domingo, 6 de dezembro de 2015

UMA SOCIEDADE IMORAL

Depois de ter falado da necessidade de um diálogo sério entre todos para construirmos uma sociedade mais justa, passo a uma outra exigência: a da conversão ou mudança do estilo de vida. Eu sei que “imoral” é mais uma das palavras desvalorizadas. E penso que a Igreja católica tem alguma ou até muita responsabilidade: ao reduzir a moralidade apenas, ou quase, à esfera sexual, fez esquecer e não ensinou que se trata de um polvo que infecta todas as áreas da vida e envenena as relações sociais. Exceptuando o sexto e nono mandamentos (já será o Sermão da Montanha o miolo da nossa catequese?), e o quinto, por outras razões, o resto eram pecadilhos quase banais: roubar ou mentir, que importância tinha? E, contudo, o roubo instalou-se nas relações laborais, degradando pessoas, famílias e empresas, e nas fiscais, levando à fuga aos impostos, como se tal fuga fosse o acto mais banal numa sociedade humanamente organizada.

Por isso, quando olho para a nossa vida social hoje, lembro logo as palavras de João Paulo II, escritas num documento, que poucos conhecem (RP 16), e citadas noutro (SRS 36) que muitos (muitos, mesmo!?) terão lido. Quanto à forma, recorda-me o “velho” Estatuário do P.e António Vieira, que decorei nos tempos de menino para aprender como usar de modo adequado os verbos gramaticais para descrever um determinado gesto. Na citação do papa, os verbos também são adequados, dolorosamente adequados, para descrever as inúmeras formas de praticar ou alimentar a imoralidade numa sociedade.

Começa por desmontar a ideia de que a culpa é das estruturas. É certo que há estruturas de pecado, mas foram criadas pelas pessoas. É certo que essas estruturas podem aparentemente autonomizar-se e controlar as pessoas. Mas isso não nos desculpabiliza: “A Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos ou de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais.”

Depois vem a enumeração desses “pecados pessoais” e é quase impossível que nenhum deles não nos encaixe na perfeição. Vou “partir” a citação em várias partes.

Primeira: “Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem gere ou favorece a iniquidade ou dela desfruta”. Portanto, não basta ser autor material da “iniquidade”, também somos responsáveis quando a favorecemos, por acção ou omissão (“tão ladrão é o que vai à vinha como o que fica a guardá-la”) e, ainda pior, dela nos servimos: “desfrutar” do trabalho sujo dos outros, sem precisar de sujar as mãos, é muito mais limpo, deixa a consciência tranquila porque nada fizemos de mal; apenas aproveitámos “sabiamente” a ocasião que vida nos ofereceu.

Segunda: “(Trata-se) de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, eliminar ou, pelo menos, limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença”. Realmente há muita coisa que podemos fazer, mas não fazemos, para evitar, impedir que o processo se inicie, eliminar, cortar o mal pela raiz, ou, não sendo possível, pelo menos limitar desvios e disfunções sociais, seja como cidadãos comprometidos seja como governantes responsáveis. Mas a acusação tem uma segunda parte terrível: por que acontece toda esta “maldade”? Por muitas razões: preguiça, pois não estou para me incomodar e tenho mais que fazer; medo, que tolhe tanta gente e tanta reacção (posso perder o emprego, não subir na carreira, não garantir o tacho político, …); temerosa conivência, que tem muito a ver com o comodismo, com o estar a bem “com Deus e com o diabo”, mas também com o medo de perder alguma migalha que caia da mesa do poder; cumplicidade disfarçada, fazendo de conta que não notamos o que está a acontecer mas sempre atentos para não perder a oportunidade; indiferença, esta é o “pão nosso de cada dia”, pois “o problema não é meu” (de quem será?) ou “quem vem atrás que feche a porta”.

Terceira: “(Trata-se) de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo”. Esta desculpa é talvez a mais repetida e de modo consciente: afinal que posso eu fazer para alterar esta situação? Quem sou eu para mudar o mundo? Irrita-me este paleio alienante. A pergunta está mal feita. Devia ser: “o que podemos nós, nós todos, fazer para mudar o mundo?”. E depois, realmente ninguém muda nada no mundo, se não começar por se mudar a si próprio: nos seus vícios de estimação, nos seus comodismos, no seu estilo de vida. Isto é, nenhuma sociedade pode mudar se as pessoas não mudarem.

Quarta: “E (trata-se), ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior”. Esta desculpa é mais subtil, pois apela ao meu cansaço (mas se tiver de andar cem quilómetros por semana para tirar um curso que me garanta maior salário, o cansaço desaparece, não!?) e ao meu sacrifício, que é tão doloroso e… para quê? Para ficar tudo igual? Isso é para malucos, não para mim que tenho a vida organizadinha!

Repare-se na quantidade de ditados populares que citei e muitos mais poderia ter referido. Ora quando certas atitudes chegam ao patamar dos provérbios é porque já foram interiorizadas pelas pessoas, já se tornaram banalidades em que ninguém repara, já fazem parte do ambiente e, por isso, nem damos conta da sua gravidade e injustiça. Afinal fazem parte da prata da casa.


Escrito por zé dias 

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