uma reportagem de Fernanda Câncio no Diário de Notícias em que a jornalista recolheu depoimentos de adolescente de 12 a 19 anos, que lhe contaram as suas experiências.
Para o fim guardei o texto porventura mais politicamente incorrecto: It’s Past Time to Rethink Modern Sexual Morality, de David French na americana (e conservadora) Nacional Review. A tese do artigo é que “a morality based only in consent results in sexual oppression”. Eis uma passagem do seu argumento: “The practical result of consent-focused morality is the sexualization of everything. With the line drawn at desire alone, there is no longer any space that’s sex-free. Work meetings or restaurants can be creative locations for steamy liaisons. Not even marriage or existing relationships stand as a firewall against potential hookups.”
Quanto à foto que abre esta newsletter ela é de Ruth Orkin e foi captada em Agosto de 1951 numa rua de Florença (José Barreto conta a história desta “American girl in Italy” aqui no Malomil). É uma das grandes fotos do século XX e tornou-se icónica do movimento feminista. Na verdade a rapariga estava menos intimidada do que parecia e no fotografama seguinte (ver abaixo) já seguia na lambreta de um dos homens da fotografia, e bem divertida. A rapariga, cuja identidade também é conhecida, acabou por casar comum italiano, e na imagem nem tudo o que parece, é.
Há contudo muito que merece mais reflexão do que o simples espanto com a divulgação dos abusos ou a indignação com a sua simples ocorrência. O Macroscópio vai continuar atento, mas por hoje despede-se com votos de bom descanso e boas leituras.
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