sábado, 30 de abril de 2016

Função pública e a burocracia

Há alguns anos a esta parte, ouve-se com frequência falar de Oliveira Salazar, como se fosse a pessoa ideal para salvar a nossa Pátria. Com o devido respeito pelas pessoas que manifestam esse género saudades, devo dizer de forma taxativa que essa saudade a mim não me aquece nem arrefece.
A Função Pública por sua vez tem sido com frequência o bombo da festa, em todas ocasiões, independentemente dos governos eleitos. Já no tempo que Oliveira Salazar esta classe social não era assim tão estimada, senão leia-se a mensagem que segue abaixo que foi lida em 5 de Setembro de 1940.
 
 “Este singelo almoço, em que me deram o prazer de tomar parte os chefes de todos os serviços do Ministério das Finanças, não se destinava a ser, ainda que muito merecida, atenção meramente pessoal: no meu espírito estava sobretudo agradecer, na pessoa dos mais altos superiores hierárquicos, a todos quantos tomaram a sua parte, larga ou modesta, no trabalho de reorganização financeira do País.
Não é momento – e não me ficaria bem fazer referências a essa obra da qual aliás me pesa dizer não ser perfeita e não ficar completa. Desde muito cedo as circunstâncias exigiram da mim muito do que não me pertenceria, e perturbaram atenção e cuidados que não deviam ser apenas vigilantes mas absorventes e exclusivos. Obrigado a trabalhar em extensão e não em profundidade, pela vastidão imensa de outros campos de acção, foi impossível manter o ritmo primitivo e levar inteiramente a cabo a obra reformadora delineada desde os primeiros anos.
Apesar de tudo nós podemos orgulhar-nos de haver realizado em condições adversas, internas e externas, o que entre nós e antes de nós comummente atinge ofegante os altos cumes, em esforço que não há-de repetir-se, e repousa descendo, mas como quem lança alicerces, consolidados e estáveis, para obra duradoira.
Talvez por circunstâncias ligadas ao conhecimento da nossa passada administração; talvez pelo momento internacional prenhe de dificuldades a resolver como herança de uma guerra quando outra se gerava; porventura pelo êxito de um pensamento simples e claro e de princípios de estrita moralidade que se haviam obliterado quase por toda a parte na consciência dos povos – a reorganização financeira teve para nós importância maior do que normalmente lhe caberia. Foi o ponto de partida de toda a reforma administrativa: influenciou beneficamente a moral da Nação; serviu de fundamento e garantia à própria revolução politica e social; permitiu o revigoramento da economia e verdadeira floração de obras de interesse geral; serviu entre as nações como carta de crédito da nossa capacidade; entre elas foi tomada como o sinal mais certo do nosso ressurgimento e sobre o prestígio que nos deu permitiu até se edificasse ou reconstruisse, tomando alento em seus voos, a nossa política externa. Acima de tudo porém, acima de tudo teve para mim o mérito inigualável de se encontrar na base do verdadeiro processo de cura que tem feito ressurgir a Nação.
Ora, mesmo descontado o que se deve às novas condições politicas criadas com a Revolução – meio indispensável a trabalho seguido e eficaz – os resultados obtidos não se devem a um só homem. Provem sem dúvida de um pensamento, mas, de um pensamento que animou muitas outras inteligências; provem de uma vontade, mas de uma vontade que se multiplicou em muitas outras vontades; provem de uma nação que se repercutiu do centro até aos mais ténues ramos da periferia. Sem esta concordância, sem este sincronismo, sem esta sinergia, mais um plano cairia como desilusão e o novo esforço aumentaria pelo fracasso a razão de descrer. 
É assim de justiça, pura justiça a palavra que ponha em relevo a colaboração do funcionário do Ministério da Finanças (ia dizer, mas tive receio, da burocracia das finanças; esta tem sido tão desacreditada, tão aviltada, que sem distinções necessárias nem eu mesmo me atreveria a fazer-lhe o elogio).
Haverá uma espécie de injustiça social, involuntária e inconsciente, neste clamor da opinião pública contra o burocrata?
O burocrata é, no simplismo e também por vezes na justeza dos juízos populares, o homem inútil que se compraz em multiplicar as formalidades, encarecer as pretensões, a amortalhar em papéis os interesses, embaraçar os problemas com dúvidas (de toda a espécie), atrasar as soluções com os despachos, obscurecer a claridade da justiça em nuvens de textos legais (?), ouvir mal atento ou desabrido as queixas e as razões do público que são o pão, ou o tempo, ou a fazenda, ou a honra, ou a vida da Nação perante o estado e a sua Justiça; trabalhando pouco, ganhar muito e certo, sem proveito nem utilidade social, parasitariamente, sorver como esponja o produto do suor e do trabalho do povo.
Estes traços têm caricatura e infelizmente aqui e acolá também retracto. De quem são as responsabilidades?
Quando nos países em desordem os políticos defendem as suas posições com a criação e distribuição de lugares às clientelas partidárias, praticam ao mesmo tempo acto imoral e ruinoso para a economia da Nação; mas quando, no aperto das crises, os mesmos responsáveis pela delapidação dos dinheiros públicos ou simplesmente pela inconsiderada extensão de serviços apregoam, como medida salvadora, o despedimento de funcionários em excesso, certo é fazer-se confusão entre problemas de moralidade administrativa e a necessidade de reforma do Estado. Quando por espírito de favoritismo pessoal ou partidário, por fraqueza ou mal-entendida bondade, corrupção ou ignorância das consequências, se preferem os maus aos melhores, degrada-se a moral do Estado e comete-se acto grave contra a justiça; mas no campo do interesse colectivo isso não é o mais grave. O pior de tido é não se poder dispor de instrumentos de trabalho úteis, é funcionarem com rendimento baixíssimo e de má qualidade o serviços públicos.
Muitos se admiram de que sejam tão precários, tão modestos ou tardios os feitos das suas reformas, de que os sinais das coisas se alterem do Governo até à Nação, o bem seja causa de injustiças e a justiça fontes de muitos males. Outros não sabem explicar-se porque aqui ou além uma ideia política e um acto do governo parecem dotados de tal poder de penetração no corpo social, de tal justeza na aplicação, que os resultados correspondem às previsões e os actos traduzem fielmente o pensamento que os ditou. Prudentemente deveriam uns e outros verificar como em ambos os casos estará montada a máquina do Estado.
Nunca hesitei em considerar da maior importância o problema do funcionalismo público, mesmo para a eficácia das reformas estranhas à Administração de que ele verdadeiramente constitui a técnica e a alma. E nesta conformidade desde princípio procurei a sua renovação ou reforma, sem violências inúteis e pondo apenas em jogo o tríplice sentido da utilidade, da justiça e da responsabilidade.
Se ao funcionário, integrado numa ordem administrativa qualquer, se deu a compreensão de como seu trabalho, simples que seja, se combina com o dos mais para a consecução de determinado resultado; se se lhe deu a consciência da grande obra em que participa e que sem o seu concurso seria impossível ou ficaria ao menos imperfeita, incutiu-se-lhe também o sentido da sua utilidade, na qual assenta em primeiro lugar a dignidade profissional.
Depois da utilidade, o sentido da justiça – da justiça do Estado para com ele, em recompensar-lhe o esforço, em premiar-lhe o mérito, em reconhecer-lhe as suas preferências, em coloca-lo, em promovê-lo, em conciliar o interesse do serviço com o seu interesse pessoal ou familiar, em o libertar de influências aviltantes, desnecessárias para a justiça que se lhe deve e insuficientes para favores que não se lhe podem fazer.
Por ultimo, o sentido da responsabilidade – agora a justiça do funcionário para com o Estado e para com a Nação. Este homem, por vezes isolado e modesto, sabe que reside nele uma parcela desse poder sagrado que é a autoridade; que esta existe não por imposição da força de quem quer mas por necessidade de vida em comum e para o maior bem de todos; sabe que dos seus actos ou da sua incúria, do seu saber ou da sua incompetência podem advir benefícios ou danos, riscos ou prejuízos para os indivíduos e para a colectividade nacional. A sua responsabilidade é enorme: da sua informação inexacta nasceu o despacho errado; do seu parecer tendencioso proveio a denegação da justiça; por causa dos factos ou dos números que levianamente não verificou veio a acontecer que actos de governo e até toda uma política foram completamente errados.
Por meios tão simples afinal se modificam a mentalidade, a formação, as qualidades profissionais e morais, o rendimento do funcionalismo de finanças. Assim se viu ressuscitar esse velho tipo de funcionamento que conhece todas as minúcias do seu trabalho, só pensa no desempenho da sua função, se entusiasma com a boa ordem e aperfeiçoamento dos serviços, é progressivo, é zeloso, é exacto, não tem horas de serviço por que são todas, se é necessário, e sobretudo tem o espírito de justiça e o amor do povo. Perante gente humilde, para quem as dotações orçamentais esgotadas, o esforço de verbas, os manifestos, as matrizes, os lançamentos, os relaxes, as execuções são coisas terrivelmente obscuras e misteriosas, que escuta com pavor e incompreensão e lhe amarfanham a alma porque por vezes lhe destroem a vida; perante credores ou devedores do Estado, esse funcionário não é altaneiro, nem arrogante, nem imensamente superior; é mestre e guia, antes de ser juiz e severo executor da lei.
Vive do seu lugar, porque vive do seu lugar; é respeitado porque se respeita, sente-se digno porque se sabe útil, e mesmo no mais baixo da escala, nos mestres mais humildes ele pode tocar a perfeição, segundo o pensamento de Junqueiro, pode ser-se sublime a varrer as ruas.
Se a moral profissional do funcionalismo se refugiara em poucos, está hoje em muitos; se este tipo de funcionário chegou a ser algum dia quase abstracção – e pelo menos tendia a ser raro – não é assim agora felizmente. Sob a imediata direcção de chefes, alguns dos quais trabalharam devotamente comigo desde a primeira hora, a esse funcionário se deve a compreensão de um vasto plano de reformas, as minúcias e delicadezas da sua execução e em grande parte o seu triunfo. A ele recordo neste momento e o quero ver dignamente representado nos seus chefes supremos, por cujas prosperidades de homens, de funcionários, de portugueses tenho a honra de levantar o meu copo.”

Tema: A Função Pública e a Burocracia, Pág. Nº. 277.
Fonte: Discursos e Notas Políticas de Oliveira Salazar, III Tomo datado 1938-1943, 2ª. Edição, editado pela Coimbra Editora, Lda.
 
Considerações: Todos não somos de mais, para dizer basta de tanta burocracia a reinar nas instituições públicas a que nos dirigimos. Perante esta avalanche de burocracia que há anos nos tem vindo a esmagar, não devemos dar lugar ao temor de tomar atitudes de afrontamento, pois ela bloqueia o desenvolvimento do País.
Contudo, a verdade que todos sentem e ninguém se atreve a confessar é que o mundo vive em profunda crise de medo: saber como e em que condições se deve apresentar reclamações contra a burocracia e que esta nos acarreta, que nos vai votando descaradamente a uma indiferença contínua, no deixa andar, caso contrário fica-se na eminência de vir a perder os seus postos de trabalho e a sofrer na vida vicissitudes só pelo facto de querer contribuir de forma frontal, para o bem deste País, que desde há muito anda à deriva, esbanjando descaradamente os poucos subsídios que ainda restam da Comunidade Europeia.
Quem visitar as instituições públicas existentes em Aveiro, certificar-se-à de que a realidade é bem mais flagrante da que procurei descrever aqui, mas, Oliveira Salazar já naqueles tempos foi amargo nas suas afirmações. Depara-mo-nos com funcionários a ler revistas de entretimento e jornais, outros sentados às secretárias na cavaqueira, indiferentes a tudo ao que se passa ao seu redor, enquanto os utentes que para ali descontam, aguardam horas com a senha na mão à espera de serem atendidos.
Nem todos devem ser tidos por igual é certo, mas, a diferença é mínima. Para esses poucos exprimo o meu profundo respeito. O vírus da burocracia e da desmotivação veio para ficar como a Toyota. O país assim não passa da cepa torta. A quem interessa este marasmo, esta apatia? A quem chame a isto o reflexo dos tempos de crise, falta de motivação e empenho.

J. Carlos


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