Depois de ter falado da
necessidade de um diálogo sério entre todos para construirmos uma sociedade
mais justa, passo a uma outra exigência: a da conversão ou mudança do estilo de
vida. Eu sei que “imoral” é mais uma das palavras desvalorizadas. E penso que a
Igreja católica tem alguma ou até muita responsabilidade: ao reduzir a
moralidade apenas, ou quase, à esfera sexual, fez esquecer e não ensinou que se
trata de um polvo que infecta todas as áreas da vida e envenena as relações
sociais. Exceptuando o sexto e nono mandamentos (já será o Sermão da Montanha o
miolo da nossa catequese?), e o quinto, por outras razões, o resto eram
pecadilhos quase banais: roubar ou mentir, que importância tinha? E, contudo, o
roubo instalou-se nas relações laborais, degradando pessoas, famílias e
empresas, e nas fiscais, levando à fuga aos impostos, como se tal fuga fosse o
acto mais banal numa sociedade humanamente organizada.
Por isso, quando olho
para a nossa vida social hoje, lembro logo as palavras de João Paulo II,
escritas num documento, que poucos conhecem (RP 16), e citadas noutro (SRS 36)
que muitos (muitos, mesmo!?) terão lido. Quanto à forma, recorda-me o “velho”
Estatuário do P.e António Vieira, que decorei nos tempos de menino para
aprender como usar de modo adequado os verbos gramaticais para descrever um
determinado gesto. Na citação do papa, os verbos também são adequados,
dolorosamente adequados, para descrever as inúmeras formas de praticar ou
alimentar a imoralidade numa sociedade.
Começa por desmontar a
ideia de que a culpa é das estruturas. É certo que há estruturas de pecado, mas
foram criadas pelas pessoas. É certo que essas estruturas podem aparentemente
autonomizar-se e controlar as pessoas. Mas isso não nos desculpabiliza: “A
Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais
certas situações ou certos comportamentos colectivos ou de grupos sociais, mais
ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e
proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a
concentração de muitos pecados pessoais.”
Depois vem a enumeração
desses “pecados pessoais” e é quase impossível que nenhum deles não nos encaixe
na perfeição. Vou “partir” a citação em várias partes.
Primeira: “Trata-se dos
pecados pessoalíssimos de quem gere ou favorece a iniquidade ou dela desfruta”.
Portanto, não basta ser autor material da “iniquidade”, também somos
responsáveis quando a favorecemos, por acção ou omissão (“tão ladrão é o que
vai à vinha como o que fica a guardá-la”) e, ainda pior, dela nos servimos:
“desfrutar” do trabalho sujo dos outros, sem precisar de sujar as mãos, é muito
mais limpo, deixa a consciência tranquila porque nada fizemos de mal; apenas
aproveitámos “sabiamente” a ocasião que vida nos ofereceu.
Segunda: “(Trata-se) de
quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, eliminar ou, pelo menos, limitar
certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa
conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença”. Realmente há muita
coisa que podemos fazer, mas não fazemos, para evitar, impedir que o processo
se inicie, eliminar, cortar o mal pela raiz, ou, não sendo possível, pelo menos
limitar desvios e disfunções sociais, seja como cidadãos comprometidos seja
como governantes responsáveis. Mas a acusação tem uma segunda parte terrível:
por que acontece toda esta “maldade”? Por muitas razões: preguiça, pois não
estou para me incomodar e tenho mais que fazer; medo, que tolhe tanta gente e
tanta reacção (posso perder o emprego, não subir na carreira, não garantir o
tacho político, …); temerosa conivência, que tem muito a ver com o comodismo,
com o estar a bem “com Deus e com o diabo”, mas também com o medo de perder
alguma migalha que caia da mesa do poder; cumplicidade disfarçada, fazendo de
conta que não notamos o que está a acontecer mas sempre atentos para não perder
a oportunidade; indiferença, esta é o “pão nosso de cada dia”, pois “o problema
não é meu” (de quem será?) ou “quem vem atrás que feche a porta”.
Terceira: “(Trata-se)
de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo”. Esta
desculpa é talvez a mais repetida e de modo consciente: afinal que posso eu
fazer para alterar esta situação? Quem sou eu para mudar o mundo? Irrita-me
este paleio alienante. A pergunta está mal feita. Devia ser: “o que podemos
nós, nós todos, fazer para mudar o mundo?”. E depois, realmente ninguém muda
nada no mundo, se não começar por se mudar a si próprio: nos seus vícios de
estimação, nos seus comodismos, no seu estilo de vida. Isto é, nenhuma
sociedade pode mudar se as pessoas não mudarem.
Quarta: “E (trata-se),
ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões
especiosas de ordem superior”. Esta desculpa é mais subtil, pois apela ao meu
cansaço (mas se tiver de andar cem quilómetros por semana para tirar um curso
que me garanta maior salário, o cansaço desaparece, não!?) e ao meu sacrifício,
que é tão doloroso e… para quê? Para ficar tudo igual? Isso é para malucos, não
para mim que tenho a vida organizadinha!
Repare-se na quantidade
de ditados populares que citei e muitos mais poderia ter referido. Ora quando
certas atitudes chegam ao patamar dos provérbios é porque já foram
interiorizadas pelas pessoas, já se tornaram banalidades em que ninguém repara,
já fazem parte do ambiente e, por isso, nem damos conta da sua gravidade e
injustiça. Afinal fazem parte da prata da casa.
Escrito por zé dias
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